Pesquisa do Dr. Adrian Raine, PhD, chefe do Departamento de Criminologia da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, mostra a tomografia do cérebro de um indivíduo normal (à esquerda) comparada com a de um assassino (à direita), que apresenta baixa atividade metabólica no córtex pré-frontal pela ausência de pontos vermelhos e amarelos FOTO: CORTESIA DO DR. ADRIAN RAINE
Os que morrem, os que vivem
Champinha, estuprador e assassino, continua preso apesar de ter cumprido sua pena
Luiz Henrique Ligabue | Edição 56, Maio 2011
Ari Friedenbach passeava de bermuda, tênis e camiseta com Toddy, o labrador da família, numa manhã ensolarada de um sábado de primavera. Ele lembra bem que estava na frente do edifício Louveira, um projeto de Vilanova Artigas no bairro de Higienópolis, em São Paulo, quando olhou as horas. Era cedo, oito da manhã, mas mesmo assim telefonou para a filha, Liana. O advogado, um quarentão calvo, tinha o hábito de ligar para ela, a mulher e o filho diversas vezes ao dia. Não precisava ouvir nada de especial, um “tudo bem” e um “te vejo mais tarde” lhe bastavam.
Liana disse que estava tudo em ordem. Mas o pai estranhou o silêncio em volta dela: afinal, a adolescente de 16 anos estava num ônibus que levava jovens da Congregação Israelita Paulista a Ilhabela. Perguntou por que não havia barulho. “Estão todos meio dormindo”, ela respondeu. Fazia sentido. Despediram-se e Friedenbach continuou o passeio com o cachorro.
A mochila estava pesada. Os quilos extras faziam com que o tênis All Star de Liana, impregnado pelo pó da estrada, deixasse rastros no chão de terra. Magra e de seios grandes, a menina sempre atraía olhares. Não foi diferente naquela manhã, o primeiro sábado de novembro de 2003: o motorista da perua que a levara do centro de Embu-Guaçu até a estrada do Belvedere não esqueceria os olhos azuis, os longos cabelos castanho-claros e a pele muito branca, herança dos antepassados judeus, russos, poloneses e alemães.
O motorista se perguntou o que uma garota como aquela, de pele clara e tênis caro, estaria fazendo ali, na cidade que há cinquenta anos era um pacato vilarejo na roça e hoje é arrabalde da periferia pobre de São Paulo. Ia com ela um rapaz de 19 anos, moreno, alto e forte, de cabelos curtos, cavanhaque e brinco de argola na orelha esquerda. Era Felipe Silva Caffé, seu primeiro namorado. Seguiam para um fim de semana longe dos pais. Estavam alegres.
O casal desceu no ponto final da van e começou a caminhada até o local onde pretendiam acampar, sob um velho caramanchão de um sítio abandonado. No final da manhã, cruzaram com dois homens e trocaram cumprimentos. Um deles era Paulo César da Silva Marques, que morava na Vila Prel, na periferia sul da capital. Semanas antes, andando ao léu pela região, Marques parou em uma pequena loja de consertos, pediu emprego e acabou lixando uma geladeira. Como fez bem o serviço, foi contratado, por 10 reais ao dia, para pintar a casa do dono da loja, que vivia em Embu-Guaçu.
Perto da casa que pintava morava o seu acompanhante naquela manhã de sábado, Roberto Aparecido Alves Cardoso, um adolescente franzino de 16 anos, cujo rosto é marcado pelos lábios grossos e uma protrusão dentária que o deixa bicudo. A mãe de Roberto, Maria, é dona de casa. Seu pai, o caseiro Genésio, aposentou-se por invalidez quando teve um derrame cerebral. Roberto Cardoso, que sempre teve dificuldade de aprendizado, deixou a escola no 4oano do ensino fundamental.
A renda da família Cardoso era completada pelo irmão mais velho, que trabalhava em uma fábrica de instrumentos musicais, e pela irmã, balconista em uma loja de bolsas. E também por Roberto Cardoso, que trabalhava como ajudante de caseiro. Ganhava 150 reais por mês e mais algumas diárias de serviços rurais. Gostava de andar no mato, caçar, fumar, frequentar bares e, vez ou outra, dançar forró. Era tido como encrenqueiro. Em 2001, se envolveu no assassinato de Liberato de Andrade. Numa rixa, deu-lhe duas facadas. Todos o chamavam pelo apelido, Champinha.
Paulo Marques e Champinha aproveitavam o sábado de sol para caçar tatu na mata. Estavam com uma espingarda velha e um facão. Ao cruzar com o casal de jovens, o mais velho perguntou a Champinha: “Quem é a gostosa?” Pelas mochilas, o mais novo concluiu: vão acampar.
Os dois amigos seguiram em frente. Foram tomar pinga na casa de um conhecido, Antônio Caetano Silva, um caseiro já com 50 anos. À tarde, veio-lhes a ideia de assaltar os forasteiros bem-vestidos. Não tiveram dificuldade em encontrá-los. À noite, entraram em ação. Com um golpe de facão, Champinha rasgou a lona da barraca. Marques entrou gritando: “Acorda! Acorda!” Cutucando o casal com o cano da espingarda, perguntou: “Quem aqui é filhinho de papai?” A moça respondeu que sua família tinha dinheiro e o rapaz disse que trabalhava. Os assaltantes terminaram a garrafa de vinho aberta pelo casal.
Com os rostos cobertos pelas toalhas que levavam, Liana Friedenbach e Felipe Caffé foram conduzidos por cerca de 2 quilômetros até o casebre de Antônio Caetano Silva. Ao lhes retirarem as vendas, se viram numa saleta com uma cadeira velha, um banquinho mal-ajambrado, duas mesas pequenas e um fogão a lenha cuja fumaça impregnava as paredes e encardia o teto. Jogados, três machados, uma enxada, duas foices e um facão davam ao lugar a aparência de depósito agrícola. Num cômodo havia uma cama de casal com várias camadas de colchões rasgados, com a espuma à vista, caixas de papelão e lixo. No outro, além da cama havia armários decrépitos.
Felipe Caffé foi levado para um dos quartos por Paulo Marques. Champinha arrastou Liana para o outro e avisou: “Abaixa a calça que eu vou te comer.” A menina, que era virgem, tremia. Foi estuprada seis vezes pela dupla durante a noite.
Às seis da manhã de domingo, os amigos saíram com o casal, andaram uma hora e entraram numa trilha fechada. Marques ia à frente com Felipe. Atrás, Champinha e Liana. O adolescente ordenou que Liana parasse. Marques, 100 metros à frente, aproximou-se de Felipe Caffé, levantou a espingarda 28 e deu-lhe um tiro na nuca. A morte foi instantânea: o cartucho havia sido carregado artesanalmente com rolimã e bucha de cera.
Paulo Marques foi embora. Champinha e Liana voltaram para a mesma casa de onde haviam saído horas antes. Passaram o domingo ali. Ele voltou a currá-la.
Ao desligar o telefone, depois de falar com Liana, Ari Friedenbach teve um sábado sossegado. À noite, não conseguiu falar com a filha: o telefone estava fora de área. Não comentou nada com a mulher, mas ficou apreensivo. No final do domingo, como o celular continuava mudo, foi para o ponto na rua Minas Gerais onde o grupo de jovens da Congregação Israelita deveria desembarcar. Não havia ninguém. O advogado ligou para a melhor amiga da filha e pediu explicações. A garota contou que Liana tinha ido acampar com o namorado.
Bateu o desespero, taquicardia. Fuçou a agenda de Liana e encontrou o endereço que procurava, o de Felipe Caffé. Foi à casa dele, na Vila da Saúde, e descobriu que o rapaz saíra dizendo que iria acampar com amigos em Embu-Guaçu. “Eles perderam o último ônibus para voltar”, pensou o pai, aliviado. “Isso já aconteceu comigo, são jovens.” Na companhia de um amigo, seguiu direto para Embu. Rodou pela cidade até as três da manhã. Nem sinal da filha.
Voltou para São Paulo e registrou um Boletim de Ocorrência por desaparecimento no 4o Distrito Policial, o da Consolação. O clima em sua casa pesou. Ilan, de 12 anos, chorou ao saber que a irmã desaparecera: ela lhe contara em segredo que viajaria com o namorado, e prometera ligar avisando que estava tudo bem. Mas o celular do garoto nunca tocou. “Relaxa, filho, eu teria feito a mesma coisa”, consolou-o Friedenbach. “Tive irmão mais velho e tudo o que você quer na sua idade é ser cúmplice dele.”
Às sete da manhã de segunda-feira o advogado já estava de volta ao Embu. No terminal de ônibus, descobriu o motorista da perua que havia levado a menina clara e de roupas boas à estrada do Belvedere. Na hora do almoço, encontrou a barraca debaixo do caramanchão, rasgada e revirada. O celular da filha estava lá.
Liana estava a 2 quilômetros dali, no barraco de Antônio Caetano Silva, que voltara há pouco. Sentada em um banquinho, de cabeça baixa, nua, ela chorava. Outro amigo se juntara ao grupo: Agnaldo Pires, um alcoólatra barbudo e desgrenhado que vivia de bicos. Champinha lhe explicou o que se passava: “É sequestro, o cara nós matou e essa eu já comi. Ela é gostosa, pode usar.” Pires, de 41 anos, abaixou a calça e atacou a menina. “Não consegui gozar porque estava bastante bêbado”, disse.
Lá ficaram o dia todo. Liana não falou nada. “Nunca ouvi a voz dela”, disse Agnaldo Pires. Antônio Caetano Silva fez comida, café e serviu a todos. Disse que não violou a menina. Champinha e Pires voltaram a agredi-la sexualmente.
Ari Friedenbach moveu mundos para buscar a filha. Pressionou as polícias Civil e Militar, o governo do estado, emissoras de rádio e televisão. Conseguiu com que helicópteros, veículos policiais e equipes de repórteres varressem Embu-Guaçu. Mais um dia se passou. E nada.
Na terça-feira de manhã, o grupo fez Liana andar 4 quilômetros. Foram para a casa de outro conhecido, Antônio Matias de Barros, dono de uma pequena casa perto de um laguinho. Ao chegar, Champinha apresentou-lhe a menina como “prima” e “namorada”.
À tarde, Gilberto Cardoso chegou ao lugar, procurando pelo irmão, Champinha. Viera avisar que havia chegado uma intimação policial, e o irmão deveria se apresentar no dia seguinte à delegacia. A polícia queria saber de Liana e Felipe Caffé. O irmão foi embora e, no meio da madrugada, Champinha decidiu voltar à casa de Antônio Caetano. Tomaram café e partiram.
Chegaram lá às cinco da manhã. Beberam outro café e Champinha saiu com Liana. Andaram 3 quilômetros e entraram na mata. Liana ia um pouco à frente. Ao passarem por um riacho, Champinha a chamou. Ela se virou, ele ergueu o facão acima da cabeça e gritou: “Agora você vai morrer!”
O golpe de cima para baixo atingiu o lado esquerdo do pescoço da garota. Ela caiu de costas e murmurou qualquer coisa. Com força, Champinha levantou e baixou a peixeira sobre ela diversas vezes. Liana conseguiu se virar e recebeu vários golpes nas costas. Uma pancada chapada, com o lado sem gume do facão, provocou o traumatismo craniano que terminou de matar Liana.
Champinha lavou a peixeira no riacho e seguiu por dentro da mata até a casa da mãe. Pouco antes de chegar, tirou a roupa suja de sangue e com ela enrolou a arma do crime. Amarrou o pacote com um arame e o pendurou dentro de um poço. Entrou em casa e dormiu. Acordou e foi se apresentar na delegacia de Embu-Guaçu, onde prestou depoimento. Satisfeita com as explicações, a polícia o liberou. Ele foi para a casa da tia, em Itapecerica da Serra.
Dias depois, a polícia chegou a Antônio Caetano, que acusou Champinha. Este foi localizado na casa da tia e conduzido à delegacia para um novo interrogatório. Confessou, então, o assassinato e levou os policiais aos cadáveres.
Ari Friedenbach tem lembranças entrecortadas dos dias de procura da filha. São flashes que lhe vêm à mente. Num deles, recorda que era noite e estava na delegacia de Embu. O amigo que o acompanhava chegou e lhe disse: “Acharam o corpo da Liana.” Ele caiu no chão e chorou compulsivamente. Levou alguns minutos para se levantar e, amparado, pegou o celular e discou para casa: “Márcia…”
Os quatro adultos envolvidos no sequestro, na sevícia e no assassinato de Felipe Caffé e Liana Friedenbach foram julgados e condenados. A pena maior foi de Antônio Caetano Silva: 124 anos de prisão. A menor, de Antônio Matias de Barros: seis anos. Paulo Marques pegou 110 anos, Agnaldo Pires, 47 anos. Roberto Cardoso, o Champinha, que tinha 16 anos de idade, foi encaminhado à Fundação do Bem-Estar do Menor para ser reeducado durante três anos, o prazo máximo permitido pela legislação.
Na campanha eleitoral do ano passado, um candidato resoluto precisava de menos de dez segundos para passar a sua mensagem no horário gratuito. Em meio a ex-jogadores de futebol, pseudocelebridades, artistas aposentados, sindicalistas, desocupados, exibicionistas e até políticos, ele dizia: “Para que não aconteça com os seus o que aconteceu com minha filha, vote em Ari Friedenbach, 2332.”
Aos 50 anos, o advogado tem as pontas dos cabelos descoloridas e o rosto está mais cheio. Seu partido é o PPS, que, nascido da implosão do Partido Comunista Brasileiro, não se distingue hoje do Democratas. Filiou-se na última hora, quando vencia o prazo de inscrição para as eleições. Quis ser deputado federal porque, justamente, não conseguiu nada dos políticos.
Desde o assassínio da filha, esteve umas dez vezes em Brasília. Levava abaixo-assinados, manifestos, participava de movimentos e comissões disso e daquilo. De concreto, conseguiu apertos de mãos e o papel de coadjuvante em fotos com espécimes da fauna política nacional.
Em São Paulo, transformou seu escritório em comitê eleitoral. O pequeno conjunto comercial fica em um pomposo prédio neoclássico na avenida Angélica, a poucos quarteirões de sua casa. Durante a campanha, a advocacia foi exercida por sua sócia em uma sala apertada, enquanto as demais dependências ficavam tomadas pelo material de propaganda.
Só dois amigos ajudavam na divulgação da candidatura, mas Friedenbach não esmoreceu: acendendo um cigarro na bagana do outro, respondia a e-mails, telefonava, planejava encontros. A porta se abriu e alguém informou que um fabricante de adesivos doaria o serviço. O advogado vibrou. “É pouco provável, difícil, mas vai dar, tenho esperança”, disse.
A campanha custou 130 mil reais. Com 85 281 votos, o advogado não se elegeu. Mas, animado, continua na sua cruzada pela mudança das leis. Ele quer que o prazo máximo de internação dos adolescentes infratores suba para dez anos e que, no caso dos crimes hediondos, os menores recebam penas de adultos.
Champinha fez 17 anos 34 dias depois de matar Liana. Nas vésperas de chegar ao limite de internação, em 2006, quando seria libertado, dois fatos se sucederam. Primeiro, houve os julgamentos de seus quatro comparsas, condenados a penas pesadas. Depois, ele fugiu da Febem, sendo recapturado no mesmo dia.
Nos programas sensacionalistas do rádio e da televisão, nas colunas e seções de cartas dos jornais, em todos os lugares se atacava a lei que colocaria o estuprador e assassino em liberdade. Dava-se aquilo que magistrados costumam chamar de “clamor popular”.
Wilson Ricardo Coelho Tafner, promotor do Departamento de Execução da Infância e Juventude, imaginou uma saída legal. Baseado em um dos laudos de avaliação psiquiátrica de Champinha, ele pediu a suspensão do prazo de internação e aplicou uma medida protetiva de tratamento psiquiátrico, com contenção. Na sequência, pediu a interdição cível. Pronto, o caso estava resolvido: o assassino virava doente mental e, na prática, continuaria preso. Bastava achar uma instituição onde pudesse ser “tratado”.
Como tal instituição não existia, o imbróglio continuou. Até o secretário de Saúde da época, Luiz Roberto Barradas Barata, foi obrigado a andar com um habeas corpus no bolso: havia uma ordem de prisão emitida contra si mesmo por não destinar Champinha a uma instituição psiquiátrica onde pudesse ser internado à força.
Foi nesse contexto que nasceu a Unidade Experimental de Saúde, a UES, onde Champinha está até hoje. A Unidade é uma Guantánamo jurídico-psiquiátrica: ela existe num vácuo legal, é um arremedo que ninguém quer desativar.
A avaliação psiquiátrica que mantém o assassino preso estabeleceu que ele tem um transtorno orgânico de personalidade. É o termo “transtorno de personalidade” que abre a brecha legal para se manter uma pessoa afastada da sociedade: na prática, a expressão quer dizer que o transtornado tem baixíssima probabilidade de recuperação e, portanto, oferece risco para a sociedade.
Ocorre que outros laudos psiquiátricos desconsideraram totalmente a hipótese de que Champinha tenha transtorno de personalidade. Esses exames atestaram que Roberto Cardoso não é um doente. Ele é um limitado intelectual, de QI 73, sendo que a deficiência mental fica estabelecida no Brasil por um QI inferior a 70. Faltaria a Champinha refinamento intelectivo: ele consegue discernir o certo do errado, mas tem uma noção precária das consequências dos seus atos. É um homem extremamente influenciável, vulnerável e, dependendo do meio em que esteja inserido, uma fonte de problemas. Ele saberia, em resumo, o que não pode fazer, mas não o porquê.
Todos os laudos concordam que Champinha não age dominado pela fúria de um louco. Quando deu repetidas facadas em Liana, não teve prazer: queria acabar com o problema, se livrar da menina da qual abusara. Nos seus termos: “Se ela saía, a polícia pegava eu.” Ou seja, se Liana fosse libertada, ele seria preso. Para um de seus avaliadores, ele contou que deu “um monte de facada, mas ela morreu antes porque a primeira foi no pescoço”. O que pode parecer indício de frieza, característica dos psicopatas, seria, no caso de Champinha, um entendimento superficial dos próprios atos.
Quirino Cordeiro, um médico forte e baixo nascido em Garça, no interior paulista, é um estudioso de presos com problemas psiquiátricos. O tema do seu doutorado, defendido na Universidade de São Paulo, foi sobre as variantes genéticas ligadas à esquizofrenia. Hoje ele é perito forense, diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental do Juquery, professor da Santa Casa e membro do Conselho Penitenciário. Com seu forte sotaque interiorano, Cordeiro explicou que o louco tem delírios, ou seja, vê coisas, ouve sons, sente-se possuído. Tem, em suma, uma experiência irreal da realidade. Doenças como esquizofrenia, transtorno bipolar ou quadros psicóticos, induzidos ou não por drogas, podem gerar esse deslocamento de realidade.
A loucura de Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, que por não ser reconhecido como Jesus Cristo assassinou o cartunista Glauco e seu filho Raoni, em março do ano passado, é um exemplo de delírio. Surtado, Sundfeld ainda roubou um carro e foi de São Paulo até Foz do Iguaçu, trocou tiros e feriu um dos policiais da fronteira na Ponte da Amizade, até ser preso. Quadros psicóticos como esse podem ou não ser revertidos por medicamentos e longos tratamentos.
No caso de Wellington Menezes de Oliveira, o autor da matança na escola de Realengo, no Rio, a perturbação mental é de outra natureza. Breno Montanari Ramos, psiquiatra forense com mais de trinta anos de experiência, acha que Wellington Oliveira é um caso clássico de transtorno de personalidade esquizoide: um doente solitário e ressentido que cria o seu mundo, e arquiteta uma vingança. Ele tem na sistematização de seus delírios uma forma de expurgar tensões internas e aliviar seu sofrimento mental. O isolamento completo de Wellington Oliveira, depois da morte da mãe adotiva, fez com que perdesse o contato com a realidade.
Ao conversar sobre as mortes em Realengo, Friedenbach se alterou. Era um final de tarde, a chuva antecipava a chegada da noite e alunas da Fundação Armando Álvares Penteado passavam, bem-vestidas e bem penteadas, em frente à sorveteria onde estávamos. “Eu sofri bullying”, ele disse, com a respiração acelerada, as sobrancelhas subitamente arqueadas, as palavras disparadas com rapidez. “Sempre fui o baixinho, o gordinho, o narigudo, o quatro-olhos. Mas não atirei em ninguém, não bati, nunca fui agressivo. Bullying, bullying, bullying, fico puto com essa história. O que temos que discutir é que há pessoas que não têm condições de conviver em sociedade.” Casos de violência mexem profundamente com o advogado.
Minutos antes, enquanto comia um biscoito, Friedenbach lembrara com deleite a época mais feliz de sua vida: quando tinha 20 anos e foi morar num kibutz em Israel. Trabalhava duro. Às seis da manhã já estava na plantação de abacaxis, onde ficava até as quatro da tarde. Depois, ajudava na oficina de tratores. Era voluntário para trabalhar durante o shabat, o dia de descanso. Fez amigos, namorou, estava realizado. Antes de voltar para o Brasil e continuar o curso de direito na Pontifícia Universidade Católica, passou três meses viajando pela Europa.
Sua experiência mais traumática, dor que ele pensava jamais voltar a sentir, foi a da perda do irmão mais velho, Ivo. Em abril de 1996, o coordenador de informática do Colégio Bandeirantes foi encontrado morto, aos 38 anos, em seu apartamento na Pompeia, intoxicado por um vazamento de gás. O golpe abalou toda a família. Friedenbach passou a chorar facilmente. Hoje tem os sentimentos à flor da pele.
Liana não virou um assunto proibido na família. Falam dela com naturalidade e afeto. O sentimento de perda bate quando Friedenbach vê as amigas da filha crescendo: “Aí lembro daquilo de que estou sendo privado.” Durante a campanha, houve quem o acusasse de usar Liana para se eleger. Sua resposta era dura, mas objetiva: “Uso, sim, para evitar que essa desgraça aconteça com os seus filhos.” Ainda nos primeiros dias de campanha, recebeu uma proposta de financiamento para trocar de legenda. A resposta foi mais ríspida: “Estou usando o nome da minha filha. Não faço concessões, não fico com o rabo preso, não entrei nisso para conseguir um emprego.” Ficou no PPS.
Friedenbach tem um expediente duplo. Às sete e meia já está na banca advocatícia, onde fica até as dez e meia, indo então para a Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho, onde ocupa um cargo de confiança. Foi nomeado pelo secretário Davi Zaia, companheiro de partido.
Trabalha na coordenação de dois projetos, o Selo Paulista da Diversidade, que certifica empresas que praticam ações de não discriminação a todos os tipos de diferenças, e o programa Pró-Egresso, que procura qualificar e reinserir ex-presos no mercado de trabalho. Ajuda também nos assuntos de ordem jurídica, que envolvem a secretaria. Chega em casa sempre tarde da noite.
Se antes dizia que só concorreria a deputado federal, hoje acha que a experiência na administração pública é rica e ajuda a entender a máquina do Estado. Ano que vem, será candidato a vereador. Levantará as mesmas bandeiras, ainda que um vereador não possa fazer absolutamente nada pela mudança da lei sobre crimes de adolescentes. Está animado com a perspectiva de se eleger.
Roberto Cardoso está desanimado. Segue em tratamento na Unidade Experimental de Saúde e não sabe quando vai sair. Vive em uma das cinco casas dentro da UES. A sua, que divide com um menor de idade, é a única com uma tela isolando-a das demais. Foi colocada porque ele está duplamente jurado de morte no sistema prisional: por ser estuprador e também por ser considerado o responsável pela criação da UES.
Todos os presos ali – hoje são seis – se sentem injustiçados. Cometeram crimes ainda menores de idade, já são maiores e cumpriram todos os prazos da recuperação socioeducativa, mas não voltaram para a rua. Estão civilmente interditados. Saem de lá somente depois que um laudo atestar que sua periculosidade cessou e um juiz endossar tal avaliação. Como cometeram crimes hediondos ou violentos, e tiveram sua sanidade mental contestada, a perspectiva é de que apodreçam ali até silenciar o “clamor popular”.
Esse Guantánamo jurídico tem na raiz a questão da menoridade penal. José Geraldo Taborda, professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, explica que, juridicamente, o Brasil passou por diversas idades criminais. Dos 14 anos previstos pelo Código Penal do Império, a idade penal passou para os 9 anos no primeiro Código da República. Depois, voltou para os 14 anos e só em 1940 é que surge a imputabilidade aos 18 anos.
Para o professor Taborda, o marco legal deveria ser os 14 anos – um pouco depois do início da puberdade. Nessa idade seria feito, caso a caso, um estudo que atestasse as reais condições de entendimento do menor infrator.
A ala contrária ao rebaixamento da idade penal alega, na substância, que diminuir a idade criminal é tirar o foco do verdadeiro problema: a falta de recursos dos adolescentes pobres. O promotor Wilson Tafner diz que 50% dos menores infratores estão detidos na Fundação Casa (antiga Febem), estão lá por crimes contra o patrimônio, 30% por tráfico de drogas, 7% por crimes contra a vida e o restante da conta é pulverizado. Cruzando esses dados com uma pesquisa do perfil dos internos, descobre-se que a grande maioria dos infratores é de jovens pobres das periferias que têm os maiores déficits de políticas públicas.
Em síntese: a baixa escolaridade, o desemprego, a remuneração baixa, as famílias miseráveis e a falta de perspectivas empurram as crianças para o crime. “Os Champinhas, os assassinos, são minoria”, disse Tafner. Ele tem razão. Mas os Champinhas existem.
Os nove internos que passaram pela Unidade Experimental de Saúde onde está Champinha chegaram lá por causa dos crimes graves que cometeram na adolescência. Lá, se depararam com condições únicas nas prisões brasileiras: salas de terapia ocupacional, de computação, vídeo, musculação e área verde. Dispõem de tal estrutura porque não estão em uma cadeia, e sim sob a égide da Secretaria Estadual de Saúde.
“Eu não conjugo o verbo perdão: quem perdoa é Deus, e espero que ele encontre Champinha o mais rápido possível para ser perdoado”, a frase incisiva saiu da boca de Ari Friedenbach, ao vivo, durante um programa policial popular. A expressão no rosto não deixava dúvidas sobre sua sinceridade. Falava da possível saída do assassino de sua filha da prisão. Ele espera que Champinha morra logo.
Durante os onze meses do luto judaico, Friedenbach ia sozinho ao quarto da filha para rezar. Passou a tomar antidepressivos e voltou à terapia, que faz até hoje. Em 2008, decidiu parar com os remédios, pois sentia que eles o amorteciam. Hoje está mais vulnerável às emoções e não se importa em chorar. Diz que se controla durante as entrevistas, para não parecer piegas nem marqueteiro.
Outro advogado formado pela universidade católica prestou atenção no caso de Champinha desde o início. Daniel Adolpho Assis, de 30 anos, trabalha no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Cedeca, de Interlagos. Em maio de 2007, quando Champinha fugiu, achou que era hora de agir. Anotou que mais de 23 meios de comunicação, entre emissoras de tevê, jornais, revistas e sites, expuseram o nome, o rosto e os detalhes do processo, o que é proibido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
O Cedeca costuma atuar em casos de grande repercussão, para promover o debate de questões básicas e difíceis. Achou no de Champinha, além dos excessos da imprensa, a oportunidade de se discutir o uso da psiquiatria contra os adolescentes infratores. Para tanto, Daniel Assis virou advogado de Champinha.
Advogando gratuitamente, Assis vai duas vezes por mês visitar o cliente. Fica cerca de duas horas e meia com ele, conversando sobre o andamento do processo, discutindo possíveis ações, transmitindo recados de parentes e escutando reclamações. No último aniversário de Champinha, levou-lhe de presente um quebra-cabeça de 500 peças que forma um mapa das Américas Central e do Sul. Com ele, mostrou o estatuto jurídico de adolescentes em vários países. O preso gostou tanto que o advogado comprou-lhe outro: um de mil peças, em formato tridimensional.
Daniel Assis fica incomodado de ter que ouvir sempre a mesma pergunta do cliente: “E aí, este ano vai?” O advogado permanece em silêncio. “Então, mais dois ou três anos eu saio?” Silêncio. “Roberto sonha em voltar para o mato”, disse Assis. Ari Friedenbach sonha em reformar as leis sobre a minoridade penal. Felipe Caffé sonhava em cursar direito e virar delegado federal. Liana sonhava em passar um ano em um kibutz em Israel.