Solteirona, octagenária e sem descendentes, Dona Eufrásia estava livre para dispor de seus bens como desejasse MONTAGEM: BETO NEJME
Os órfãos de Eufrásia
O que aconteceu com a herança milionária que a namorada de Joaquim Nabuco doou aos pobres de Vassouras
Marcos Sá Corrêa | Edição 19, Abril 2008
Do alto de uma ladeira, o Colégio Sul Fluminense de Aplicação domina a cidade de Vassouras, no interior do Rio de Janeiro. Ele é uma edificação pseudomexicana inserida em meio a relíquias da arquitetura brasileira com alma de pau-a-pique. Dele se vislumbra, lá embaixo, o centro histórico, erguido no século XIX com os ganhos da breve primavera do café no vale do Paraíba. Foi tombado em 1958, como patrimônio histórico nacional. Com seus 2 600 metros quadrados de área construída, o colégio foi feito no estilo missiones, que andou em voga nos anos 30, trazido da fronteira californiana pelos filmes de Hollywood. Suas paredes têm a notória solidez das obras feitas com largueza de recursos e austeridade contábil.
O pórtico em arco parece a entrada de um antigo grande hotel de interior. O saguão é tão vasto que poderia reunir seus 500 e tantos alunos na mesma festa. Em pleno ano letivo, o pátio interno tem a placidez de um claustro. Sobra espaço para carteiras nas salas de aula. A cozinha é de proporções industriais. E o teatro, com um pé direito que junta dois pavimentos, deve ser o maior da cidade, desde que a Igreja Universal do Reino de Deus comprou o Cine Centenário, na praça da Matriz.
O Colégio de Aplicação recebe alunos do pré-primário ao mestrado de história. Seu portão espelha essa grandeza com placas que anunciam o serviço escolar de psicologia da Universidade Severino Sombra, a Pousada USS, a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação e o Centro Social CAS. Só se esquecem de avisar que aquilo tudo se deve a Eufrásia Teixeira Leite. Retratada de coque e decote de gala, seu busto de bronze divide as alamedas da subida da escola. Sem identificação, a estátua da eterna namorada de Joaquim Nabuco passa meio despercebida.
Eufrásia, que nasceu em Vassouras, em 1850, viveu décadas em Paris e morreu 80 anos depois, no Rio de Janeiro, batizou o colégio com o nome do pai: Instituto Profissional Feminino dr. Joaquim José Teixeira Leite. Queria, assim, consagrar perpetuamente o advogado que enriqueceu no Rio como comerciante de café com a Casa Teixeira Leite & Sobrinhos. Fundador da Sociedade Promotora da Civilização e da Indústria em Vassouras, o comendador Teixeira Leite deu palpites em reformas econômicas do Segundo Reinado, rebelou as províncias contra uma reforma judiciária do conselheiro Nabuco de Araújo – que ameaçava tirar dos manda-chuvas interioranos o poder de nomear jurados nos tribunais – e conspirou para ligar o Rio a São Paulo por estrada de ferro. O trem chegou atrasado, em 1875, quando a cafeicultura de Vassouras estava quebrando sob o lema “aqui nada descansa”, que exauriu as terras e as senzalas. Mesmo assim, uma locomotiva de prata ainda figura no brasão do município, entre ramos de café, sobre uma insígnia em latim que proclama: “O progresso do Brasil muito me deve.”
Não tendo fazendas para arruiná-lo, ou mais de doze escravos para alforriar, e emprestando dinheiro a juros de 6% ao ano, o falecido Teixeira Leite deixou de legado para a filha Eufrásia 383,9 mil réis, em 1872. Era um dinheirão, comparável à dotação pessoal do imperador Pedro II. E a filha, no meio século seguinte, investiu no mercado financeiro internacional e multiplicou a fortuna. Seu testamento dispunha de 37 milhões de réis, numa época em que um milhão de réis comprava 50 quilos de ouro – e conferia ao portador, em qualquer praça, o título de milionário.
Quando morreu, os bens dela somavam 30 mil ações de 297 empresas em dez países. A casa onde morou, em Paris, no 8º arrondissement, era um autêntico hôtel particulier de cinco andares que valia 2 milhões de francos. Ficava no número 40 da Bassano, uma rua que o turismo rico atual reconhece como a esquina da loja Louis Vuitton, nos Champs-Elysées. Um imóvel dessas dimensões valeria hoje mais de 10 milhões de euros. No Rio, Eufrásia acabara de lançar um conjunto residencial em 49 terrenos da travessa Santa Leocádia (atual rua Pompeu Loureiro), surfando a onda imobiliária de Copacabana. Seu inventário entupiu 30 volumes de manuscritos, depositados no Centro de Documentação Histórica de Vassouras.
Solteirona e octogenária, sem “descendentes nem ascendentes”, conforme reza o testamento, ela estava legalmente liberada para “dispor como entender” de seus bens. Morando tantos anos em Paris, isolara-se da parentela de Vassouras, onde seu sobrenome se enrosca a perder de vista em troncos veneráveis da aristocracia falida. Eufrásia era sobrinha do barão de Vassouras, Francisco José Teixeira Leite, e neta dos barões de Itambé. Seu avô materno, Laureano Corrêa e Castro, barão de Campo Belo e comandante da Guarda Nacional, foi o legendário dono da fazenda Secretário, que o escritor francês Charles Ribeyrolles descreveu em Brasil Pitoresco como “uma granja moderna, hoje abastada, que um homem, um único homem, construiu em vinte anos de trabalho”.
Ao morrer, Eufrásia aplicou em filantropia quase toda a sua fortuna. Foi como se um meteorito pesando quase 2 toneladas de ouro puro caísse do céu em Vassouras. Ou como se toda a produção anual de 80 mil garimpeiros em Serra Pelada, no fim da década de 1980, fosse convertida em esmola. O Correio de Vassouras comemorou a caridade, em 1937, com a frase: “Graças a Deus, uma nova era.” Seria uma verdadeira “transfusão de sangue no organismo deprimido da cidade”. O jornal contava, “para breve”, com a inauguração de “um hospital-modelo e duas ótimas escolas profissionais, uma feminina, outra masculina” e antevia uma “fase de progresso material, intelectual e moral”, creditada à “grande benfeitora”. Tudo isso a pagar “com preces fervorosas ao Onipotente pelo descanso eterno de sua alma”.
Não foi o que aconteceu. Seu legado produziu em Vassouras, pela fartura extraordinária de dinheiro, o que as cidades pobres geralmente debitam à escassez de verbas. As chácaras que ela doou se dissolveram na mixórdia urbana. Suas terras abrigam hoje o novo Fórum, o quartel da Polícia Militar, a Delegacia Policial, instalada numa casa de madeira cuja cadeia foi embargada por falta de segurança, e os alicerces amarelos da Delegacia Legal, obra inacabada do governo Anthony Garotinho, que repousa num leito de capim. À sombra dos prédios públicos, surgiram uma emissora de rádio, o reservatório da Companhia Estadual de Águas e Esgotos, o Centro Espírita Fraternidade de Francisco de Assis e um condomínio de casas populares da prefeitura.
A posteridade não ignorou inteiramente os propósitos educacionais de Eufrásia. Ao contrário, loteou-os entre uma escola municipal, um colégio estadual, uma creche, um CIEP, uma unidade do Senac e uma filial da Sociedade Pestalozzi. Também estão nas terras da benfeitora as sobras de um circo armado há mais de cinco anos e o Boa Sorte Malha Clube, que, segundo o tabelião Pedro Ivo Costa, “nem dá para chamar de clube. É um velhinho de 80 anos com uma quadra de 5 metros por 30”. Grande mesmo é o Ginásio Eric Tinoco Marques, que hospeda este ano o campeonato estadual de futebol de salão. É mais conhecido por “Sombrão” por estar no latifúndio da Universidade Severino Sombra. Entre ele e o Estádio Municipal Ernani do Amaral Peixoto, a divisória é o Parque Ecoturístico do Trabalhador, seguramente a maior aglomeração de virtudes cívicas que se pode concentrar numa placa. Pena que até agora, por trás dela, só existam barrancos corroídos por enxurradas e torneios de motocross, depósitos de material de construção tomados por lagartixas e um viveiro de mudas sem mudas, depois que incêndios propositais demoveram as autoridades da idéia de reflorestar o morro da Vaca.
Bem nesse morro ficavam os fundos da chácara de Eufrásia. Ele foi escalavrado pelo Clube Vassourense que, autorizado a rasgar um campo de pelada, largou a terraplenagem pelo meio. Na frente, um vigia municipal se acomodou numa casa de tijolos aparentes, cerca de arame farpado e galinhas no terreiro, com todo o jeito de que pretende ficar ali para sempre. Uma favela desponta na vizinhança.
O Eco-Parque, como o nome diz, tinha as melhores intenções. Ele resultou de uma “desapropriação amigável”, proposta por Pedro Ivo da Costa quando prefeito. A desapropriação, em dinheiro de hoje, equivaleria a quase 800 mil reais, a serem saldados em duas ou três parcelas. O mandato de Costa terminou, elegeu-se prefeito um adversário e o pagamento não foi feito. Duas eleições depois, esse adversário, Marcelo Silva Dias, virou vice do prefeito Costa. Mas a notícia da reconciliação, pelo visto, nunca chegou ao Eco-Parque, já que a indenização não foi paga.
A invasão das terras não se deve ao crescimento vertiginoso de Vassouras. Longe disso. A cidade tem hoje 33 mil habitantes, enquanto, no censo de 1872, o ano em que Eufrásia Teixeira Leite começou a arrumar a mudança para Paris, eram 39 mil moradores. Com os cafezais transformados em pastos baldios, e o território rachado em quatro municípios, a cidade invadiu seu próprio centro histórico. E marchou sobre as terras doadas por Eufrásia, onde cada palmo foi reiteradamente garantido no testamento por cláusulas de “inalienabilidade absoluta e insubrogabilidade”, ou seja, por proibição de venda e transferência de posse. No documento, essas palavras se repetem dez vezes. Referem-se não só aos imóveis como aos recursos financeiros usados para adquiri-los. Não adiantou nada.
“Parece que Eufrásia Teixeira Leite fez da cidade de Vassouras sua herdeira universal”, constataram as historiadoras Miridan Britto Knox Falci e Hildete Pereira de Melo, que há seis anos mapeiam o labirinto do inventário. “Como advogado, não acho que o testamento tenha que ser cumprido ao pé da letra, é para ser interpretado”, explica Humberto Mandaro Sobrinho, que acumula a provedoria da Santa Casa da Misericórdia com a Secretaria Municipal de Administração. “Nem tudo o que ela exigiu faz muito sentido hoje.”
Eufrásia, no entanto, pediu por escrito a seus testamenteiros, à Santa Casa e, em última instância, ao “juiz da Comarca” que velassem “pelo fiel cumprimento das obrigações e encargos” do testamento. Queria fundar em Vassouras dois internatos, onde 100 crianças pobres tivessem casa, comida, educação primária e treinamento profissional até a maioridade. Botou até o currículo no papel. No Instituto Feminino, cinqüenta órfãs ou desvalidas aprenderiam também a “lavar, engomar, coser, cortar e bordar”. Era essa a sua concepção de “ensino profissional doméstico”. No Instituto Masculino, cinqüenta meninos treinariam “artes mecânicas”.
Para garantir isso, ela ordenou a liquidação total de seus bens, garantindo “a importância em dinheiro que se tornar necessária” para construir os institutos. Assegurou a cada colégio uma renda vitalícia de 1 mil contos de réis, lastreada em apólices da dívida pública da União Federal, com juros de 5% ao ano. Ressalvou que, “além disso”, os colégios poderiam ter quantos “contribuintes” quisessem, desde que não discriminassem os alunos gratuitos e nada fosse vendido ou trocado.
A Irmandade das Missionárias do Sagrado Coração de Jesus, incumbida de educar as meninas, ganhou de quebra 314 mil metros quadrados contínuos de terrenos em Vassouras, referentes a duas imensas chácaras encostadas no centro histórico. Já a Santa Casa recebeu 100 contos de réis em apólices, com juros de 5% ao ano. Pelos cálculos dos economistas Reinaldo Noel Barbosa e Caroline Silveira de Camargo, esse valor com juros e correção monetária hipotética (que os brasileiros de 1930 nem podiam conceber) equivaleria hoje a mais de 14 milhões de reais. Com eles, a Santa Casa recebeu “o direito e o dever” de zelar pelo cumprimento de todas as cláusulas testamentárias, e a prerrogativa de se apropriar de todos bens, “com os respectivos rendimentos”, que não fossem usados como ela queria. Foi por esse atalho que a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia acabou herdando as três maiores fatias da fortuna de Eufrásia.
Isso ocorreu porque os salesianos, da congregação religiosa designada para assumir o Instituto Masculino, recusaram, de pronto, a herança. “A informação que tenho é de que foram feitas algumas exigências que os salesianos não aceitaram”, foi o que disse a professora Denise Campello Taraciuk, do Memorial Histórico mantido pelo centenário Colégio Santa Rosa de Niterói, quando a pergunta lhe chegou por e-mail, sete décadas depois do “não” lacônico, rabiscado à mão na margem da consulta feita pelos testamenteiros. “Não tendo logrado de V. Reverendíssima o favor da conferência pedida e marcada já duas vezes”, “e desanimado de obter o favor da referida conferência”, o advogado Antônio Fernandes pedia pelo menos uma decisão formal. Os salesianos retrucaram que a herança “não se podia aceitar”.
Rejeitada, essa parte da doação caiu automaticamente nas mãos da Santa Casa. Dezoito anos mais tarde, sem que o colégio saísse do papel, o testamenteiro Raul Fernandes entregou a tarefa ao Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o Senai. “Foi fácil porque Azuil Moreira Lasneau era, ao mesmo tempo, provedor da Irmandade e diretor do Senai”, lembra o provedor Humberto Mandaro Sobrinho. Nessas circunstâncias, “o contrato pode até ter sido de boca”. O fato é que, em 1951, no registro do Correio de Vassouras, o “velho sonho da cidade se tornou realidade”. Nele funciona agora o Centro de Tecnologia de Alimentos e Bebidas do Senai. “Com 4 200 matrículas, temos alunos do Brasil todo e até de alguns países latino-americanos”, afirma o gerente-executivo Ary Pinheiro de Almeida Filho.
O Centro de Tecnologia tem 15 mil metros quadrados de área construída, reputação de instituição modelar, instalações de concreto e vidro, oficinas de pães, massas, molhos, chocolates, salsichas, refrigerantes e cervejas. Ele se livrou, graças à Lei de Diretrizes e Bases, do ensino fundamental gratuito para os pobres. Mas conservou o nome de Instituto Masculino e mantém sessenta estudantes gratuitos no departamento de informática. O único problema que Eufrásia lhe legou, reconhece Almeida Filho, foi ignorar onde começam e acabam seus 240 mil metros quadrados de terreno. “O pior é que, como somos auditados pelo Tribunal de Contas, deveríamos conhecer nosso patrimônio, mas o terreno onde estamos não é nosso, de papel passado.”
O Instituto Feminino foi mais longe em todos os sentidos. As Missionárias do Sagrado Coração de Jesus, que administram colégios Regina Coeli no Rio, São Paulo e Minas Gerais, tomaram posse em 1939 do edifício que os testamenteiros mandaram construir em Vassouras para elas. O prédio custou 3 160 contos de réis. Localizava-se numa chácara de 73 mil metros quadrados e estava avaliado em 44 contos de réis. O terreno se derramava numa propriedade vizinha de 240 mil metros quadrados, a Chácara da Hera, antiga residência dos Teixeira Leite.
Seis anos depois, a prefeitura desapropriou 43 mil metros quadrados do Instituto Feminino, a pretexto de abrir ruas e erguer o estádio municipal. Furou-se assim o bloqueio jurídico, mantendo-se apenas 17,8 mil metros quadrados subordinados às cláusulas de “inalienabilidade absoluta e insubrogabilidade”. O decreto de desapropriação atingia também as casas de duas famílias vassourenses, os Nóbrega e os Silva Telles, que recorreram à Justiça. Só a congregação do Sagrado Coração de Jesus engoliu calada a sua taça de fel. E, graças a esse desapego material, em 1971, a Fundação Universitária Sul Fluminense, do general Severino Sombra de Albuquerque, arrematou em hasta pública dois pedaços desmembrados: um lote de 25 e um de 30 mil metros quadrados. Pagou por eles 75,7 mil cruzeiros novos, ou seja, 68,4 mil reais. As áreas se tornaram “autônomas”, graças ao parecer de um engenheiro que, ironicamente, se chamava Joaquim José, como o pai de Eufrásia. Seu sobrenome, por coincidência, era também Sombra de Albuquerque. E assim as cláusulas passaram a levar uma existência errante, pois migraram para os bens a serem “adquiridos com o produto da arrematação judicial”, sem se dizer quais eram.
Foi esse o primeiro passo para que o Instituto Feminino viesse a ser o Colégio de Aplicação. Em 1991, as freiras deram por encerrada a experiência filantrópica. Saíram levando os móveis e por pouco não embarcaram no caminhão de mudança, pela pressa, o piano Henri Hertz que foi tocado nos bailes dos Teixeira Leite para deleite do conde d’Eu, o marido da princesa Isabel. Elas entregaram as chaves, como previa o testamento, à Santa Casa.
Sob a gerência da Irmandade da Santa Casa, em seis anos o instituto acumulava 200 mil reais de dívidas e salários atrasados. Então, em 1997, o general Severino Sombra propôs incorporar o chamado “prédio das irmãs” à sua Fundação Educacional, em regime de comodato. Alegou necessidade de espaço, porque a Fundação estava prestes a ganhar o estatuto de universidade. A essa altura, Severino Sombra já anexara o palacete do barão de Massambará como faculdade de medicina, a casa do barão de Araxá como Colégio de Aplicação, a chácara Edgard Romero como um campus que devastou todas as árvores do terreno, e a chácara do cantor Vicente Celestino como Hospital Universitário. Atualmente, a Fundação reforma a casa do barão de Itambé, jóia do exibicionismo cafeeiro no século XIX, para transformá-la em centro cultural. Tudo isso em pouco mais de trinta anos.
O general Severino Sombra chegou a Vassouras, no fim dos anos 60, falando em trocar um passado de títulos nobiliárquicos por um grandioso porvir de diplomas do curso superior. Vassouras seria a “Coimbra brasileira”, um sonho trazido de seu exílio em Lisboa, como separatista de 1932. Era autor de um livro respeitado sobre a história da moeda no Brasil colonial e vinha de uma tentativa abortada de abrir uma faculdade de filosofia em Minas Gerais. Trazia um mandado do Ministério da Educação para dissipar, com uma válvula de escape no interior, a pressão por vagas dos vestibulandos nas escolas de medicina do Rio. Com a encomenda urgente, ostentava o poder de destombar os bens de Eufrásia que lhe atravancassem o caminho.
A universidade que ele tirou do nada tem hoje 4 700 alunos (contando com as matrículas do colégio) e 1 500 funcionários. Só perde, em empregos, para a prefeitura. Sua reitoria ocupa a estação do trem. Seu principal endereço, a avenida Expedicionário Oswaldo de Almeida Ramos, aberta por ocupações informais à margem da via férrea, converteu-se, com o vai-e-vem da estudantada, no Baixo Vassouras. Chamada na cidade de “Broadway”, a via é uma passarela movimentada, com as calçadas estreitas entupidas de mesas dos bares. Inúmeros também são os manequins de branco nas portas das lojas, envergando jalecos, toucas e máscaras cirúrgicas. A universidade que leva o nome de Severino Sombra oferece 22 cursos de graduação e dois de mestrado. A comenda mais valiosa concedida pela Câmara de Vassouras se chama, igualmente, General Severino Sombra. Falecido em 2000, aos 93 anos, o militar teve seu féretro acompanhado por cinco mil pessoas, e ele foi enterrado em reportagem do Correio de Vassouras como “um do maiores empreendedores que o município já conheceu”.
“Nós arrematamos aquelas terras em hasta pública e a Santa Casa não nos deu o colégio de mãos beijadas”, argumenta o professor Américo da Silva Carvalho, sucessor do general na presidência da Fundação e na reitoria. A sua mãe era empregada doméstica e ele, que entrou na Severino Sombra como servente, tem diplomas de contabilidade e administração. A escola de samba do Madruga procurou resumir sua vida com o enredo “De Servente a Reitor”. Metido em ternos que lhe conferem a aparência humilde e severa de um pastor pentecostal, ao vivo o reitor parece menor do que nos retratos coloridos, tirados de baixo para cima e, aparentemente, obrigatórios nas paredes da universidade.
Carvalho acha que, apesar das voltas que deu, “o dinheiro continua sendo usado para os fins que Eufrásia determinou”. Alega que “essas operações foram necessárias para manter a Santa Casa”. E que “não podemos culpar o passado nem o presente”. Por causa dessa “ordem natural das coisas”, hoje o colégio mantém 27 meninas pobres, herdadas das freiras – o que é pouco mais que a metade do quórum estipulado em testamento. “Elas recebem alimentação, teto e educação grátis até a universidade”, diz Carvalho. “São meninas que encontramos no internato, algumas com 3 anos de idade, e até os 18 moram ali”. Três alunas dessa cota estão cursando psicologia, enfermagem e administração, prova de que o Colégio de Aplicação oferece “mais do que prendas domésticas”. Em todo caso, “as instalações nem permitem mais manter cinqüenta internas”.
Com a pronta retirada dos salesianos e a longa evaporação das missionárias, o certo mesmo é que o espólio de Eufrásia encheu os cofres da Santa Casa. Foi com os recursos inalienáveis e insubrogáveis da milionária que o Correio de Vassouras pôde estampar em manchete, em junho de 1937, que a Fundação promovia “o lançamento da pedra fundamental do Hospital Eufrásia Teixeira Leite”. Houve na ocasião missa campal, o provedor Félix Machado foi reeleito, “como era de se esperar”, e a cidade tomou “aspecto festivo”. O hospital saiu por 6 mil contos de réis – uns 300 quilos de ouro. Com 200 leitos, salas de raio X e laboratórios para exames clínicos, ele estava equipado para fazer 2 300 atendimentos por mês. Aninhava-se entre velhas árvores da chácara de João Quirino da Rocha Werneck, o segundo barão de Palmeiras, comprada, é claro, com o dinheiro de Eufrásia. Nas palavras do senador José Eduardo Macedo Soares, o hospital era “a maior e mais moderna organização hospitalar do Estado do Rio”.
Como o Instituto Feminino, o hospital foi feito para durar. Ainda estão em bom estado as pastilhas brancas do chão e os corredores de pé direito alto são ventilados por grandes janelas basculantes. Localizado na divisa de uma rodovia federal e uma rua de tráfego pesado, o que lhe resta de terreno, um capinzal sombreado por mangueiras em que pastam cavalos e bois alheios, filtra com eficiência o ronco dos caminhões. Pela qualidade da construção, mais que pelo excesso de desinfetantes, passaram-se muitas décadas antes de se ouvir falar de infecção hospitalar em suas dependências. No jardim que separa suas alas repousa o busto de Eufrásia, esse com a seguinte inscrição: “Grande benemérita da Santa Casa de Misericórdia de Vassouras, a eterna gratidão do povo de Vassouras.”
O Hospital Eufrásia Teixeira Leite parecia inabalável durante toda a gestão do diretor Hélio de Almeida Pinto, “o melhor cirurgião-geral da região, que fazia tudo, menos abrir cérebro”, segundo Joel Venturini, o médico que, em dezembro passado, desistiu de tirar a instituição de uma incurável crise financeira. “Quando os pacientes apareciam com a boca infeccionada, meu pai arrancava até dente”, conta Hélio de Almeida Filho. Do pai, aprendeu “que a grana na casa desse tipo de médico é curta”. Helinho, como é conhecido na cidade, largou o curso de medicina na Severino Sombra após o terceiro encontro com o general, desafeto de seu pai. Os dois “nunca estiveram a 1 metro um do outro. E olha que viviam numa cidade pequena”, ele comenta.
Hélio de Almeida Pinto dirigiu o hospital por 38 anos, sem tirar férias. Dirigia um Ford 49 tão decrépito que nem lhe ocorreu levar o carro ao lanterneiro quando uma das portas desceu sozinha uma ladeira. Aprendeu a fazer uma cirurgia de apêndice em menos de quinze minutos, por falta de ar-condicionado na sala de operação. O Instituto Nacional do Seguro Social ameaçou descredenciá-lo, sustentando que ele era “maluco”, por abrir barrigas antes que a burocracia previdenciária expedisse as guias de internação. Ao conhecer-lhe os métodos, o fiscal do INSS encarregado do caso engavetou o processo. No seu tempo, quando alguma coisa apertava no hospital, o comércio da cidade corria para fornecer de graça o que faltasse no estoque ou em caixa. “O hospital era o seguro de saúde de todo mundo por aqui”, relembra Helinho.
Quando seu pai morreu de enfarte, aos 64 anos, a concorrência do Hospital Universitário já começava a minar o Eufrásia. Sem o dr. Hélio, a Santa Casa foi buscar reforços mais longe. Eles vieram, mas acompanhados de efeitos colaterais da política brasileira. Nos anos 90, o hospital ganhou duas ambulâncias do deputado Félix Nader, denunciado logo em seguida pela Operação Sanguessuga. Para guiar a frota superfaturada, o hospital só oferecia em sua folha de pagamento um único motorista. Se há aparelhos de radiologia, faltam radiologistas no hospital e os médicos trabalham anos a fio sem ver a cor do salário. Os funcionários receberam, no fim do ano passado, os atrasados até outubro, mas seis meses de 2005 ficaram para depois. A unidade de terapia intensiva, com dez leitos, tem um contrato de terceirização com uma firma de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, que reclama do prejuízo. O plano de saúde do hospital, a Cooperativa dos Médicos de Urgência e Terapia, Comed, foi repassado ao São Camilo, um hospital de Volta Redonda. O São Camilo demitiu sua administração, embolsou-lhe o cadastro e liquidou o plano.
Lendo as notícias que saem a respeito do Eufrásia Teixeira Leite, tem-se a impressão de se ver o hospital afundando e subindo à tona como um náufrago numa tempestade. Ganha equipamentos caros que nunca saem das caixas. Por causa da dívida com a Previdência, não recebe os repasses de emendas de parlamentares. Sublocado, o seu prédio sofreu intervenções apressadas que lhe mutilaram a aparência: janelas tapadas com tijolos aparentes e portas rasgadas a torto e a direito nas paredes. No ano passado, inaugurou um centro de diabetes e hipertensão que, na prática, significou a terceirização de seu anexo. Em dezembro, a Secretaria Estadual de Saúde habilitou-o a atender “pacientes de longa permanência”, eufemismo para designar os desenganados cuja família não quer que morram em casa. O governo paga 1 800 reais por mês para manutenção de cada um desses internos, e não há outro hospital no interior do Rio com 72 leitos vagos para recebê-los. Em meio aos corredores vazios, o espírito de Hélio de Almeida parece agora incorporado na obstetra Terezinha Salvador Nunes. Ela também passa o dia no Eufrásia. Quando não está na sala de parto, operando, pode ser vista logo na entrada, atrás do balcão destinado às recepcionistas. Já foi flagrada no pátio lavando ambulância. Mas, como os tempos mudaram, sem gastar um tostão em campanha, ela se elegeu vereadora em 2004.
“Quando cheguei ao Eufrásia, em 1975, ele era ainda um hospital de referência”, lamenta o ex-diretor Venturini. “Cada plantonista atendia 800 pacientes por mês.” Agora, o setor de emergência acabou e o ambulatório atende a 400 pessoas, no máximo. O Sistema Único de Saúde paga 400 reais por uma cesariana, uma operação que envolve quatro médicos e enfermeira, berçário, comida e roupa de cama. Os dois reais que o SUS garante por consulta não cobrem o custo da seringa descartável de uma injeção. O SUS não passa, sustenta o provedor Humberto Mandaro, de um meio de o Ministério da Saúde fazer filantropia com o prejuízo alheio.
A gestão de Venturini durou quatro anos. Encontrou um rombo financeiro de 4,5 milhões de reais e o reduziu para 3 milhões. Um de seus projetos para encher o caixa encalhou na mesa da Irmandade. Seria um novo cemitério com 2 mil jazigos vendidos ao preço mínimo de 3 600 reais, em 36 meses. Ficaria “num morro já degradado” – ou seja, o de sempre, na chácara de Eufrásia. Em laudo, a Fundação Estadual de Meio Ambiente não viu qualquer contra-indicação em enchê-lo de sepulturas após constatar o estado deplorável. Se a proposta vingasse, o patrimônio inalienável e insubrogável de Eufrásia se estenderia finalmente ao além-túmulo. A Irmandade de vez em quando põe o olho na sua “imensa frente”, com uns 25 mil metros quadrados, que dá para a beira da rua. Quando foi provedor, o tabelião Pedro Ivo Costa pensou em construir “um centro comercial com lojas para alugar”. Só lhe faltou fôlego financeiro.
Os paradoxos da Santa Casa pairam sobre a conversa que entra pela noite adentro. Ninguém desgruda da cadeira, estendendo até bem depois das dez o expediente do trabalho voluntário. “As Santas Casas têm mesmo administração pouco profissional”, diz o provedor. A mesa da diretoria, sem vidro, está coberta com plástico transparente, decorosamente esticado sobre o tampo de feltro verde.
Na parede dos fundos, precisando de reparos, vela o retrato a óleo de Pedro Corrêa e Castro, o barão do Tinguá que, em 1848, sacou 10 contos de réis do bolso para construir o Hospital Nossa Senhora da Conceição, o primeiro de Vassouras. Ele era um abastado fazendeiro de café, vereador e dono do casarão que hospedou o imperador Pedro II. Como Eufrásia, este seu tio-avô materno jamais se casou, mas deixou descendentes, incluindo o Pedrinho retratado no Sítio do Pica-Pau Amarelo, que o escritor Monteiro Lobato conheceu em Taubaté. Os filhos do barão do Tinguá foram gerados com Laura, a escrava da família que, depois da primeira gravidez, a mãe lhe transferiu por herança. Alforriada em 1849, Laura morreu em 1888.
Terminada a construção do hospital, ao lado da Matriz, no alto da praça que é o cartão-postal de Vassouras, a Câmara de Vereadores e a Irmandade de Nossa Senhora da Conceição não quiseram saber dos doentes. Então, o barão instituiu às pressas a Irmandade da Santa Casa para tocá-lo. Deu certo. O hospital fechou o século atendendo a pobres, escravos e ex-escravos. Atravessou dois surtos de febre amarela. Em média, seis em sete pacientes saíram vivos dali durante mais de três décadas. Em 1906, ele ganhou um anexo, inteiramente bancado pelo provedor Joaquim Gomes de Carvalho, o barão do Amparo, um aristocrata casado com uma sobrinha, Amélia Teixeira Leite, mais uma prima de Eufrásia. Quando Eufrásia fez o testamento, a Santa Casa estava sob os cuidados de Julio Corrêa e Castro, outro primo seu.
Com a transferência do hospital para a chácara das Palmeiras, virou recolhimento de idosos. Há tempos ia mal das pernas. Em sua última fase, encerrada bruscamente no ano passado por um mandado de despejo, cambaleava sobre vazamentos que, entre outros estragos, cavaram “uma cratera com 1 metro e meio de diâmetro” junto ao “baldrame que sustenta toda a parede longitudinal do corredor”. A autora desse laudo, Isabel Rocha Ferreira, é arquiteta do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, e há 24 anos tenta salvar Vassouras de si mesma. Ela conhece até os tijolos e pedras enterrados nas paredes dos monumentos arquitetônicos. Cinco anos depois de assinar esse ultimato, sem que a Irmandade se mexesse, ela mandou tirar os 68 idosos que moravam lá, pagando mensalidades de 200 reais. O bota-fora foi por ordem judicial. Ou, como ela diz, “na força bruta”. Transferidos no fim do ano passado para uma ala vazia do Eufrásia, os internos escaparam no último Carnaval do desmoronamento do telhado, lambido na madrugada da Terça-Feira Gorda por um incêndio para lá de suspeito. “Parece que estou ouvindo o asilo dizer ao hospital ‘eu sou você amanhã’, e o impressionante é que a cidade não reage”, resume Helinho.
Nem parece a Vassouras que, em agosto de 1937, enxotou os advogados da baronesa de São Geraldo e da viscondessa de Taunay que, como legítimas Teixeira Leite deserdadas por Eufrásia, tentaram reabrir, depois da primeira derrota judicial, a impugnação do testamento. “O povo, sabedor disso, aglomerou-se diante do Fórum em altos gritos de protesto. O comércio fechou e as casas de família cerraram suas portas”, noticiou o Correio de Vassouras. O juiz pediu reforço policial. O delegado alegou que os soldados estavam fora da cidade. Um transeunte devidamente identificado declarou ao repórter que, “se os advogados voltarem a Vassouras, serão mortos”.
O processo de impugnação atribuía a filantropia de Eufrásia a “uma moléstia crônica, de natureza gravíssima, que se veio processando com lentidão, aniquilando a paciente não só fisicamente como também mentalmente”. Em outras palavras, ela sofria dos rins. A pendenga durou seis anos e teve o efeito paradoxal de manter na causa por mais de duas décadas os irmãos testamenteiros Antônio e Raul Fernandes – que também eram, como todo mundo nessa história, primos de Eufrásia. Antes que os parentes chegassem para o velório de Eufrásia, Antônio fugiu com o envelope azul que, na mesa-de-cabeceira, guardava a última vontade da cliente. Raul continuou desmanchando os nós da herança através das duas décadas em que foi consultor-geral da República, constituinte em 1934, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e ministro das Relações Exteriores nos governos Dutra e Café Filho.
Nem assim as coisas saíram como Eufrásia arquitetara. Ela estava habituada a mandar, pelo menos, em suas coisas. Órfã aos 23 anos, e independente para o resto da vida, ela saiu de Vassouras em 1873 e só voltou de vez em meados de 1920, assim mesmo porque se enredou durante a estada nos problemas renais que iriam matá-la. Estava fora do Brasil quando acabou a escravidão, caiu a monarquia e os levantes militares anunciaram o fim da República Velha. Nesse meio tempo, pode ter aprendido a lidar com um mundo que lhe deu muito lucro ao comprar anilina na Alemanha antes da guerra de 1914, e lhe custou o confisco pela Revolução de 1917 dos valores que investiu na Rússia czarista. Mas não se preparou para apostar num Brasil em que os políticos estavam às vésperas de despir de vez suas casacas. Nem estava treinada para os setenta e tantos anos de inflação de 21 quintilhões por cento, que triturariam suas apólices do Tesouro Nacional, sempre sob o manto da inalienabilidade e da insubrogabilidade. Ou adivinhar que, um dia, as Santas Casas deixariam de ser dirigidas por seus mantenedores.
Eufrásia não entendeu o futuro, e o futuro parece entendê-la cada vez menos. No ano passado, a Secretaria Municipal de Cultura promoveu um concurso para estudantes do ensino médio, no sesquicentenário de Vassouras. Tema: “Quem foi Eufrásia Teixeira Leite?” A Secretaria recebeu 290 redações de dez linhas. O assessor de imprensa Antônio Couto perdeu a conta das que descreviam a personagem como “uma grande fazendeira”, que deixara “uma fortuna para um burro chamado Pimpão”. Venceu o texto intitulado “Eufrásia, uma jovem de personalidade”.
Os ossos de Eufrásia foram enterrados em Vassouras no mausoléu de seu avô, o barão do Itambé. Como está sem lápide indicativa, perguntar onde estão embatuca os provedores da Santa Casa. Mandaro sugere que, no testamento, ela exigiu o anonimato póstumo, ao encarregar a Irmandade de zelar por seus restos. Falso. Eufrásia se limitou a “rogar” que fossem trasladados para o jazigo da família, se a enterrassem no Rio. “Hoje em dia, seu sepultamento parece ser de indigente”, protesta Ernesto Catharino em Fragmentos de uma Existência, livro desconexo, mas imprescindível, que circula em xérox entre os interessados em conhecer a vida de Eufrásia: a modesta edição do autor sumiu até do memorial na Casa da Hera.
Ao pesquisar a vida do abolicionista Joaquim Nabuco para a coleção Perfis Brasileiros, a historiadora Angela Alonso diz que ficou “fascinada com ela, mas tinha que escrever sobre ele”. Eufrásia, a namorada de Nabuco, rouba a cena em 52 páginas do livro, publicado pela editora Companhia das Letras. O romance com Nabuco deslancha a bordo do navio que os levou à Europa em 1873, ela de mudança, ele de turista. O caso durou catorze anos, entre noivados, rompimentos e passeios pelo Bois de Boulogne, os canais de Veneza e os lagos suíços. Parece ter chegado às vias de fato numa temporada carioca, quando se encontraram no Hotel dos Estrangeiros, no Alto da Boa Vista. Dali para a frente, a correspondência deles muda de tom, como se pode constatar nas 28 cartas de Eufrásia arquivadas na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. “Nem penso em outra coisa senão na Tijuca e em tudo o que passou”, ela escreve a Nabuco, de Paris. “Eu não o acuso, a culpa é toda minha se eu não soube resistir, devia ter evitado o perigo.”
Ela foi autoritária, ou pelo menos estava acostumada à obediência alheia. Viva, controlava de longe o caseiro Manoel Rabelo, com instruções detalhadas para não se esquecer de pôr remédio nos livros, cuidar do jardim e expulsar intrusos. Antes de morrer, procurou dar um destino definitivo à casa de seus pais, “com os móveis, a biblioteca, a roupa branca e a outra”. Pagava fartamente pelos serviços que cobrava com rigor. Ao ex-escravo Ramiro Bonfim, legou uma casa “na Ladeira da Misericórdia”. A Cecília Bonfim, filha de Ramiro e sua afilhada, deixou 30 contos de réis em apólices. Aos pobres de Vassouras, 20 contos, em espécie. Aos mendigos da rua Bassano, 20 mil francos. Não se esqueceu de estabelecer que, até morrer, “os pretos” Herculano e Francisco Vicente morariam na chácara, com uma pequena renda. E que as frutas do pomar estariam à disposição, para vender “ou gozar”.
Foi com essas providências que ela conseguiu salvar os únicos atestados bem conservados de sua vontade. A Casa da Hera, convertida em museu, com os 32 cômodos e as 62 janelas, parece parada no século XIX. É verdade que seus 240 mil metros quadrados se reduziram a 33 mil. Mas, em 1952, Raul Fernandes providenciou seu tombamento, o que acabaria por incorporá-la ao Iphan, resgatando-a da sina do Instituto Feminino. Foi sua sorte. Ficaram na biblioteca os 890 livros do comendador Teixeira Leite. O quarto de costura guarda vestidos cujas medidas atestam o desvio de coluna, que tirou do mercado matrimonial, por deformação da bacia, sua irmã Francisca Bernardina. Desabitada, a mansão resistiu às mudanças de gosto e hábitos higiênicos adotados pela elite brasileira desde sua construção, 135 anos atrás. Segundo o arquiteto Augusto da Silva Telles, autoridade em residências senhoriais do vale do Paraíba, ela é “a única que se apresenta com o tratamento original de seu interior e mobiliário autêntico”.
Pela Casa da Hera, tiveram outras mulheres o mesmo cuidado obstinado de Eufrásia. Durante dezesseis anos, a casa esteve sob a direção da arquiteta Isabel Rocha, que defende palácios dos outros como se fossem seus. Enquanto isso, ela mora com a mãe, em Barra do Piraí, num sobrado no qual os quilométricos trens de minério, ao passar do outro lado da rua, fazem tilintar os copos nas prateleiras. A diretora arrumou a Casa da Hera como se, a qualquer momento, fosse receber Eufrásia.
A verossimilhança é tão forte que se materializou, em 1989, quando a museóloga Ely Gonçalves assumiu o cargo, trocando o Rio por Vassouras e a coordenação de museus brasileiros pela Casa da Hera. Lá, montou o Chá Imperial e passou a servir as refeições na cozinha teatralmente, com funcionárias em trajes de mucama. Os fazendeiros da redondeza chegavam a lhe pedir receitas de doces que ela, na verdade, encomendava em doceiras locais. Desligavam-se, nessas ocasiões, as lâmpadas elétricas. E ela se apresentava como Conceição de Andrade Pinto, anfitriã do Segundo Reinado, trajando o guarda-roupa de Malu Mader na novela Força de um Desejo, emprestado pela Rede Globo. Falava como amiga íntima de Eufrásia, e comentava o namoro dela com Joaquim Nabuco como se trocasse confidências.
Como só cabem 18 pessoas nos eventos, a Casa da Hera passou a ter filas na porta. Ely mesma se espantava: “Meu Deus, isto aqui é um museuzinho do interior!” Ao fundo, um aparelho de som fazia entrar pelas janelas o batuque da senzala – até o sábado em que um comensal levou tudo muito a sério e fulminou-a com a frase: “Os escravos lá, sofrendo, e a senhora aí, servindo bolinhos.”
Outra mulher que entendeu bem Eufrásia foi sua empregada – e herdeira – Cecília Bonfim. Seis anos depois do testamento, ela chamou um escrivão para ditar seu codicilo. Tinha 55 anos, e falava um português que as longas temporadas parisienses tinham misturado para sempre com palavras em francês. Usou, no intróito, quase as mesmas palavras da patroa: “Temendo a morte, que é certa, embora incerto seja o dia.” E deixou 100 mil réis aos pobres de Vassouras, “em esmolas de 5 mil réis cada uma”. Ou seja, sem intermediários. Dessa história, Cecília Bonfim foi a última a provar que sabia o enredo.