CRÉDITO: JOÃO PINHEIRO_2021
Os resíduos do verbo tecem franjas na memória
Leda Martins | Edição 183, Dezembro 2021
O MENINO E OS DIAS
nas aragens
veleira
entrelinhas
o menino
e seu equinócio
o menino
e os dias
o livro do velho
em salivas o menino
desfolha
quantos anos o menino?
ainda não sofre
o menino
alheio à dor inquieta
que ainda de si
não se sabe
amanhece nos solfejos
o menino
arisco
ferindo no ar
um punhal de rabiscos
o filho em devires
transpira
quantos anos o menino?
voltejam sutis
as horas
curvadas de tempo
no cômodo
escombro da sala
a mãe de sua
entre bordados
morta
lá fora o remoinho
astuto
vela
quantos anos o menino?
do livro a capa
encardida
em folhos
flanela
quantos anos
o menino
em devires
inda espera?
vórtices
voragens
e trevas
quantos anos o menino
nas espirais
expira?
quantos anos o menino?
POIĒSIS 3
a poesia tenciona
a intenção poeta
ali os desejos
de desejos se roçam
ali
o tênue lume do sentido
in verso
in sano
intento
às dúvidas
e dádivas
diverge
diverte
e míngua
o tímido anelo
entre o poeta e
o que quisera sua
poesia
o poema
brinca na miragem
da língua
antes morta
na ânsia da voz
e excede
o que era impossível lembrar
sua tradução
nos trevos das líneas
o verso
alucina a forma virtual
de um desejo
e mira
o horizonte dos exílios
ali
em exímio deleite
a poesia
sacia os restos da fala
seus ruídos
sua parenta
e sem semblante
transita
fugaz
à toa
arisca
rara
inessencial
olhos da fonte
a poesia
asa sonora
de lírica borboleta
sem saber
sua hora de morrer
em tênues e fulgurantes átimos
deriva
dos tons
os odores
seus húmus
a poesia arruína
a intenção
do poeta
que se precipita
só
nas loas da vida
ceia amarga
bianda malgós
ceia sagrada
MNEMOSINE 2
Com Bandeira, Haroldo e Henriqueta
ouvi
no amanhecer
o canto das lavadeiras
madrugada afora
virando rio
os resíduos do verbo
tecem franjas na memória
tessitura imaginária
de estranho e familiar desejo
toda história é sua invenção
qualquer memória
um hiato
no vazio
e nos subúrbios da noite
eu faço versos como quem cisma
sons miragens
silêncios e vãos
delete o poema
se não tens agora
do pranto
nenhuma razão
eu vi quando amanheceu
a luz que ruiu foi assim tão tênue
o acorde que se ouviu foi assim tão breve
que em si mesmo se perdeu
e vi quando escureceu
de desencanto meus olhos
turvarão
o coração distraído
não