Após o primeiro livro, Mailer acreditou que iria ser o melhor romancista de nosso tempo
Os outros e o morto
Lembranças de encontros e conversas com Norman Mailer, que morreu em novembro, aos 84 anos
| Edição 15, Dezembro 2007
SOTAQUE TEXANO
Uma tarde, entrei numa cafeteria na esquina da Rua 4 com a Sétima Avenida e sentei ao lado de dois homens. Quando começamos a conversar, um deles falava com um pesado sotaque texano, e eu lhe perguntei de onde era.
– Nova York – respondeu ele.
– E onde arranjou esse sotaque texano? – perguntei.
– Estive no exército.
– Mas por que havia de arranjar um sotaque texano no exército? – perguntei. Tenho certeza de que eu tinha uma expressão muito intrigada no rosto.
– Era uma camuflagem, porque, se você é judeu e entra para o exército, é chamado de tudo, todos implicam com você e dificultam a sua vida. Então eu fazia de conta que era texano.
Ele disse que já tinha saído do exército uns oito meses antes, mas que ainda não se livrara do hábito. Então nós nos apresentamos. E ele me disse que o seu nome era Norman Mailer.
MARLON BRANDO, ator
SEU LIVRO É UMA MERDA
Numa festa em Manhattan, Panna Grady, uma anfitriã literária de beleza exótica, mas irresistível, enchera o seu apartamento com os grandes nomes da cultura do período. Norman Mailer me disse: “Burgess, o seu último livro é uma merda”.
ANTHONY BURGESS, escritor
OBTUSAMENTE CATEGÓRICO
Na época, estávamos morando num desses prédios de pedra, antigos casarões convertidos em prédio de apartamentos, na Pierpont Street, cuja tranqüilidade habitual foi destruída numa certa tarde, por uma discussão aos berros no corredor de entrada. Achando que uma irrupção de violência estava a ponto de acontecer, abri a porta e encontrei um homem baixo, de uniforme do exército, sentado na escada com uma jovem e linda mulher que reconheci: era a nossa vizinha do andar de cima. Pararam de discutir assim que me viram, de maneira que achei que estava tudo sob controle e voltei para o nosso apartamento. Mais tarde o jovem soldado, a essa altura sem uniforme, me abordou na rua e se apresentou como escritor. O nome dele, me disse, era Mailer. Tinha acabado de ver a minha peça Todos Eram Meus Filhos. “Eu seria capaz de escrever uma peça como a sua”, disse ele. Foi uma afirmativa tão obtusamente categórica que comecei a rir, mas ele estava falando sério, e na verdade ainda passaria muitos anos fazendo tentativas intermitentes de escrever peças teatrais.
ARTHUR MILLER, dramaturgo
O OBJETIVO
Eu tinha escrito uma nota sobre ele na seção, quando o seu primeiro livro, Os Nus e os Mortos, foi publicado e se transformou em best-seller. (“Mailer é um homem de 25 anos e boa aparência, olhos azuis e orelhas grandes, uma voz suave e modos diretos. Mailer tem a desconfortável sensação de que Dostoievski e Tolstoi, somados, escreveram tudo que valia a pena ser escrito, mas ainda assim pretende continuar a produzir romances.”) Depois disso, embora ele me tenha dito que não tinha em grande conta o meu “ouvido” para o que ele dizia, ficamos amigos. Fiz longas caminhadas com Mailer. Dissemos um ao outro o que queríamos. Eu disse que queria ser “a melhor repórter mulher do mundo”. Ele dizia que iria ser “o melhor romancista do nosso tempo”.
LILLIAN ROSS, jornalista
INTERESSANTE E CANSATIVO
Conheci Mailer na casa do romancista Vance Bourjaily. Vance e a mulher tinham organizado uma espécie de salon literário de Nova York, que buscava conectar escritores a outros escritores, mais que professores a escritores.
Mailer me conta que fiquei curioso em saber a sua idade e a dos seus pais. Diz que calculei que iria “ganhar” pois, estatisticamente, tinha probabilidade de viver mais do que ele. Acho que essa história antiga tem uma verdade limitada.
Anos mais tarde, Mailer me contou: “Achei que você era o diabo”. Eu o achei interessante, embora cansativo.
GORE VIDAL, escritor
SENSIBILIDADE NO ROSTO
Vi um sujeitinho magro sentado no sofá. Eu sabia que ele tinha 28 anos, mas parecia muito mais novo. O menino prodígio usava uma camisa de flanela quadriculada e calças de veludo, bem folgadas no seu corpo fino. Ele olhou para mim, e os seus olhos eram lindos, não só no azul da cor, mas também pela expressão suave, quase melancólica. Ele era bonito, com um nariz forte, uma boca bem formada e sensual, e um queixo delicado, com uma pequena covinha. Tinha cabelos castanhos encaracolados e abundantes, que na mesma hora eu quis tocar, e um sorriso caloroso que enrugava os seus olhos. Havia uma sensibilidade no seu rosto a que eu correspondi na mesma hora.
ADELE, a segunda das sete mulheres de Norman Mailer
O VERDADEIRO ELOGIO
Norman Mailer me cumprimentou por um conto intitulado “A chama que lembra uma jóia”, que eu acabara de publicar na New World Writing. Ele me fez o único elogio autêntico que um escritor pode fazer a outro: disse que teria adorado ter sido ele o autor daquele conto. Fiquei tão contente que voltei direto para casa. Queria deixar aquela reunião com uma impressão feliz.
LOUIS AUCHINCLOSS, escritor
ATENTO E CENTRÍPETO
Mailer apertou a minha mão com firmeza, sorriu, fitou-me por algum tempo com olhos aparentemente simpáticos e interessados. (Não são olhos notáveis, se posso me contradizer.) Meu nervosismo desapareceu quase instantaneamente e dali a mais um pouco nós – três ou quatro de nós – já estávamos conversando sobre livros (dele), Shakespeare, o teatro, a última guerra. Ele nos falou de algumas das suas experiências da guerra, de como estavam ligadas ao seu famoso Os Nus e os Mortos.
Não me lembro de nada especialmente brilhante ou memorável que ele tenha dito, talvez porque ele mais escutou do que falou. Achei que era desnecessariamente paciente e tolerante; teve que ouvir algumas besteiras medonhas. Era um jovem simples, falando sobre a sua vida fácil no exército, sobre o fato de não entender como alguém poderia desgostar daquilo (ele só foi convocado depois do fim da guerra). Outro sujeito, um idiota insolente, soprando fumaça na cara de Mailer e em sua taça de vinho, descreveu em prolongados detalhes a sua experiência de motorista de táxi (Mailer parecia sinceramente interessado).
Mailer tinha cabelos encaracolados castanho-claros, um rosto pálido encrespado, de aparência pouco saudável, olhos castanhos suaves, orelhas grandes de abano, ombros redondos, mãos pequenas. Não era alto, ficava sempre de pé em posição curvada, com a cabeça entre os ombros proeminentes, mãos nos bolsos, queixo no peito, cigarro pendendo da boca, a atitude e a postura de um homem atento e centrípeto. Usava um terno marrom-escuro, amassado, sapatos tão carentes de graxa quanto os meus.
EDWARD ABBEY, escritor e ambientalista
TREPAR DÁ STATUS
No jantar, na nossa casa, e mais adiante, no seu discurso no Mayfair Theatre, a opinião de Mailer sobre a América confirmou que fomos embora dos Estados Unidos na hora certa. “Nos Estados Unidos, trepar virou uma coisa ligada ao status”, disse ele a uma platéia pouco receptiva. “O movimento dos direitos civis nunca resolverá nada. Enquanto as pessoas se considerarem uma minoria, não existe esperança para elas. A questão vai ser decidida por um aumento na violência. O homem moderno está ficando esquizofrênico, preso num dilema, entre o sonho que a cultura tenta lhe vender e as realidades da vida.”
JAY LANDESMAN, editor e produtor
EISENHOWER É UM POUCO MULHER
O grande herói da vida de Mailer, àquela altura, era Ernest Hemingway. Na verdade, ele chegara a propor num artigo de jornal que “papa” se candidatasse a presidente, porque “este país precisa de um homem na presidência, já que as nossas vidas passaram tempo demais sendo conduzidas por homens que eram essencialmente mulheres”. Nem é preciso dizer que abordei esse artigo na nossa entrevista:
– O que você quis dizer com homens que eram essencialmente mulheres? Quem dentre os nossos líderes é tão pouco masculino que possa ser descrito nesses termos?
– Bem, acho que o presidente Eisenhower é um pouco mulher.
MIKE WALLACE, jornalista
CÂNCER E REPRESSÃO SEXUAL
Mailer me recebeu para almoçar no Oak Room do Plaza. Norman pode-se mostrar escrupulosamente correto e extremamente polido quando não está perseguindo algum dos seus demônios prediletos. Mas, mesmo aqui, no Plaza, ele tenta, com o afinco gentil de um missionário, convencer-me de que o câncer é causado pela repressão sexual. Câncer ou não, está havendo um desfile de modas no Oak Room, e as modelos se exibem e volteiam deliciosamente, bem junto à nossa mesa, enquanto desfilam os seus atraentes vestidos. Norman, totalmente absorto e determinado a me convencer, não levanta os olhos uma vez sequer.
ALFRED KAZIN, crítico literário
POSITIVAMENTE DESALINHADO
Quando finalmente conheci o grande homem, ele estava sentado num camarim verde-catarro do New York Hall, iluminado como um galã de matinê, sendo fotografado por um profissional muito constrangido. Mailer ostentava um embaraço másculo fingido. Pediram-me que posasse junto com ele. “Você é mais bonita do que eu achava”, disse ele. “Eu sei”, respondi, lembrando as suas descrições das defensoras da liberação feminina. Minha educação em conventos impediu-me de dizer o quanto fiquei decepcionada. Esperava um homem forte, contido, nodoso, e Mailer era positivamente desalinhado. Limitei-me a dizer que os seus olhos eram menos azuis que o retoque de certas fotos coloridas me fizeram acreditar.
GERMAINE GREER, escritora e feminista
FALTA DA BEBIDA
No seu apartamento de 3º andar num prédio de Brooklyn Heights, com vista para o porto de Nova York e Manhattan, Mailer se empoleirou numa cadeira de espaldar reto e me disse que sentasse no velho sofá de veludo. “Não posso me instalar em assentos macios. Eu me contorço muito. Fico com dor nas costas”, disse ele, piscando o olho num pedido de desculpas.
A sexta mulher de Mailer, a modelo e atriz Norris Church, com seus olhos escuros, ficou imponentemente sentada nas proximidades, folheando uma corpulenta revista feminina.
O rosto de Mailer é mais delicado e menos pugnaz do que se pode esperar, o corpo mais arredondado, mais leve e diminuto. O cabelo encaracolado é branco mas abundante. A despeito do seu longo histórico de exibicionismo, já não gosta mais de dar entrevistas. Dá para sentir que estava calculando o quanto precisaria revelar dos seus encantos.
Mailer ficou observando com ar pensativo enquanto eu me regalava com a minha bebida. “É o preço terrível que é preciso pagar”, disse ele, referindo-se à sua abstinência de oito meses. “Os dias nunca duravam o suficiente, e hoje preciso trabalhar muito para ganhar dinheiro. Meus nervos foram bem endurecidos pela bebida, graças a Deus. Mas tudo bem. Só que hoje não há mais nenhuma atração me esperando no fim do dia.”
“Muito obrigada”, disse Norris. “E eu?”
“Não, o sexo é ótimo. As trepadas são ótimas. Só sinto falta da bebida, nada mais.”
MARTIN AMIS, escritor
O OBITUÁRIO
Norman Mailer estava numa livraria inglesa, falando sobre O Evangelho Segundo o Filho, a sua “autobiografia” de Jesus Cristo. Antecipando a sova que o livro levaria dos críticos, ele entoou a sua auto-apresentação em voz rosnada: “Ah, meu Deus, lá vem de novo o megalomaníaco do Mailer. Na última vez, ele achava que era Picasso, e agora acha que é o Messias”. Em vez de ler um trecho do seu livro sobre Jesus, porém, Mailer puxou o seu obituário – escrito, naturalmente, por ele mesmo. Era um relato fabulosamente burlesco de uma vida repleta de mulheres e tribos de filhos, de incontinência criativa e egoísmo, de dívidas que excediam os seus bens em cerca de 8 milhões de dólares, e de críticos que latiam pedindo o seu sangue. A última palavra foi reservada a Andy Warhol: “Sempre achei que Norman era um sujeito muito discreto, era o que eu mais gostava nele”.
ALEXANDER LINKLATER, editor
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