Papéis de Dilermando de Assis: além de anotações em Os Sertões, ele fez um índice de leitura (pág. ao lado) e comentários ao livro CREDITO: REPRODUÇÃO
Os Sertões de Dilermando de Assis
As anotações do homem que matou Euclides da Cunha, feitas num exemplar da obra-prima de sua vítima
Cristiane Costa | Edição 181, Outubro 2021
Na porta de sua biblioteca no Rio de Janeiro, o poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), afixou uma antiga tabuleta com uma ameaçadora mensagem em espanhol arcaico: “Será condenado à excomunhão por Sua Santidade todo aquele que tirar, extrair ou de qualquer outro modo alienar algum livro, pergaminho ou papel desta biblioteca, e não será absolvido até que a biblioteca esteja perfeitamente reintegrada.”[1]
Não é o único cuidado de Secchin com os 22 mil livros e documentos guardados em seu apartamento na Avenida Atlântica. Para evitar que a maresia de Copacabana danifique as obras, ele mandou instalar um grande desumidificador que, regulado para manter a umidade do ar em 40%, recolhe nada menos que 2 litros de água por dia. As janelas estão sempre fechadas, enquanto o ar-condicionado mantém a temperatura rigorosamente em 21ºC. Tanto cuidado se justifica: na biblioteca estão guardadas, além dos muitos livros raros, preciosidades como manuscritos ou cartas de Machado de Assis, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, entre outros gigantes da literatura brasileira.
O apartamento de 235 m2 ocupa um andar inteiro de frente para o mar, mas o poeta de 69 anos vive basicamente num enorme quarto e sala, com um escritório separando os dois ambientes. A biblioteca ocupa o restante da residência, mas está providencialmente longe dos olhos e dos dedos dos visitantes. As catorze estantes brancas, que vão do chão até o teto e perfazem 35 metros no conjunto, foram projetadas pelo próprio Secchin, que é também professor emérito de literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Os livros de literatura brasileira estão organizados em ordem cronológica. Na primeira estante repousam centenas de antologias e autores do período colonial. Em seguida, vêm os românticos e Machado de Assis. Na segunda estante, estão agrupados os realistas, naturalistas, parnasianos e simbolistas. Da terceira em diante, ingressa-se no século XX, finalmente, e chega-se a uma das prateleiras que mais entusiasmam Secchin: a dos livros de Euclides da Cunha, entre eles um exemplar da primeira edição de Os Sertões (Campanha de Canudos), de 1902, e cinco outras edições dessa mesma obra que ele qualifica com uma só palavra: “Magnífico.”
É nessa prateleira que se encontra um livro único, do qual Secchin é o guardião: um exemplar da terceira edição de Os Sertões, publicada em 1905, com as marcas dos dedos do homem que matou Euclides da Cunha, o militar Dilermando de Assis. Mais do que isso: nas margens da obra-prima, estão as anotações feitas pelo militar, que analisou minuciosamente as 620 páginas do livro escrito por seu rival. “Trata-se de um caso provavelmente único na história da literatura mundial”, comenta o poeta.
A história parece saída de um folhetim: em 1905, uma mulher casada de 33 anos e com três filhos se apaixona por um homem dezesseis anos mais jovem. Ela tem um quarto filho, que morre misteriosamente, ainda bebê. Nasce o quinto, cujo rosto não esconde os traços do amante. Mesmo sem saber exatamente para onde ir, ela decide abandonar sua casa, desencadeando a fúria do marido. Os rivais se enfrentam. Na troca de tiros, o marido morre e um inocente é atingido – ficará paralítico e, mais tarde, se suicidará. Passam-se os anos e um dos filhos decide vingar a morte do pai: é também alvejado pelo agora marido de sua mãe e morre dias depois. (Numa trágica coincidência, outro filho de Euclides morrerá também baleado, no Acre, num caso sem qualquer conexão com o assassinato de seu pai).
Romances históricos, reportagens, biografias, uma ópera e até uma minissérie trataram desse affair explosivo, que entrelaçou para sempre o nome do engenheiro e militar gaúcho Dilermando de Assis ao do escritor fluminense Euclides da Cunha e sua mulher, a gaúcha Anna Emília Ribeiro da Cunha. Por duas vezes Dilermando de Assis foi a julgamento. A primeira por ter matado Euclides da Cunha em 1909, no episódio que ficou conhecido como “Tragédia da Piedade” (o bairro onde morava o militar) e no qual foi ferido o irmão de Dilermando, o jogador Dinorah de Assis, ídolo do Botafogo. A segunda vez por ter matado Euclides da Cunha Filho, logo após ser alvejado por ele no Fórum do Rio de Janeiro, em 1916. Nos dois julgamentos Dilermando foi absolvido, prevalecendo a tese de que agiu em legítima defesa. Em 1921, seu irmão Dinorah cometeu suicídio, deprimido por ter que usar muletas após o agravamento das sequelas deixadas pelo tiro dado pelo escritor.
Tanto Euclides da Cunha, que morreu aos 43 anos, quanto Dilermando de Assis, com 21 anos à época da tragédia, tinham formação militar. Mas eram completamente diferentes, como explica o historiador José Murilo de Carvalho, autor de Forças Armadas e Política no Brasil, em que dedica um capítulo à relação de Euclides com o Exército. Aluno do positivista Benjamin Constant, o escritor foi um representante do Tabernáculo da Ciência, apelido da Escola Militar da Praia Vermelha. “Era uma universidade dentro de um quartel. Não formava soldados, formava bacharéis fardados”, diz Carvalho. Já Dilermando, campeão de tiro e esgrima, estava ligado à Escola Militar do Realengo, mais prática, voltada para a formação de soldados profissionais.
Para estupor da sociedade carioca, a mulher de Euclides casou-se com Dilermando na semana seguinte à primeira absolvição, em maio de 1911, e adotou o sobrenome do segundo marido, passando a assinar Anna Ribeiro de Assis. A paixão deu ao casal quatro filhos, sem contar os dois nascidos enquanto ela estava casada com Euclides e que foram registrados pelo escritor (dos quais só um deles sobreviveu). O relacionamento com o atraente cadete começou em 1905 e só terminou duas décadas depois, quando Anna descobriu que Dilermando a traía. Aos 51 anos, ela deixou sua casa, levando todos os filhos e uma enorme mágoa.
Engenheiro como Euclides, Dilermando chegou a general do Exército e, já na reserva, foi responsável pelo plano rodoviário do estado de São Paulo, além de ter sido diretor do Departamento de Estradas de Rodagem. “Meu pai não foi um vilão, como pintado pelos jornais e pelos amigos de Euclides”, afirma à piauí Dirce de Assis Cavalcanti, de 89 anos, filha de Dilermando com sua segunda mulher, Maria Antonieta de Araújo Jorge. “Por isso, o que eu mais desejo, pelos anos que me restam, é ouvir com orgulho ser chamada de a ‘filha de Dilermando’ e nunca mais ouvir que sou ‘filha de um assassino’.”
A história tende a lhe dar razão. A historiadora Mary del Priore, autora de um livro que reconstitui a Tragédia da Piedade, Matar para Não Morrer, diz que o tempo fez com que o papel de Dilermando fosse redimensionado. “Foram todos vítimas de uma tragédia. Em última análise, a culpa é dos valores rígidos de uma sociedade patriarcal que levava os homens a se matarem em nome da honra”, diz a historiadora.
Anna Emília Ribeiro de Assis morreu no Rio de Janeiro aos 78 anos, em 12 de maio de 1951. Seis meses depois, em 13 de novembro, faleceu Dilermando de Assis, aos 63 anos, vítima de um infarto.
Em 1905, o mesmo ano em que o casal de amantes se enamorou, a conceituada editora Laemmert publicou a terceira edição de Os Sertões, a última lançada enquanto Euclides ainda vivia. Em 1914 foi encontrado um exemplar dessa mesma edição corrigido pelo autor, com cerca de 2,6 mil emendas, mas o volume sumiu misteriosamente. Sorte que haviam sido transladadas por Fernando Nery, então secretário da Academia Brasileira de Letras, para outro exemplar, que futuramente serviria para ajudar a fixar o texto definitivo de Os Sertões, nas edições críticas do livro.
Foi também um exemplar da terceira edição que serviu à leitura e às anotações de Dilermando de Assis – mas esse volume teve melhor sorte. Foi guardado por sua filha Dirce de Assis Cavalcanti. É esse exemplar que Secchin tira da estante e me permite folhear. Meu objetivo é usar imagens das páginas em um livro que estou escrevendo, Eu Vejo Teus Erros, sobre o inesperado diálogo que Dilermando estabelece com Euclides nas margens do livro. Nas páginas iniciais, veem-se respingos de algum líquido derramado sobre as folhas amareladas pelo tempo. Infelizmente, o volume original foi reencadernado sem muito apuro, de tal modo que muitas das anotações foram guilhotinadas pelo encadernador descuidado.
Ao folhear Os Sertões com as anotações de Dilermando de Assis, a primeira coisa que me veio à mente foi o influente ensaio A Morte do Autor, de 1968, em que o crítico francês Roland Barthes defende que as leituras que se fazem de uma obra a atualizam constantemente e são mais importantes para definir seus significados que a biografia do autor e suas intenções literárias. Secchin concorda: “Que eu saiba, é a primeira vez que a metáfora de Barthes foi levada às vias de fato. Nunca ouvi falar de um livro em que o autor efetivamente foi morto pelo leitor. Ainda mais um livro da importância de Os Sertões, estudado no mundo inteiro.”
Não satisfeito, o leitor em questão deixou rastros. Nas margens de seu exemplar da terceira edição de Os Sertões, Dilermando age como um revisor, anotando a lápis dezenas de erros de português que fariam Euclides corar. Das 620 páginas, quase 100 receberam alguma observação ou correção. O rival do escritor encontrou erros vexaminosos de redação ou revisão, como uma crase mal colocada na frase “do Rio Grande à Minas”, já no primeiro parágrafo do livro.
Euclides reconheceu ser uma tarefa inglória sair à caça dos erros de seu grande livro, depois de tentar corrigir as três primeiras edições. Em sua última entrevista, publicada pela revista A Illustração Brazileira em 15 de agosto de 1909, justamente o dia em que foi morto, manifestou sua irritação e seu desespero com os erros que deixou passar já na primeira edição, como descreve o jornalista e escritor Viriato Correia, que o entrevistou:
Ao chegar à Companhia Tipográfica, à Rua dos Inválidos, abrindo ao acaso um volume, lá encontrava um a com uma crase intrusa, adiante uma vírgula de mais, etc., etc. Ele [Euclides da Cunha] estava nesse tempo atacado de uma neurastenia profunda. Aquela crase, aquela vírgula, aqueles outros erros, pareceram-lhe grandes blocos de pedra, que vinham atacar o seu nome. Que horror! E a ponta de canivete (parece mentira, mas [é] verdade), em 2 mil volumes Euclides raspou oitenta erros. Foram 160 mil emendas! Levou dias e dias nessa trabalheira gigantesca.
Viriato Correia, mais conhecido por suas obras juvenis, como Cazuza, conta que “um estranho pavor se apoderou de Euclides”, que imaginava seu nome “espatifado nas crônicas dos jornais”. “Hei de consertar isso por toda a vida. Até já nem abro Os Sertões porque fico sempre atormentado, a encontrar imperfeições a cada passo”, confidenciou o escritor na entrevista. Para ele, o livro ainda estava cheio de “páginas rasteiras, cobertas de defeitos”. Seria compreensível, se fossem empastelamentos e gralhas – erros tipográficos causados por falhas mecânicas –, o que excluiria os chamados “erros de ignorância”, como os de ortografia ou gramática, que podem ser causados tanto por falhas do autor quanto dos revisores e editores. Mas, com exagero, Euclides afirmou ser ele o único responsável por todos os erros: “Na nova edição de Os Sertões fiz 6 mil emendas. Não se diga que sejam erros de revisão, são defeitos meus, só meus.”
Não foi por falta de aviso que o escritor deixou passar erros crassos quando publicou a primeira edição do livro que o levaria a ocupar a cadeira número 7 da Academia Brasileira de Letras. Em carta enviada em outubro de 1902 a Francisco de Escobar, seu amigo, Euclides narra sua vergonha pelas barbaridades que deixou escapulir:
Tenho passado mal. Chamaste-me a atenção para vários descuidos dos meus Sertões; fui lê-lo com mais cuidado – e fiquei apavorado! Já não tenho coragem de o abrir mais. Em cada página o meu olhar fisga um erro, um acento importuno, uma vírgula vagabunda, um (;) impertinente… Um horror! Quem sabe se isto não irá destruir todo o valor daquele pobre e estremecido livro? Manda-me dizer daí algo a respeito. Imagina que lá encontrei à falcão, à pranchada, braço à braço, tempos à tempos, etc. etc. Não te posso dizer como fiquei. Por fim – abrindo, ao acaso, depois do jantar, uma página –, encontrei isto: “Não iludiu à história…” Não te descrevo o que houve! Quer isto dizer que estou à mercê de quanto meninote erudito brune as esquinas; e passível da férula brutal dos terríveis gramatiqueiros que passam por aí os dias a remascar preposições e a disciplinar pronomes!
Mais de um século e pelo menos cinquenta edições depois (sem contar as reimpressões), os especialistas continuam comparando as emendas feitas por Euclides e seus revisores, em busca do texto perfeito de Os Sertões. É um trabalho inglório. Na mais recente edição crítica do livro, publicada em 2016, a professora de literatura Walnice Nogueira Galvão contabilizou quase 6 mil variantes nas diversas edições, que incluem supressões e acréscimos de palavras e vírgulas, além de correções ortográficas. Para efetuar uma análise comparativa das modificações introduzidas pelo autor nas três primeiras edições, incluindo as cerca de 2,6 mil emendas copiadas por Fernando Nery, o secretário da abl, no tal exemplar desaparecido, foi preciso criar um volume adicional, com 159 páginas.
Ao saber que o exemplar de Dilermando contém marcas com recursos e sinais utilizados por revisores profissionais, a autora da edição crítica sugere um trabalho de detetive, uma perícia caligráfica, para saber se ele fez tudo sozinho ou teve ajuda de algum especialista. Mas não a surpreende que o rival de Euclides tenha encontrado tantas falhas. “Apesar de ser uma obra-prima, Os Sertões é um livro cheio de erros, e não só ortográficos, mas factuais. Euclides o corrigiu obsessivamente, em todas as edições tiradas enquanto viveu. Acho que se não tivesse morrido, teria continuado a corrigir. O livro também contém erros de informação e de interpretação. Mas é uma questão menor. Mesmo não sendo perfeito, Os Sertões é um livro extraordinário.”
Não se sabe ao certo quando Dilermando teria se dado ao trabalho de ler com lupa Os Sertões, a ponto de, inclusive, refazer as contas de Euclides quanto ao contingente e ao armamento da quarta expedição enviada pelo Exército a Canudos, em abril de 1897 – o escritor conta que a segunda coluna teve 327 baixas; o rival refaz as contas, com base em números do próprio livro, e diz que foram 326. Foi essa expedição que o escritor acompanhou, não só na condição de jornalista, como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, mas na qualidade de militar, como tenente reformado e adido do ministro da Guerra, marechal Carlos Bittencourt. Teve até mesmo direito a um ordenança para servi-lo durante a expedição.
Euclides só passou dezoito dias no “teatro de operações” de Canudos e não foi testemunha ocular da trágica tomada do povoado, em 5 de outubro de 1897, quando caíram os últimos combatentes – “Um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”, como o escritor descreveu no livro publicado cinco anos depois. “Canudos nunca se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo.” O povoado foi totalmente destruído, mas só depois de quase um ano de luta, de quatro expedições militares e da série de humilhações imposta ao Exército brasileiro.
Além de Euclides, outros repórteres, como Favila Nunes, Manoel Benício e Manuel de Figueiredo, foram enviados a Canudos como correspondentes de guerra. Nunes era coronel, Benício, capitão, e Figueiredo, major – todos reformados, como o escritor. Havia ainda um agente duplo, Siqueira de Menezes, ao mesmo tempo tenente-coronel combatente e correspondente do jornal O Paiz. Por causa dos laços que os jornalistas mantinham com as Forças Armadas, achou-se que eles silenciariam sobre os erros de estratégia e logística do Exército, a degola dos prisioneiros e o massacre cometido contra a população civil do povoado, estimada em 25 mil pessoas.
Mas nem todos os jornalistas esperaram a poeira baixar para denunciar os militares. Segundo Walnice Nogueira Galvão, que reconstituiu a cobertura jornalística da Guerra de Canudos no livro No Calor da Hora, quem ousou fazê-lo, como Favila Nunes, foi ameaçado de morte. Euclides enviou 64 telegramas com notícias da luta à redação de O Estado de S. Paulo, entre agosto e outubro de 1897, e publicou 31 artigos, a maioria com uma visão favorável à ação militar e uma imagem depreciativa dos revoltosos de Canudos. Foi preciso esperar cinco anos para que mudasse de ideia e fizesse de seu livro uma denúncia do massacre impetrado pelo Exército.
Em suas anotações, Dilermando toma as dores do Exército e várias vezes discorda das críticas feitas por Euclides às estratégias militares utilizadas em Canudos. Quando, na página 383, o autor de Os Sertões critica o fato de os batalhões da quarta expedição terem avançado separados, numa estrada repleta de jagunços que apoiavam o líder religioso Antônio Conselheiro, Dilermando escreve nas margens, em tom professoral: “Dispersar para marchar; reunir para combater. Napoleão.”
No topo da página 500, Dilermando não se contém e anota: “Assombroso!”, acompanhado de um gigantesco ponto de exclamação. Nesse exato trecho, Euclides narra um suposto surto de beribéri entre os soldados, ironicamente chamada pelos jagunços de “fraqueza do governo”, que resultou em problemas intestinais, exigindo “a perícia de experimentados médicos, senão o exame de psicólogos argutos”. É uma das poucas vezes em que Dilermando baixa sua guarda e faz algo próximo de um elogio ao seu rival.
Nas margens da página 75, diante da força poética do livro, ele se rende: “Soberbo! Supremo!” O trecho narra um pôr do sol no sertão:
Os troncos e galhos das árvores rachadas pelos raios, lascadas pelos ventos; as choupanas estruídas, colmos por terra; as últimas ondas barrentas dos ribeirões, transbordantes; a erva acamada pelos campos, como se sobre eles passassem búfalos às manadas – mal relembram a investida fulminante do flagelo.
Marcações a lápis de grafite preto, azul e vermelho em todo o livro, sem ordem aparente, sugerem que Dilermando tenha lido seu exemplar em diferentes ocasiões. Uma pista sobre a cronologia está na página 292, em que ele sublinha uma passagem de Os Sertões, referente a Floriano Peixoto e seus seguidores: “Salvante raras exceções, congregava todos os medíocres ambiciosos que, por instinto natural de defesa, evitam as imposições severas de um meio social mais culto.” Ao lado do trecho, escreveu: “Como Epitácio Pessoa em 1922.” Ou seja, é possível que Dilermando tenha enfrentado Euclides nas margens de Os Sertões em 1922 ou depois.
Dilermando faz uma interessante relação entre os “medíocres ambiciosos” que, para Euclides, seguiam o marechal Floriano Peixoto, que presidiu o Brasil entre 1891 e 1894, e o governo civil de Epitácio Pessoa, presidente entre 1919 e 1922. Euclides apoiou Floriano e depois se decepcionou com o florianismo, corrente política que pregava a primazia do Exército na governança do país. Dilermando lutou, em 1924, ao lado dos legalistas, em defesa do presidente Artur Bernardes, apoiado por seu antecessor, Epitácio Pessoa. Mas, pelo que diz, não tinha Epitácio em alta conta.
O comentário demonstra que o militar estava atento às movimentações políticas em 1922, ano em que ocorreu a Revolta Tenentista no Rio de Janeiro. Promovida por oficiais do escalão intermediário do Exército contra as oligarquias políticas e o governo de Epitácio Pessoa, a revolta tinha laços com o florianismo. Apesar da derrota no Rio, o movimento tenentista prosseguiu na Revolta Paulista, desencadeada em 5 de julho 1924 com o objetivo de depor Artur Bernardes. O conflito é considerado o maior já travado nas ruas de uma cidade brasileira e teve de tudo: tanques de guerra e trincheiras nas ruas, fuga em massa da população, aviões lançando bombas sobre a cidade.
Dilermando comandou uma força legalista despachada às pressas para barrar o avanço dos insurretos no Oeste do Paraná, para onde eles seguiram após perderem a luta em São Paulo. No livro que escreveu sobre sua mãe, Anna de Assis: História de um Trágico Amor, Judith Ribeiro de Assis lembra que seu pai voltou “muito diferente” da guerra civil em São Paulo. Estava “mais agressivo”, diz ela. É provável que tenha sido acometido por um estresse pós-traumático. Pode-se imaginar que se identificou com o autor de Os Sertões ao ler na página 259 que “a guerra é uma coisa monstruosa e ilógica em tudo”, frase que sublinhou fortemente com lápis.
Em A Tragédia da Piedade, livro que publicou em 1951 com sua versão dos episódios envolvendo Euclides e sua família, Dilermando foi menos empático com o escritor. Tomou para si a raiva dos militares contra o “tremendo libelo” que é Os Sertões, que ele define como “um livro que desperta mágoa, mágoa e vergonha, vergonha irreprimível para o nosso Exército”. Também diz que Os Sertões desfiguraram, com um “emaranhado de contradições e exageros”, a história da campanha de Canudos, jogando no colo dos militares a culpa pela degola de prisioneiros e o assassinato de mulheres e crianças, que até hoje choca os leitores.
Muitas anotações feitas por ele nas margens da obra de Euclides são desenvolvidas em A Tragédia da Piedade, o que me leva a crer que tenham sido feitas com esse objetivo. Para um estudioso da marginália – o conjunto de marcações nas margens de livros ou documentos – comparar os dois livros é uma rara chance de compreender mais a fundo o que se passava na cabeça desse leitor especial quando decidiu iniciar um diálogo extemporâneo com o autor de Os Sertões.
Além das anotações nas margens do livro do homem que tentou matá-lo, Dilermando deixou um mapa do tesouro: duas folhas soltas, escritas dos dois lados com uma letra desenhada, que lembra a de uma professora do ensino fundamental. Trata-se – nada mais, nada menos – de um índice… de um índice de erros e de leitura de Os Sertões. As páginas soltas fazem uma saborosa enumeração de cacófatos, erros de concordância, de grafia, de acentuação, de pontuação, próclises, ênclises e mesóclises mal colocadas, identificadas página a página, diligentemente, pelo impiedoso revisor. Na página 117, aponta estas cômicas redundâncias: “gaúchos do Sul” e “vaqueiros do Norte” (para o militar “não existe o vaqueiro do Sul”). E ainda a expressão “chimarrão amargo”, que o gaúcho Dilermando ironiza, lembrando que a bebida nunca foi doce.
Na parte mais surpreendente, Dilermando enumera dezenas de páginas de Os Sertões, assinalando-as com uma minúscula letra “r”. Não é difícil deduzir o significado dessa letra, repetida por ele nas páginas, e a palavra que ela abrevia: “raça.”
Valendo-me de uma ferramenta do Google News Lab chamada Pinpoint, capaz de realizar pesquisa avançada em vários documentos ao mesmo tempo, faço a contagem do número de vezes que a palavra “raça” efetivamente aparece em Os Sertões. Chego a um total de oitenta vezes. Nas reportagens feitas por Euclides para O Estado de S. Paulo, a palavra aparece uma única vez. Nas suas anotações durante a viagem a Canudos (posteriormente publicadas no livro Caderneta de Campo), cinco vezes. Sem contar com o apoio da inteligência artificial, Dilermando marcou com alguma precisão uma parte delas – na sua conta, vinte vezes.
Entre as páginas de Os Sertões destacadas por ele com a letra “r”, a mais contundente para o leitor contemporâneo é a 108. Ali, Euclides abre um parêntese no relato sobre a Guerra de Canudos para afirmar com todas as letras que “a mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial”. Segundo ele, “a mestiçagem extremada é um retrocesso”, em que “despontam vivíssimos estigmas” da raça inferior, uma vez que “o indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia” estariam em estados evolutivos diferentes.
Essas ideias supremacistas, claramente inspiradas pelo racismo científico em voga na sua época, parecem não incomodar Dilermando. Tanto assim que ele só destaca, a ponto de colocar dois colchetes, o seguinte trecho dessa mesma página: “De sorte que o mestiço – traço de união entre as raças, breve existência individual em que comprimem esforços seculares – é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara-os, de um modo geral, aos histéricos.”
Euclides provavelmente se refere a Achille-Louis Foville (1799-1878), psiquiatra francês que integrou a Sociedade Etnológica de Paris. Fundada em 1839, essa sociedade é uma das principais fontes do chamado “racismo científico”, que procurava explicar fenômenos sociais a partir de fatores genéticos e raciais. Segundo essa concepção, o mestiço, em vez de supostamente somar as qualidades de diferentes raças, sofreria uma diminuição dos atributos de cada uma delas, podendo até vir a se tornar um “histérico”, o que, para Euclides, explicaria o arrebatamento e a fúria dos seguidores de Antônio Conselheiro. O leitor contemporâneo ficará chocado ao ler todas as menções à inferioridade racial de negros, indígenas e, principalmente, mestiços, pinçadas por Dilermando em Os Sertões, recortando um livro dentro do livro.
Ele usa novamente dois colchetes para marcar o ponto em que Euclides, na mesma página, a 108, dispara: “E o mestiço – mulato, mamaluco ou cafuz –, menos que um intermediário, é um decaído.” Imagino que Dilermando, orgulhoso descendente de italianos, pode ter lido nessa página uma confissão de inferioridade do próprio Euclides, que se autodefinia como um “caboclo ladino” – já que era neto de um português, dono de navio negreiro, e de uma brasileira, descendente dos índios kariris, segundo o biógrafo Frederic Amory. Para Gilberto Freyre, não havia dúvida sobre o sangue mestiço de Euclides:
[Ele] Admitia que fosse um tapuio modificado por outras presenças – pela “grega” e pela “celta”. Mas a consciência de ser homem de sangue ameríndio parece ter-se tornado nele outra consciência: a de dever ser um escritor com alguma coisa de não europeu e até de antieuropeu em sua visão do ambiente nativo.
A frase marcada por Dilermando continua na página 109, indicando que mestiços, como os que formavam grande parte da população brasileira, seriam seres decaídos “sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores”. Não haveria como escapar da fatalidade das leis biológicas, “chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida” e a “uma moralidade rudimentar”.
O trecho sobre o mestiço não me assusta tanto por reconhecer aí o preconceito de Euclides, um homem do seu tempo, mas por ouvir ecos dessas ideias até hoje. Mas nada do que faz arder os olhos dos leitores contemporâneos incomodou Dilermando, também ele um homem do seu tempo. Ele sublinha as palavras de Euclides que dizem que “o mestiço é um intruso”. E ignora o que está dito na página 110 e já deixa entrever a semente da dúvida que se espalhará por Os Sertões: “Como compreender-se a normalidade do tipo antropológico que aparece, de improviso, enfeixando tendências tão opostas?” Pode-se avançar um pouco mais na indagação: como compreender que um grupo de mestiços, como os sertanejos que lutaram ao lado de Antônio Conselheiro, conseguiu vencer por três vezes as forças do Exército, aparelhadas com novidades tecnológicas, como dinamites e metralhadoras, usadas pela primeira vez no Brasil em Canudos? Foi justamente no esforço de responder a esse enigma que Euclides concebeu um dos livros fundadores do debate sobre a identidade brasileira.
O próprio escritor reconhece sua contradição, mas não sabe o que fazer quando suas ideias não correspondem aos fatos. Em vez de questioná-las, diz que as exceções são uma prova da vigência da regra. Fico me perguntando o que pensou Machado de Assis, companheiro de Euclides na Academia Brasileira de Letras, a respeito dessas ideias. Ou o que passou pela cabeça de Teodoro Sampaio, engenheiro e geógrafo negro – que não chegou a ser escravo, mas teve de comprar a liberdade para seus três irmãos –, ao ler a seguinte frase do seu amigo, a quem franqueou mapas e apontamentos de uma viagem ao Vale do São Francisco: “Não há esforços que consigam do africano, entregue à solicitude dos melhores mestres, o aproximar-se sequer do nível intelectual médio do indo-europeu.” Apesar da dúvida expressa pelo autor de Os Sertões na página 110, não foram poucos os negros e mestiços que se tornaram expoentes da vida intelectual brasileira entre o fim do Império e o início da República, como o engenheiro André Rebouças, o diplomata Domício da Gama, o advogado Luiz Gama e o jornalista José do Patrocínio.
Depois de afirmar que o mestiço é um fraco, referindo-se à população de Canudos, Euclides apresentará, algumas páginas adiante (na 114), a sua mais famosa máxima: “O sertanejo é antes de tudo um forte.” Dilermando explora exaustivamente a incongruência do autor, apontando em A Tragédia da Piedade as diferentes posturas do rival como “asseverações contrapostas, irreconciliáveis”.
Obviamente, Dilermando não foi o único a notar as incongruências. Estudiosos da obra de Euclides, como Regina Abreu e Luiz Costa Lima, já apontaram que a monumentalização de Os Sertões ofusca sua apologia ao darwinismo social e, em troca, ilumina suas qualidades como obra de denúncia.
“Passar por cima da supremacia racial afirmada por Euclides, sob o pressuposto de que era a ideia do tempo, é um dado correto, mas com uma consequência infame”, afirma Costa Lima, autor do clássico Terra Ignota: A Construção de “Os Sertões”. “Por que digo infame? Porque demonstra nossa extrema carência de pensar, o que nos leva a não perceber que continuamos racistas. Sim, é certo que a teoria das raças provinha da Europa e aqui simplesmente se aclimatava, justificando o branco patriarcal, latifundiário e monocultor. Mas passar batido sobre ela, antes acentuando Os Sertões como um livro vingador do sertanejo, leva a que não se veja que nossa sociedade continua racista, por sua prática cotidiana, ainda que não pelas palavras explícitas”, completa Costa Lima, que está escrevendo um livro sobre a influência de Euclides no pensamento social produzido no país, “Os Sertões” e a Formação Social Brasileira.
Antes que Euclides entre nas listas de cancelamento, é importante lembrar que foi exatamente esse livro tão complexo e contraditório que chamou a atenção para um massacre que poderia ter passado despercebido. Canudos não foi o único dos movimentos messiânicos e revoltas da época a serem debelados violentamente. Na Guerra do Contestado, em Santa Catarina, podem ter morrido cerca de 10 mil pessoas. Mas, infelizmente, nem o massacre do Contestado nem outros ocorridos entre o final do século xix e o xx tiveram sua denúncia cristalizada em uma obra-prima como Os Sertões.
“Não existe escritor sem defeitos”, afirma Leopoldo Bernucci, organizador de uma edição comentada do clássico de Euclides, chamando a atenção para um artigo que o escritor publicou em 1889, sob pseudônimo, no jornal O Estado de S. Paulo, em que se refere com admiração à raça negra. “Três séculos de exploração indigna e subordinação forçada não conseguiram abastar-lhe o gênio, e ela aliou às nossas mais gloriosas tradições e aos ramos mais elevados de nossa atividade o nome ilustre de seus filhos”, escreve Euclides, citando o advogado negro Luiz Gama e sua “fronte iluminada”. Não se sabe por que assinou o artigo com pseudônimo.
Mesmo depois de ler e reler o exemplar de Os Sertões deixado por Dilermando, sua filha Dirce de Assis Cavalcanti, a única que ainda vive, não conseguiu decifrar tudo que está por trás daquelas anotações. Para proteger o precioso livro da ação do tempo, ela o entregou ao poeta Antonio Carlos Secchin. “Vira e mexe eu me perguntava: ‘Por que meu pai marcou este trecho aqui? O que ele queria dizer com este comentário?’”, diz ela, no elegante apartamento no Flamengo onde vive com o marido, o diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti, ex-presidente da ABL. Eles se conheceram quando ela trabalhava no Ministério do Exterior como criptógrafa, a pessoa responsável por enviar e decifrar mensagens secretas. Estão casados há cinco décadas.
Artista plástica e escritora, Dirce é autora de O Pai, lançado em 1990 e já com dez edições. No livro, ela narra o sofrimento silencioso de um homem cujo nome ficou para sempre preso ao de Euclides da Cunha – e o sofrimento dela própria, por ser chamada, como faziam suas colegas de colégio interno, de “filha de assassino”. É especialmente tocante o capítulo em que Dirce recorda como, aos 11 anos, entrou escondida no escritório de Dilermando e encontrou as pastas azuis em que ele guardava as reportagens sobre a Tragédia da Piedade, que invariavelmente o atacavam por ter matado o genial autor de Os Sertões. “Em todas as notícias, um homem de olhos febris e de grandes bigodes aparecia ao lado dos retratos do meu pai. O homem que o meu pai tinha matado”, lembra Dirce em seu livro.
Ela conta que sua mãe, Maria Antonieta de Araújo Jorge, era “ciumentíssima”, mas tinha vergonha de pôr os pés na rua, por causa de sua relação com Dilermando, com quem só pôde se casar oficialmente depois da morte de Anna, em 1951 (na época não havia divórcio no Brasil). “Durante onze anos, minha mãe só saía de casa para fazer compras e ir ao médico.” Com a morte de Dilermando, logo depois do falecimento de Anna, o casamento oficial durou menos de seis meses.
Do pai, ela guardou na memória a imagem de um homem “carinhosíssimo”, exímio jogador de xadrez, amante de óperas e ávido leitor. Também preservou um conjunto de álbuns de fotos, e um belo porta-retratos com moldura de prata em que o jovem Dilermando aparece em destaque, de barba. “Ele tinha os olhos azuis mais tristes do mundo”, comenta a filha.
Quando pergunto se ela gosta de Os Sertões, Dirce responde sem muitas amarras que não. “Acho rebuscado demais”, diz. E Dilermando, gostava? “Não tenho certeza. Acredito que ele teve todo esse trabalho de ler e anotar Os Sertões porque tinha necessidade de encontrar falhas no endeusado Euclides da Cunha e de mostrar que os gênios também cometem erros.”
[1] No original: Hai excomunion reservada a Su Santidad contra qualesquiera personas que quitaren, distraexeren, o de otro qualquier modo enagenaren algun libro, pergamino, o papel de esta bibliotheca, sin que puedan ser absueltas hasta que esta esté perfectamente reintegrada.
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