CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Ovos de gigantes
Fósseis ajudam a entender a reprodução dos dinossauros
Bernardo Esteves | Edição 188, Maio 2022
Quando soube, nos anos 1990, que um conhecido seu estava trabalhando numa mina de calcário em Ponte Alta, na zona rural de Uberaba, no Triângulo Mineiro, João Ismael da Silva tratou de cultivar sua amizade. Quem sabe o amigo poderia ajudá-lo a conseguir algum fóssil? Afinal, as jazidas de calcário são sabidamente boas para a preservação de restos de animais mortos, e vários ossos de dinossauros já tinham sido encontrados naquela região. Silva nasceu em outro distrito de Uberaba, Peirópolis, localidade conhecida pela riqueza de seus fósseis, e é obcecado por répteis extintos, tanto que trabalhava ali como técnico de paleontologia e preparador de fósseis no Museu dos Dinossauros.
O amigo de vez em quando topava com alguns fósseis e deixava-os separados para Silva, que ia buscá-los depois do expediente. Em geral, eram caquinhos ou fragmentos de ossos, nada muito palpitante. “Até que chegou o primeiro ovo”, conta Silva à piauí. O funcionário do museu tinha feito cursos de preparação de fósseis e sabia identificar de longe um ovo de dinossauro. “Aquele era perfeito, redondinho e muito bonito.” Ele preferiu esconder a empolgação do amigo: “Não quis deixar transparecer que aquilo era uma novidade muito grande, então agi como se não desse muita importância.”
Tempos depois, o amigo voltou com o anúncio de um tesouro. “Apareceu coisa muito boa lá na pedreira”, avisou. E era mesmo: um grande bloco petrificado com nada menos que dez ovos fossilizados, dos quais metade estava quase intacta. Silva começou a tremer quando viu o material e nem conseguiu dormir direito naquela noite. Sua mulher reclamou da atenção que ele estava dando aos fósseis: “Você vai acabar desmanchando esse ninho de tanto olhar para ele.”
O amigo continuou abastecendo o técnico com ovos que ia encontrando na mina de calcário, que hoje está desativada. Silva guardou o material e, dezessete anos depois, decidiu doá-lo ao Museu dos Dinossauros (funcionário da prefeitura, ele está cedido para a Universidade Federal do Triângulo Mineiro, a UFTM, responsável pela gestão do museu). A descoberta acaba de ser apresentada à comunidade científica num artigo publicado na revista Scientific Reports, tendo Silva entre os autores.
O estudo descreve vinte ovos que os animais botaram em pelo menos dois episódios diferentes, em algum momento entre 72 milhões e 66 milhões de anos atrás. São obra de titanossauros, que eram répteis herbívoros imensos de pescoço comprido e cabeça pequena. Thiago Marinho, um paleontólogo paulista de 41 anos e professor da UFTM, explica que os ovos têm 12 cm de diâmetro e lembram os de um avestruz, ave moderna de porte bem menor. “A textura da casca é muito parecida. A diferença é que eles estão mineralizados.” Depois que viram fósseis, podem pesar mais de 1 quilo. “São bolinhas bem perfeitinhas”, descreve o pesquisador.
Tão perfeitas que o primeiro ovo de dinossauro de que se tem notícia no Brasil foi usado inadvertidamente como bola num jogo de bocha, conforme uma história popular entre os paleontólogos. Ele também foi achado na zona rural de Uberaba, a cerca de 8 km de Ponte Alta, durante obras para a reforma de um trecho da estrada de ferro que liga Campinas a Goiânia, nos anos 1940. “Os funcionários da ferrovia estavam jogando bocha com o ovo, tanto que a casca não estava mais preservada”, diz Marinho.
O ovo só foi identificado depois que um funcionário do Departamento Nacional de Produção Mineral, no Rio de Janeiro, foi até Uberaba atrás dos fósseis que vinham aparecendo nas rochas calcárias da região. Era o paleontólogo gaúcho Llewellyn Ivor Price, que hoje dá nome ao Centro de Pesquisas Paleontológicas, vinculado à UFTM. Ele publicou em 1951 a descrição do primeiro ovo de dinossauro encontrado na América do Sul, e criou vínculo com a região de Peirópolis, onde faria escavações por mais de vinte anos.
Quando o Museu dos Dinossauros recebeu a doação dos ovos recolhidos por Silva, Marinho logo pensou em acionar dois colegas argentinos com quem colabora há anos: Agustín Martinelli, que já morou em Uberaba e conhece bem os fósseis da região, e Lucas Fiorelli, especialista em ovos de dinossauros da América do Sul. Milhares de ovos fósseis já foram encontrados na Argentina, alguns deles em extraordinário estado de preservação. No sítio de Auca Mahuevo, na Patagônia, alguns embriões estavam preservados, e é possível ver detalhes do crânio e do esqueleto dos pequenos répteis em formação. A semelhança dos ovos de Ponte Alta com os da Argentina é que permitiu aos cientistas cravar que eles tinham sido botados por titanossauros.
Uma tomografia computadorizada feita no Hospital das Clínicas da UFTM não revelou sinais de embriões, e por isso não é possível dizer a espécie a que pertencem. O grupo dos titanossauros é bastante diverso e conta com dezenas de espécies conhecidas, das quais três já foram encontradas na região de Peirópolis – incluindo o Uberabatitan ribeiroi, um gigante de mais de 25 metros de comprimento que é o maior animal terrestre conhecido a ter vivido no território brasileiro.
Para um paleontólogo, um ovo fossilizado é uma janela para entender a reprodução dos dinossauros, sobre a qual há muitos enigmas. “Tanto o nosso achado quanto os argentinos mostram que os titanossauros tinham o hábito de depositar ovos na mesma região em momentos diferentes”, diz Marinho. É a primeira vez que esse comportamento foi registrado no Brasil.
As fêmeas de titanossauro faziam um buraco com suas patas, punham ali seus ovos e depois os cobriam com areia. Os ovos de Ponte Alta não eclodiram, continuaram enterrados e acabaram sendo fossilizados. “O calor do ambiente é que chocava os ovos, como acontece com os jacarés”, explica Marinho. Ao que tudo indica, os filhotes nasciam e encaravam o mundo cada um por sua conta; não há registros de que os titanossauros tivessem cuidados com a prole.
Não se sabe ao certo como transavam esses animais que podiam pesar perto de 20 toneladas. Como nunca foram encontrados órgãos reprodutivos dos dinossauros preservados, e tampouco um casal morto em pleno ato, resta aos cientistas criar hipóteses com base no que sabemos sobre a reprodução das aves e dos crocodilos, os parentes vivos dos dinossauros.
Os cientistas não sabem sequer dizer se os dinossauros tinham pênis e vaginas; talvez fêmeas e machos tivessem cloacas, orifícios que serviam tanto para a reprodução quanto para a excreção. Nesse caso, a cópula envolveria o contato dessas estruturas, no chamado beijo cloacal. Ainda assim, seria preciso que eles se ajeitassem para conseguir o encaixe. “Talvez o macho montasse na fêmea”, arrisca Marinho. “Infelizmente o sexo dos dinossauros continua sendo uma parte especulativa da paleontologia.”