ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Padrão Fuleco
A Copa do ministro Aldo Rebelo
Fernando de Barros e Silva | Edição 91, Abril 2014
Num ministério que se caracteriza por 39 tons de cinza, não se pode negar a Aldo Rebelo certo protagonismo. Quadro histórico do PCdoB, o ministro do Esporte tem se mostrado um servidor fiel e disciplinado do governismo, coisa rara no país dos PMDBs. Em contraste com muitos de seus pares, adeptos da fisiologia ecumênica, Rebelo tem convicções: é um nacionalista empedernido, um Policarpo Quaresma.
Na Câmara, propôs a criação do Dia Nacional do Saci-Pererê (em substituição ao alienígena Halloween) e apresentou o projeto pró-mandioca: o pão francês deveria ter obrigatoriamente em sua composição 10% de raspa do tubérculo identificado com nossas raízes. Uma de suas iniciativas mais célebres é a que defende a limitação de estrangeirismos no idioma pátrio. Palavras como delivery, mouse, sale, light ou pet-shop são presenças indesejadas do colonialismo ianque que tiram o sono do comunista.
Ou nem tanto. Aldo Rebelo é uma figura sisuda e fleumática, de fala monocórdica e entediante, embora articulada. Parece triste mesmo quando sorri. Ao contrário, porém, da hiena do desenho animado (ó céus, ó vida, ó azar), ele é um funcionário do otimismo. Assim como na economia há a contabilidade criativa de Guido Mantega, existe, em relação à Copa, o que se pode chamar de Padrão Fuleco. Aldo Rebelo é seu porta-voz.
No início de março, o jornal Público, de Portugal, fez uma edição sobre os preparativos para o Mundial. Uma das reportagens trazia como título a questão “Copa 2014: delírio tropical ou porta para a modernidade?”. Páginas adiante, uma entrevista com Aldo Rebelo indicava a resposta. O ufanismo, na fala do ministro, dava cambalhotas.
O repórter Hugo Daniel Sousa lhe perguntou se havia pessimismo no Brasil em relação à Copa, e citou um exemplo: “Estamos parados no trânsito no Rio, e logo se ouve alguém dizer ‘Imagina na Copa.’”
A resposta veio pronta: “Herdamos o pessimismo de Portugal, sendo que agora os velhinhos do Restelo tomaram conta dos media. Os navegadores não têm porta-voz no Brasil. Só têm voz o pessimismo, o derrotismo, o complexo de vira-latas – como disse o grande Nelson Rodrigues –, os narcisos às avessas que cospem na própria imagem.” O Velho do Restelo é um personagem que aparece n’Os Lusíadas, de Camões. Na sua fala ecoam a descrença em relação aos descobrimentos e a desconfiança no progresso. A expressão vingou e serve para designar quem sempre espera pelo pior.
Depois de jogar a conta no colo dos portugueses, o ministro emendou: “Enquanto isso, os estádios estão sendo construídos, os aeroportos estão sendo reformados, as vias de acesso estão sendo criadas e a Seleção Brasileira se prepara para ganhar o seu sexto título.”
“Mas o país está com mais dificuldades fora do campo, concorda?”, indagou o jornalista. Escalando argumentos de coloração patriótica com fumos de erudição, Rebelo seguiu navegando na maionese: “O senhor é português. Muito mais difícil do que organizar dez Copas do Mundo foi a expedição do Pedro Teixeira pela bacia do Amazonas. A expedição de Raposo Tavares, a chamada bandeira dos limites, é que foi coisa difícil. Construir Manaus no coração da selva, carregando pedra de Portugal para fundar um forte na beira do Rio Negro, foi muito mais difícil.”
Mas é claro. Como não pensamos nisso antes? Quando é preciso explicar a mistura de atraso e açodamento, com estádios ainda em obras e aditivos pornográficos; quando o que está em questão são os problemas crônicos de infraestrutura, o funcionamento calamitoso dos aeroportos, as prioridades relegadas e a caixa-preta dos gastos públicos – quando tudo isso está em jogo, por que não recorrer aos bandeirantes do século XVII, atrás de índios, ouro e territórios? Isso, sim, era duro – ora pois. Com seu gosto pelo pitoresco extemporâneo, o ministro dá um chute no traseiro do bom senso.
Não seria o último. As estações de metrô no Brasil, segundo ele, “são mais seguras que as estações da Europa, estatisticamente mais sujeitas a atentados”. E “a Copa será muito mais bem-sucedida que a intervenção francesa no Mali”. (Foi assim que Rebelo reagiu, durante a entrevista, à revista France Football, que chamou esta de “Copa do medo”. A ação militar no Mali, ex-colônia francesa, ocorrida no início do ano passado, se deu depois que grupos fundamentalistas dominaram a região norte do país, destruíram monumentos históricos e impuseram um regime de terror, proibindo músicas em público, chicoteando pessoas por fumar, beber e ter filhos fora do casamento, o que levou mais de 350 mil pessoas a fugir do lugar.)
Possuído pelo Velho do Restelo, o jornalista ainda quis saber como vão se sustentar depois da Copa estádios como o de Manaus (40 mil lugares) e Brasília (70 mil), já que tais cidades não possuem times na primeira, na segunda ou na terceira divisão. A pergunta poderia se estender, no mínimo, a Cuiabá, onde o clube que leva o nome da cidade disputa a série C.
O palmeirense Rebelo trocou a gravata pelo uniforme e não se fez de rogado: “Pode não haver times de primeira divisão, mas há torcidas de primeira divisão. Se for em Manaus, Natal, Fortaleza ou Recife, o Flamengo e o Palmeiras têm enormes torcidas. Esses clubes estão jogando por lá.” O Palmeiras vai ajudar a sustentar a Arena da Amazônia… Buñuel não seria tão ousado.
Por fim, o ministro defendeu que os gastos com a Copa (algo na casa dos 30 bilhões, mas ninguém sabe ao certo) “são recursos muito modestos perto dos 240 bilhões de reais que o Brasil pagou no ano passado só de juros da sua dívida pública, e de que a imprensa não reclama, naturalmente porque os bancos são grandes investidores em publicidade”. Aqui é preciso recorrer ao conselheiro Acácio: afinal, quem cria a dívida pública? Não é o governo para o qual Aldo Rebelo trabalha? E quem a paga? Não é o mesmo governo? No ano passado ela atingiu 2,1 trilhões de reais, um recorde. Os gastos com publicidade do governo federal, por sua vez, ficaram na casa de 1,8 bilhão de reais em 2012. Hoje devem ultrapassar 2 bi. A teoria da conspiração é débil.
Tudo somado, tem-se a nítida sensação de que há método nessa sucessão de disparates. O ministro-Fuleco operou uma espécie de refundação do PAC: ele agora atende por Programa de Acumulação da Cascata.