Quando visitava o Rio, Paletó preferia as ruas movimentadas, como a Nossa Senhora de Copacabana, às transversais mais estreitas e tranquilas, pois gostava da multidão, de ver as pessoas se esbarrando. Dizia que pareciam cardumes de peixes FOTO: APARECIDA VILAÇA
Paletó e eu
Memórias de meu pai indígena
Aparecida Vilaça | Edição 133, Outubro 2017
Muitas vezes, desde que o via ficando mais e mais velho, me peguei pensando se seria capaz de chorar a sua morte do jeito que os Wari’ fazem, com um canto em que se alternam crises de choro e uma fala cantada que celebra o morto. Quem vela se lembra, nesse canto, de episódios comuns, do que comeram juntos, dos cuidados que trocou com o morto durante a vida. Algumas pessoas, ao me verem ao seu lado, talvez reparando o meu olhar carinhoso em direção ao homem que havia me adotado como filha, pensavam o mesmo, e me perguntavam se eu estaria lá quando ele morresse.
Não estou. Paletó morreu no interior de Rondônia, e eu continuei aqui, no Rio de Janeiro, tentando imaginar o seu corpo, os poucos fios de barba brancos soltos no queixo, os braços fortes. Lembro-me de cada um desses detalhes com muita nitidez e não consigo imaginar nenhuma dessas partes sem vida. Elas se mexem, brilham, falam comigo.
Não importa a idade, talvez mais de 85 anos, o seu fim foi repentino para mim, mesmo diante da crescente debilidade que a doença de Parkinson lhe causava. Estava bem, comia milho com prazer, andava, disse-me sua filha Orowao, minha irmã mais velha, com quem ele viveu nos últimos meses na aldeia chamada Linha 26, a cerca de 300 quilômetros da capital do estado, Porto Velho. Ao que parece, comeu uma carne estragada, adoeceu, desidratou-se e foi levado ao hospital da cidade de Guajará-Mirim pelo genro de Orowao. Chegou lá muito fraco. Pediu que me telefonassem, mas alguém sugeriu que deixassem a chamada para o dia seguinte, quando ele pudesse falar melhor. Paletó entrou em coma naquela mesma noite, com insuficiência renal. Nunca mais nos falamos.
Talvez seja melhor dizer de outra forma: que eu nunca mais ouvi a sua voz. Pois tenho a esperança de que ele tenha ouvido a minha, por meio do celular que pedi ao médico, o meu amigo Gilles de Catheau, o “Gil”, para segurar sobre o seu ouvido. Não sabia bem o que dizer, mas o que me ocorreu foi falar em wari’ (a única língua que ele compreendia) que eu estava pensando nele, sentindo a sua falta, que queria que ele aguentasse firme, que fosse forte, que meus filhos, seus netos, Francisco e André, estavam ao meu lado, também pensando nele. Gil me disse que ele não se moveu e não fez qualquer sinal de que tenha me ouvido, mas espero que a minha voz tenha chegado a ele.
Quem sabe – imagino agora – a sua fala tenha vindo na verdade antes da minha, pois na noite em que foi internado, sem que eu soubesse de nada ainda, sonhei com ele. Estava bonito e jovem, forte como sempre, com todos os dentes. Falava com a clareza de antes de ter adoecido. No sonho, eu me dizia admirada de seu estado jovem, e ele sorria orgulhoso. Quem sabe já era o seu duplo que havia chegado até mim, em sua forma jovem que vai habitar o mundo dos mortos, tradicionalmente situado, para os Wari’, debaixo d’água, no fundo dos rios – ou, desde que se tornaram evangélicos, no céu.
Até 1961, por ocasião dos primeiros contatos pacíficos de seu grupo com os brancos, Paletó era chamado Watakao’, o último de uma série de nomes recebidos por ele desde a infância, um em substituição ao outro, como era comum entre os Wari’. Casado e com filhos, ele devia ter então cerca de 30 anos.
O encontro com aqueles a quem chamavam “civilizados” trouxe muitas mudanças para os Wari’, entre elas o abandono do hábito de andarem sem roupas. Watakao’ contudo insistiu nesse costume, recusando-se a se vestir mesmo diante da insistência dos funcionários do governo e dos missionários cristãos, até que se encantou com um paletó oferecido a ele, que passou a usar sobre o corpo nu, daí o apelido.
Conhecemo-nos em 1986, 25 anos depois disso. Fui apresentada a ele por seu filho Abrão, então com 18 anos, com quem me encontrei pela primeira vez no dia seguinte à minha chegada ao posto Rio Negro-Ocaia, na aldeia wari’ situada quase na boca do rio Negro, afluente do rio Pacaás Novos, por sua vez afluente do Mamoré. Vinha de mala e cuia, preparada para ficar ali por alguns meses fazendo “pesquisa de campo”, parte essencial da iniciação de todo antropólogo. No Rio, havia deixado a minha família, meu namorado e o trabalho como bióloga (sim, eu era bióloga, especializada em ecologia vegetal). Levava duas grandes malas e uma cadeira de praia – que um amigo antropólogo disse ser imprescindível se eu quisesse, na aldeia, ter onde me sentar com conforto – ao partir num voo da Varig de nove horas e muitas escalas com destino a Porto Velho. Depois de aterrissar, já no táxi que me levava ao hotel indicado por outro amigo antropólogo que conhecia a cidade, surpreendi-me com a minha resposta à pergunta do motorista: “A senhora veio de mudança?” Sim, tinha vindo.
Porto Velho, à noite, pareceu-me uma cidade de bangue-bangue abandonada. Assustada com as baratas que circulavam livremente pelo meu quarto, mas não só por isso, passei boa parte da primeira noite acordada, pensando se deveria mesmo seguir naquela aventura. Na manhã seguinte, no entanto, acordei bem-disposta. Tratei de organizar a viagem de avião para Guajará-Mirim, onde encontraria uma antropóloga norte-americana, Beth Conklin, que conhecia os Wari’ e com quem eu vinha me correspondendo havia alguns meses. De lá pegaríamos a embarcação que subiria o rio até chegar às aldeias wari’. Com o título de “Pérola do Mamoré”, Guajará, como é conhecida, nasceu como a estação final da famosa ferrovia Madeira-Mamoré, a “Mad Maria” do livro de Márcio Souza. Localizada às margens do Mamoré, situa-se de frente para a cidade-irmã boliviana, Guayaramerín, uma distante apenas quinze minutos de barco da outra.
Lembro-me com nitidez dessa viagem de avião desde Porto Velho, que me fez morrer de medo, especialmente porque eu podia ver que o piloto do bimotor mantinha uma das mãos ocupada, durante o voo, com um enorme hambúrguer. Alguém havia caprichado na maionese, que escorria por seu braço. A angústia e a dúvida só passaram completamente quando cheguei à casa que Beth mantinha em Guajará para os períodos em que não estava na aldeia. Uma construção de madeira, bem simples, mas com um ar hippie que me agradou já à primeira vista, por lembrar o meu apartamento no Rio, em Santa Teresa.
Minha decisão de estudar os Wari’ tinha sido tomada, em certa medida, de maneira aleatória, embora nos últimos anos eu os tenha ouvido mais de uma vez dizer, em seus cultos evangélicos, que Deus havia guiado os meus passos até lá. Aconteceu assim: eu e meus colegas, alunos de mestrado e de doutorado em antropologia social do Museu Nacional, todos orientandos de Eduardo Viveiros de Castro, estávamos em volta de um mapa do Brasil, estudando as localizações de grupos indígenas, com especial atenção para essa região da Amazônia, até então pouco estudada. Um desses colegas, Márcio Silva – o mesmo que depois me recomendaria levar uma cadeira de praia à aldeia –, comentou que havia passado alguns meses trabalhando como linguista entre os Wari’ da aldeia Sagarana, fundada pelos padres no rio Guaporé, e que os achara tremendamente simpáticos. Decidi-me sem pestanejar. Era a descrição de que eu precisava, pois, poucos meses antes, havia ouvido o relato desesperado de uma amiga que acompanhara uma antropóloga numa estadia com outro grupo indígena no qual a tônica, segundo ela, era o mau humor e a rispidez.
No dia seguinte, no porto de Guajará, esperava-nos o piloto da Fundação Nacional do Índio (Funai), Francisco das Chagas, o “Chaguinha”, que me acompanharia em muitas outras viagens depois daquela. Enchemos com malas e caixas de mantimentos comprados no mercado local (leite em pó, arroz, óleo de cozinha, feijão, lentilhas, sal, açúcar, biscoitos, café solúvel, goiabada, leite condensado) uma canoa de alumínio, à qual estava acoplado um motor de popa. Eu e Beth, que fazia a gentileza de me acompanhar nessa primeira viagem, ajeitamo-nos em um dos bancos e partimos. Naquele tempo, pelo que me lembro, não eram obrigatórios os coletes salva-vidas. Chaguinha acomodava-se na popa, dirigindo o motor, e entre nós e ele ficava um grande tambor de 50 litros com a gasolina necessária para a viagem de volta. O vasilhame enorme nos servia de encosto.
Bandos de pássaros circulavam todo o tempo sobre nós: garças, mutuns, araras, tucanos, papagaios. Lembro-me do impacto dessas imagens e dos sons da floresta de vegetação exuberante em volta, que me fizeram esquecer o medo dos dias anteriores.
Na noite do dia em que chegamos, fiz as seguintes anotações na primeira página de meu caderno de campo:
Saímos de Guajará às 10 horas numa voadeira da Funai com motor de 25 hp. Perto do meio-dia estávamos em Tanajura, o primeiro posto no rio Pacaás Novos. A área indígena se localiza na margem direita do rio. A aldeia fica sobre um barranco, e primeiro vemos as casas dos missionários, de madeira, com cortininhas. Depois, as casas dos Wari’, que são como as dos ribeirinhos, tipo palafita, com paredes e chão de paxiúba [uma palmeira da família das Arecaceae] e telhado de palha, com uma grande varanda na frente. Conheci alguns Wari’ dali, e me perguntaram de onde eu vim. Quando disse que era do Rio de Janeiro, logo me perguntaram pelo Maracanã. Seguimos pelo rio Pacaás Novos e por volta de 14h30 chegamos ao Santo André. A mesma paisagem, casas elevadas de paxiúba. Eles dormem sobre a paxiúba. A Beth deixou as coisas [era a aldeia onde ela trabalhava] e seguiu comigo para o rio Negro. Entramos no rio às cinco da tarde. A paisagem é diferente. O rio é muito mais estreito e bonito. Em uns quinze minutos estávamos na aldeia. Sobre um barranco, muitas pessoas nos esperando, mulheres, homens e crianças. Vieram também nos receber Edna, a professora, e Valdir, o chefe do posto. Fomos direto para a casa da Edna. A aldeia tem, logo na frente do rio, as casas da Funai: chefe, enfermeiro, professora e casa de ferramentas. Muitas mangueiras, cajueiros e jambeiros espalhados. As casas wari’ ficam espalhadas de um lado e outro, e atrás, em volta do campo de futebol. São ligadas por trilhas. O mato fica em volta da aldeia. Uma mulher colocou uma esteira no chão, na frente da casa, e catava piolhos no marido. (Rio Negro, 14/8/1986)
Quando penso que, na data de minha chegada, eu tinha 28 anos, entendo que não era assim tão mais velha que o filho de Paletó, Abrão, como me pareceu na ocasião. Éramos ambos jovens e, por iniciativa dele, entabulamos uma conversa em pé, na porta da casa da professora Edna, uma simpática paraense que me abrigou por algum tempo em sua casa de alvenaria, com dois quartos e cozinha, conjugada com a sala de aula.
Abrão, magrinho mas forte, com cabelos muito pretos, curtos e bem picotados, e um sorriso lindo, aproximou-se e me pediu um cigarro. Ofereci a ele tabaco e papel de enrolar. Começamos a conversar em português, língua que Abrão, desde aquela época, já conhecia, vindo a se tornar meu tradutor nos primeiros tempos. Perguntou o meu nome, de onde eu vinha, e quis saber o nome do meu marido. Ensinou-me a falar algumas de minhas primeiras sentenças em wari’: Aparecida ina ta (sou Aparecida); narima nukun wijam ina ta (sou mulher de inimigo), sendo que a última, vim a descobrir logo depois, era algo que eu não deveria dizer publicamente, pois confirmava assim minha posição de inimiga, modo como os Wari’ classificavam, naquele tempo, todos os não Wari’, tanto outros indígenas quanto aqueles que chamavam de “civilizados”. Como brincadeira, pediam-me para repeti-la muitas vezes, em voz alta, e todos riam muito. Outras vezes, pediam-me que dissesse também, em wari’, “eu peidei”, e riam ainda mais.
Acordei feliz com o sonho da noite, em que Paletó me apareceu jovem e saudável, pensando que nesse janeiro de 2017 fazia exatamente um ano que não o via, e que queria logo vê-lo novamente. No primeiro movimento depois de me levantar, ao abrir o celular, encontrei a mensagem de WhatsApp de Juscileth Pessoa, a Preta, funcionária da Funai e amiga de longa data, dizendo que infelizmente Paletó estava muito mal no hospital. Foi então que começaram as muitas ligações e mensagens, com informações detalhadas sobre o seu estado de saúde.
Recebi uma foto, onde pude vê-lo sobre um colchão azul de plástico. Tinha a cabeça apoiada em panos enrolados e estava coberto com uma manta estampada de vermelho, sob a qual se via que as pernas estavam abertas, com os joelhos afastados e os pés aproximados, bem do jeito que ele gostava de dormir. Não tinha a dentadura na boca e por isso os seus lábios estavam afundados. “Ele que não gostava de ficar sem a dentadura!”, pensei, e depois fui saber, pela enfermeira, que a haviam removido para que ele não se engasgasse. Mais tarde, ao tratar do enterro pelo telefone, pedi que a recolocassem. Espero que o tenham feito.
Recebia informações que eu não sabia decifrar, mas que pareciam assustadoras, e liguei para um amigo médico no Rio. Queria saber o que significavam as taxas de ureia e creatinina “altíssimas”. Outras eram facilmente compreensíveis, como o fato de ele ter urinado somente 50 mililitros em 24 horas e, ainda por cima, com sangue. Gil, ao telefone, resumiu o quadro: estava em coma. Mas seu pulso batia forte, ele disse em seguida. Eu sabia que Paletó lutava. Já havia sobrevivido a tantas guerras, a epidemias variadas, visto tanta gente adoecer e morrer ao seu redor, que um dia, em minha última visita a ele, no final de 2015, disse-me que eu não devia me preocupar com a sua saúde, porque ele “não sabia morrer”.
Consegui o telefone das enfermeiras do hospital, fui tendo notícias mais detalhadas, dentre elas o fato de terem indicado uma hemodiálise em certo momento do dia, logo depois descartada por envolver a necessidade de uma viagem a Porto Velho, o que significava ter que passar cerca de quatro horas numa ambulância. Na minha aflição a distância, ainda tentei convencer algumas pessoas, inclusive minhas irmãs, de que pensassem sobre essa possibilidade, que essa talvez fosse a única chance de ele sobreviver. Orowao, a mais velha, se mostrou em dúvida, e Ja, a caçula, foi veemente: não vamos levá-lo. Ela estava certa, pois foi quem estava ao lado dele algumas horas depois quando, saindo do coma, sentou-se na cama, pediu guaraná e pastel, deitou-se novamente e morreu. Segundo Ja, às três da madrugada. Segundo o genro de Orowao, às cinco da manhã.
Foi com a mensagem dele, Julião, que eu acordei, às sete: Paletó faleceu. Difícil acreditar. Ainda o é hoje, um dia depois, quando começo a escrever este relato. Só consigo pensar nele vivo, tão vivo como sempre foi. O celular de Julião me levou à minha irmã mais nova, Ja, que então me colocou em meio ao canto fúnebre, tão conhecido por mim, mas tão estranho agora que me via impelida a participar como filha. Ja cantava e soluçava. Em seu canto dizia meu nome, chamando-me de Apa e de irmã mais velha. Dizia ela que não aguentava tanto sofrimento, que nossa mãe havia morrido em agosto com a cabeça em seu colo, em uma canoa no meio do rio, e que agora perdíamos o pai. Pedia para eu ir para lá, mas logo depois concordava com meu argumento de que eu não conseguiria chegar a tempo, antes que o corpo fosse enterrado.
Como eu temia ao imaginar esse momento, as lágrimas escorriam pelo meu rosto, mas eu não conseguia cantar. Com tanta emoção, eu não era capaz de repetir a melodia que esperavam de mim, nem falar por meio do canto. Tudo o que consegui fazer foi falar, repetir sem parar que havíamos perdido o nosso pai, que tudo me lembrava dele na minha casa no Rio, onde ele passou alguns períodos memoráveis, ensinando-me muitas coisas, contando a sua história de vida e, sobretudo, fabulando sobre as novidades que via nesse mundo da cidade grande que lhe era tão estranho.
Não conheci Paletó de imediato, assim que cheguei à aldeia, embora o seu nome estivesse nas primeiras páginas de meu caderno de campo, em uma lista de pessoas mais velhas com quem eu devia falar. De acordo com as anotações, no meu quarto dia ali, fui à casa de sua filha Orowao, e lá o vi pela primeira vez, sentado ao lado de sua esposa, To’o Xak Wa. Fazia-me perguntas que eu não entendia, o que o divertia e provocava risadas. Seu genro, casado com Orowao, traduziu-me algumas delas: queria saber se meu marido era velho, se meus pais eram velhos. Visitei Paletó em sua casa dois dias depois. Na ocasião, intermediado por Abrão, contou-me um mito, seguido de cantos dos Orotapan, povo mítico que vive debaixo da água, cantos que foram acompanhados por sua mulher e gravados por mim. Pediram-me que contasse uma história para eles, e a primeira que me ocorreu foi a da Cinderela, que lhes foi traduzida por Abrão.
Em uma viagem de barco, dois meses depois de minha chegada, chamei Paletó de pai pela primeira vez. Foi uma das raras vezes em que naveguei na grande embarcação de madeira do rio Negro, uma chata, como se diz na região, e que os Wari’ chamavam de Tonton (onomatopeia derivada do som de metal do motor). Éramos muitos descendo o rio em direção à aldeia Tanajura, onde haveria uma festa. Foi um custo partir, porque a toda hora diziam que alguém ou alguma coisa estava faltando. Refiz por diversas vezes o caminho entre a minha casa e o rio, mobilizando-me a cada novo anúncio de que afinal seguiríamos viagem. Carregava uma mochila com as minhas coisas, e um pequeno cesto, com alguns aipins e ovos cozidos, que achei que seriam suficientes para a viagem. Mas o percurso, que era para durar no máximo oito horas, acabou sendo feito em dois dias, e as minhas parcas provisões, repartidas entre os que pediam, acabaram nas primeiras horas.
Quando estávamos perto de chegar, já sem comida e com fome, resolveram parar para pescar. Fiquei no barco, acompanhada por alguns rapazes que estavam com preguiça de participar da pescaria. Um deles, Luís, sobrinho de Paletó, deitou-se no assoalho do barco com o rádio colado em seu ouvido, sintonizado na Rádio Nacional de Porto Velho. Achei engraçado ouvir ali, cercada de floresta, o anúncio de uma loja de tapetes e pratas. Luís não gostou e trocou de estação, parando em uma música lenta de Roberto Carlos, que tampouco o agradou. Girou novamente o botão até encontrar uma música animada, em que o cantor falava em não poder viver sem “ti”. Luís gostou e ficamos ouvindo.
Os demais Wari’ espalharam-se pela beira do rio, os peixes começaram a aparecer, pequenos fogos foram acesos para cozinhá-los. Ninguém me convidou a comer e, sem saber o que fazer, disse para Abrão que estava com muita fome. Ele então me ensinou: “Você tem que ir até o nosso pai e pedir comida, dizendo que está com fome.” Aproximei-me de Paletó, que estava sentado ao lado de um moquém com peixes, e, envergonhada por me ver nessa posição fragilizada de pessoa faminta, inusitada para mim, disse exatamente o que Abrão havia sugerido: “Estou com fome, meu pai.”
Não me esqueço de sua reação, contente por partilhar o peixe comigo, talvez feliz com o meu progresso na compreensão das relações humanas e na ativação dos laços de parentesco. Parece ter sido uma aula explícita, pois mesmo hoje, quando vendem entre si alguns produtos e carne, os Wari’ não são de modo algum avaros, sempre oferecendo daquilo que estão comendo quando alguém chega em casa, por exemplo. E, feita a oferta, não se faz cerimônia. A comensalidade é parte essencial e constitutiva das relações de proximidade.
Essa foi a primeira das muitas vezes que partilhamos comida, fosse oferecida por ele ou por mim, no rio Negro ou no Rio de Janeiro. Devagarzinho, ao longo desses muitos encontros, em que comida, conversas, risos e choros se entremeavam e incluíam cada vez mais os membros de nossas famílias originais, chamá-lo de pai se tornou natural para mim. Ele, por sua vez, raramente pronunciava meu nome, chamando-me sempre de “filha”, ou, quando estava na companhia de seus outros filhos, chamando-nos a todos de “crianças”: “Venham já aqui me ajudar, crianças!”
Tento agora me lembrar do rosto de Paletó naqueles primeiros meses, mas ele se confunde com outros, das diversas fases em que convivemos. Lembro-me de seus ângulos, da falta de sobrancelhas e cílios, recorrentemente arrancados, por toda a vida, com uma pinça feita de gravetos. Lembro-me do nariz largo, dos cabelos à altura das orelhas, repartidos ao meio e ainda totalmente pretos, e da meia dúzia de fios de barba, pendurados no queixo, também cuidadosamente arrancados com frequência, e que com o tempo ficaram brancos. Naquele tempo, os Wari’ achavam horrível manter pelos no rosto e nas diversas partes do corpo, inclusive os pelos genitais, e os cônjuges estavam sempre prontos a arrancá-los quando tinham algum tempo ocioso juntos. Diziam que pessoas peludas pareciam animais, e achavam horrorosos os brasileiros barbudos que encontravam na cidade.
Embora Paletó fosse bem mais baixo do que eu – sua cabeça chegava um pouco acima do meu ombro –, sempre tive a sensação, tanto com ele quanto com os demais adultos Wari’, de que os olhava de baixo para cima, talvez por me sentir meio criança quando estava ao seu lado. Era magro, mas com os músculos dos braços e pernas bem delineados, como os de seu filho Abrão. Mas do que mais me lembro com nitidez são os gestos, o modo de mexer os braços enquanto falava, apontando aqui e ali, e de sua voz, meio grave e sempre em tom baixo, como é comum entre os Wari’, para quem falar alto é brigar.
Minha irmã caçula, Ja, continuava comigo ao telefone, próxima ao corpo de nosso pai. Cantando, ela me pediu comida para os meninos que chegavam para o velório. Cantando me contou sobre a morte da mãe, poucos meses antes. Agarrada ao celular, eu só fazia me repetir, tão frustrada em não conseguir cantar, mesmo tendo imaginado tantas vezes esse momento. Ela então me liberou para ir, para desligar o telefone, que telefonasse para Gil pedindo que levasse comida, o que ele fez em seguida. Levou café e pão ao porto, onde choravam abraçados ao caixão. Ninguém tocou na comida, ele disse. Não se come ao chorar.
Deitada, olhando para o teto do meu quarto, remoía-me por não estar ali. E então pensei em algo que pudesse agradar Paletó, caso ele pudesse presenciar a cena. Pedi que trocassem o caixão, que o colocassem em um caixão bonito e forrado. Que o vestissem com camisa social, calça e sapatos lustrosos de cadarço. Queria que olhassem para ele como alguém especial, que todos, não só os parentes, o vissem como o homem importante que foi, tão sábio, tão forte e tão bem-humorado, curioso, aberto. Um adulto que guardou o que há de melhor de sua criança, mesmo tendo visto tanta coisa triste, inclusive vários de seus parentes próximos serem alvejados e mortos por seringueiros, sessenta anos atrás. Eu perguntei a ele certa vez se não odiava os brancos, todos nós brancos, por isso, e ele, gentil como sempre, me respondeu que eu e meus parentes não tínhamos nada a ver com isso, pois vivíamos muito longe. Sou-lhe grata por esse perdão.
Larissa, enfermeira, e Jôice, assistente social, lá longe em Guajará, foram à funerária, pediram a troca do caixão e me avisaram que o vestiriam de acordo com o meu pedido, com exceção dos sapatos, que não havia ali. Os mortos da funerária vestiam somente meias. “Não é possível”, eu disse. “Ele tem que ir com sapatos bonitos!” No céu cristão, para onde Paletó desde alguns anos contava em ir, todos ficam bonitos e bem-vestidos e, muito especialmente, todos usam sapatos, item mais raro no vestuário wari’. Jôice comprou os sapatos. “Ele calça 39?” Sim, eu respondi, mas os seus dedos são muito abertos, de modo que sempre comprei para ele sapatos um número ou dois maiores. Quem sabe agora, ainda por cima, os seus pés estivessem inchados? Número 41. “Comprado!”, disse-me ela pelo WhatsApp.
O calor neste janeiro de 2017 no Rio de Janeiro está insuportável, e imagino o calor de Rondônia e a viagem que Paletó terá que fazer até o rio Negro, para a aldeia Ocaia III, onde tinha a sua casa e onde vive a maioria de seus filhos. Vim a saber então que o novo caixão incluía uma espécie de serviço VIP, com o embalsamento do corpo e uma coroa de flores. Jôice, que comprou os sapatos, me telefonou da funerária dizendo que ele estava todo arrumado, no caixão bonito, bem-vestido e calçado. Tirou uma foto para me mostrar, mas lhe pedi que não a enviasse. Queria manter a lembrança do seu duplo jovem que me aparecera no sonho da antevéspera.
Um pouco depois recebi uma mensagem de Preta, agora com uma foto do caixão ao longe, com pessoas jogadas sobre ele chorando. Reconheci minha irmã Orowao recostada na parede, com ar exausto, e minha irmã Ja, abraçada ao caixão. A imagem é de uma dor cortante. Vi que um pano cobria o caixão fechado e ampliei a foto no meu smartphone para ver melhor. Parecia a bandeira de um time de futebol, branca e verde. Perguntei ao meu filho André, que estava ao meu lado, que bandeira era aquela, e ele imediatamente respondeu: “Do Palmeiras.” Terá sido um acaso? Paletó nunca ligou para futebol, e seu filho Abrão, até onde sei, é vascaíno. Mas o Palmeiras havia sido campeão brasileiro do ano de 2016 e talvez por isso tivessem interesse em uma bandeira do time. Será que quiseram dar ao Paletó um velório de campeão?
Soube que a voadeira, de 40 hp, saiu do porto somente às 10h30, já com o sol alto. Fiquei imaginando a viagem, as paradas nas diversas aldeias no caminho para que os parentes de cada uma delas pudessem ver o morto, a chegada dramática, com um monte de gente esperando e chorando, inclusive três de seus filhos, Abrão, Davi e Main, que haviam decidido ficar e esperar. Vão passar a noite chorando, agora com o caixão aberto e o corpo disponível para ser tocado e abraçado. Talvez um ou outro se meta debaixo do corpo, e outro debaixo deste, formando uma pilha humana que se mantém até que o último perca os sentidos e seja retirado. Querem os cheiros, os líquidos, tudo que o corpo ainda puder lhes oferecer.
No passado, um morto importante, por ter participado de muitas festas, era carregado nas costas de um homem vivo, e lhe era oferecida chicha de milho, uma bebida fermentada, alcoólica, como se faz com os convidados em uma festa. Logo depois, o seu duplo chegaria debaixo d’água, no mundo subaquático dos mortos, onde aí sim beberia mais chicha, oferecida por um homem de grandes testículos, chamado Towira Towira (Testículo Testículo). Cheio de chicha, o duplo vomitaria e seria levado à casa dos homens para um período de reclusão, como faziam os matadores. E era matador o que um homem morto se tornava para os Wari’, daí seu aspecto jovem e vigoroso, o mesmo do duplo de Paletó que tinha aparecido em meu sonho.
No passado ainda, os mortos não eram enterrados, como será Paletó em seu caixão, no cemitério rio acima. O local foi inaugurado pelos missionários evangélicos norte-americanos da New Tribes Mission, que chegaram na região do rio Negro em 1961 para ajudar no que chamaram “a pacificação” dos Wari’, e que até hoje vivem em algumas aldeias. Antes, o corpo de Paletó estaria livre dos limites do caixão, no colo dos parentes, enquanto outras pessoas preparavam o fogo que iria assá-lo. Dois, três dias se passavam até que todos chegassem de suas aldeias, para ver o corpo ainda íntegro, abraçar-se a ele, colocar-se sob ele. Alguns dos mais próximos, inconformados com a morte, aproveitariam a distração dos demais para se jogarem no fogo, tentando, por meio de sua própria morte, se juntar ao parente querido nesse mundo debaixo d’água para onde todos iam. Geralmente eram resgatados por alguém mais atento e sobreviviam. Alguns chegavam a morrer.
Lembro-me de Paletó mostrando-me esse movimento, numa das vezes em que teatralizou para mim o funeral, para que eu pudesse entendê-lo e registrar as etapas da cerimônia, filmando sua encenação. Estávamos na sala de meu apartamento no Rio de Janeiro. Eu, ele e Abrão. Duas cadeiras unidas por cabos de vassoura faziam as vezes do moquém funerário. Um jornal amassado sob elas era o fogo. Um boneco de plástico, com pernas, braços e cabeça removíveis, que havíamos comprado numa loja barata no Centro da cidade, era o morto.
Paletó fazia questão de que eu participasse ativamente, não só filmando, para que aprendesse direito os detalhes do ritual. Ele me ensinava os papéis dos dois grupos envolvidos no funeral: como parente do morto, eu devia chorar, andar agachada e, cantando (vejam, eu já havia mesmo ensaiado o canto que não pude cantar quando foi preciso!), pedir aos não parentes, um a um, que comessem o morto. Já na atuação como não parente, ensinava-me a pegar a carne assada partida em pedacinhos (substituída ali por pão) e, com o auxílio de palitos, levá-la à boca delicadamente, mostrando-me gentil com os parentes do morto que haviam me pedido para que o fizesse desaparecer, comendo-o. Os parentes não queriam mais ver o morto; estavam fartos de tristeza.
Promover o desaparecimento completo do corpo, cuja visão provocava imensa saudade e tristeza, era, para os parentes, a razão para que pedissem aos outros que o comessem, já que eles mesmos, cheios de lembranças do morto, que o tornavam ainda vivo em sua memória, não eram capazes de fazê-lo. Mas não era só o desaparecimento que os Wari’ buscavam ao solicitar que se comessem pedaços da carne de seus mortos, pois se quisessem poderiam simplesmente queimar o cadáver, alcançando assim o mesmo objetivo. Ao comerem, os não parentes mostravam aos enlutados que um cadáver não é mais gente, e que por isso podia ser comido. Davam início, assim, ao longo processo de elaboração do luto por parte dos parentes, que culminava com a capacidade de adotarem, eles também, a perspectiva dos não parentes, dos comedores, eliminando de sua memória a visão humana do morto.
Na encenação, eu e Abrão nos revezávamos nos papéis de quem chora e de quem come, e também de quem filma. Rapidamente Abrão aprendeu a manejar a câmera, e a estabilidade da imagem só era perdida quando nós três tínhamos acessos de riso, um deles justamente quando Paletó tentava jogar-se no fogo-jornal e Abrão precisava resgatá-lo.
Paletó me disse várias vezes que tinha muita dificuldade de comer carne de gente, que ela em geral tinha um cheiro muito forte, uma catinga mesmo. Contou-me como certa vez os parentes de uma mulher chamaram-no, ainda rapaz, para que ele comesse da sua carne. Paletó disse que até tentou, comeu um pouco, mas depois correu para longe a fim de vomitar. Imagino que, por se tratar do cadáver de uma mulher adulta, estivesse bastante apodrecido, pois esperavam por dias a chegada de todos os parentes antes de cortar e assar o morto.
Em nossas filmagens, Paletó falava muito disso, e em uma das cenas em que eu comia da carne do boneco morto ele me fez virar para o lado e fazer que vomitava. Não se devia fazer isso na frente dos parentes do morto, pois era uma indelicadeza. Mas indelicado mesmo era comer da carne com avidez, como se come caça. Imediatamente após a morte, o cadáver ainda não é animal e, embora seja isso o que ele se tornará depois, era preciso respeitar a perspectiva dos parentes, que o viam ainda como gente, como se estivesse vivo, do mesmo modo que eu agora vejo Paletó em minhas lembranças. O risco de tal gafe, de comer a carne demonstrando prazer, era maior quando a carne era assada antes de estar apodrecida, como era o caso de crianças falecidas, que tinham um velório abreviado.
No passado, tudo era comido, o corpo era consumido completamente, de modo que não restasse nada da carne do morto. Se por acaso algo sobrasse, era jogado ao fogo, juntamente com os ossos, para ser queimado e desaparecer. Também eram queimados todos os pertences do morto, além de sua casa, sua roça, os troncos onde se sentava nos caminhos da floresta. Os Wari’ chamavam esse ato de destruição de “varrer”, varrer tudo do morto.
Certa vez Paletó me disse que se eu morresse ele choraria muito, rasgaria as roupas que eu lhe tinha dado e as jogaria no fogo. Fico pensando no que farão hoje com os pertences do Paletó, sua maleta, sempre com ele, suas roupas, o cachecol que eu lhe dei faz tempo, vermelho, cobertas, shorts. Será que vão destruí-los? Ou então vão dar ou vender para alguém, como costumam fazer atualmente com bens mais duradouros, como rádios e tevês? Antes essa não era uma questão, disse-me certa vez sua esposa, To’o Xak Wa, pois os bens duradouros limitavam-se a panelas de barro, que eles quebravam e jogavam no fogo que assava o morto.
Paletó não tinha mais uma casa própria, nem tantos bens assim, pois vivia – na companhia da esposa, até que ela morreu – ora com um filho, ora com outro, que cuidavam dos pais e os alimentavam. Nos últimos anos estava bastante debilitado pelo Parkinson. Costumava dizer que o seu enfraquecimento decorrera de uma queda na água, quando pescava sozinho em uma canoa. Sem saber nadar, quase morreu afogado, e foi resgatado desfalecido por um de seus filhos. Desde então, tremia muito, como se o frio da água tivesse afetado indelevelmente o seu corpo.
As fotos que acabo de ver no meu computador, feitas em 2015, quando o vi pela última vez, o mostram cantando, rindo, mas de olhos fechados quase sempre. O que ele não queria ver? Esse homem viveu seus primeiros trinta anos na floresta, sem contato com os brancos a não ser nos ataques guerreiros, sendo que num deles, por volta de meados dos anos 50, perdeu dois de seus filhos, sua esposa, seu pai, um irmão e muitos outros parentes, todos alvejados pelas metralhadoras dos capangas dos seringalistas locais, interessados em explorar as terras dos Wari’. Até então Paletó não conhecia quaisquer dos bens de nossa civilização, a não ser as ferramentas de metal, obtidas em casas de seringueiros. Viu chegar os expedicionários do governo e os missionários, decididos a “pacificá-los”, e com eles as comidas estranhas, as roupas e as epidemias, que mataram dois terços da população Wari’ no início dos anos 60. Com o seu paletó, ele viajou por outras aldeias e conheceu a cidade de Guajará-Mirim. Chegou ao Rio de Janeiro, conheceu o telefone e a internet. Vejo-o agora numa foto em meu mural, falando comigo por Skype quando estava em Guajará, na casa do Gil, que o fotografou. Será que os olhos fechados o levavam a essas imagens do passado?
A primeira vez que Paletó me visitou no Rio foi em dezembro de 1992, junto com Abrão, gentilmente trazidos de ônibus pela professora Evanir Kich, que vivia com os Wari’ e tinha família no Sul. Ela seguiu viagem para visitar seus parentes, deixando combinado que dali a dois meses passaria para buscá-los, no seu caminho de volta a Rondônia. Era a primeira vez que Paletó saía dos limites da cidade de Guajará-Mirim, hoje com 47 mil habitantes, e naquele tempo bem menor.
Busquei-os na rodoviária, e fomos para minha casa, na rua Belisário Távora, em Laranjeiras, apertados dentro do meu Fiat Uno. O estranhamento de Paletó com os prédios, as máquinas nas ruas, o elevador e a altura de minha casa não durou mais do que alguns minutos. A cada novidade que encontrava, sua surpresa era logo substituída por uma enorme curiosidade, marca desse homem destemido e encantado pela diferença das pessoas e das coisas.
A minha hesitação nas situações que, a meu ver, poderiam lhe causar medo, era logo substituída por risadas que partilhava com ele. Disse-me que iria fazer sua casa dentro do bondinho do Pão de Açúcar, de tanto que gostou da viagem, mas logo mudou de ideia ao conhecer o metrô – e optar por residir ali. Preferia as ruas movimentadas, como a Nossa Senhora de Copacabana, por onde passeamos, às transversais mais estreitas e tranquilas, pois gostava de ver as pes-soas se esbarrando. Dizia que pareciam cardumes de peixes.
Paletó elucubrava sobre tudo, com seu aguçado senso de ironia. Desde o início sentiu-se impactado pela quantidade de habitantes da cidade. Um dia, ao caminharmos na estrada das Paineiras, uma área de lazer do Rio cercada pela Floresta da Tijuca, e vendo que muitas pessoas eram acompanhadas por cães, arriscou: será que fazem sexo com eles e é por isso que são muitos? Os cachorros maiores, contudo, Paletó comparava às onças. Foi o que fez quando estive com ele em um restaurante japonês, acompanhada de meu filho André. Horrorizado por ver o neto comendo peixe cru, perguntou-me se eu não temia que ele fosse comido por onça, pois esse animal fareja o cheiro de sangue das carnes cruas ingeridas, levando os Wari’ a cuidar para que seus alimentos estejam sempre bem cozidos. Diante da resposta que me pareceu evidente – “Aqui não tem onças, meu pai!” –, ele me lembrou desses cachorrões que andam nas ruas. “Você acha que eles não farejam sangue?”
Impressionava-o o fato de eu não conhecer as pessoas com as quais cruzávamos nas ruas. Era inconcebível para ele que se pudesse viver ao lado de pessoas sem que se estabelecessem com elas relações de parentesco, algo que se constrói fazendo coisas juntos, de modo a produzir memórias mútuas, especialmente compartilhando a comida. Acho mesmo que foi nessa visita, e nas outras que a sucederam (ele voltou em 2009 e 2012, dessas vezes de avião, acompanhado de Abrão), que nossa relação se consolidou, assim como aquela com os meus filhos, que me acompanharam desde pequenos ao rio Negro, e que aos poucos se acostumaram a chamá-lo de avô, jeo’.
Tenho um filme em que Paletó toca uma flautinha que havia feito para mim, a mesma usada pelos matadores Wari’ no período de reclusão, enquanto Francisco, com 2 anos de idade, dança ao ritmo da música. Muitos anos depois, capturei a imagem de Francisco, já adolescente, deitado numa rede com Paletó, cada qual com a cabeça para um lado, e cada um tocando a sua flauta, em dueto. Ao partir do Rio na primeira viagem, despedindo-se de mim na rodoviária, disse-me, referindo-se ao Francisco: “Não desperdice o nosso menino, não deixe que ele suba em árvores, para que ele possa crescer.” André, sempre que podia, abraçava-se a ele, e tenho uma linda foto de uma dessas cenas, na véspera do Natal de 2012, na casa de meus pais: ambos estão sentados e de olhos fechados, usando bermudas xadrez idênticas que haviam ganhado de presente, o braço de André enlaçando a sua barriga.
Meus pais também se encantaram com Paletó, que por sua vez passou a chamar o meu pai, Hélio, de irmão mais velho. No Natal de 1992, insistiu que ensaiássemos um dos tipos de canções entoadas pelos Wari’ em suas festas, com letras curtinhas sobre fatos comezinhos, “besteiras de gente”, como me diziam, para cantarmos na festa. No lugar do tambor de argila coberto com látex de que se servem para dar ritmo às músicas, usamos o que tínhamos à mão, uma lata de sorvete, na qual batíamos com uma colher. Paletó convidou o seu irmão mais velho para dançar, e rememoro a cena através de uma foto em que os dois, de pé, dão um passo à frente e outro atrás, com os braços entrelaçados, ao modo dos Wari’.
As moquecas de peixe em panela de barro que minha mãe preparava para ele e Abrão os encantavam, e minha mãe tinha um afeto especial por Paletó: em uma foto feita no Natal de 2012, os dois estão de pé, abraçados, com os rostos colados e os olhos fechados.
Nosso parentesco incluiu o resto de nossa pequena família: Paletó e Abrão conviveram com meu irmão, minha cunhada e meus dois sobrinhos em diversas ocasiões, desde a primeira visita ao Rio em 1992, e Paletó dizia sempre que queria visitá-los em Brasília, para onde haviam se mudado. Em uma das escalas do avião, puderam finalmente conhecer aquela cidade, sendo levados por meu irmão e sua esposa, a pedido de Paletó, à “casa do Lula”, que admiraram do lado de fora.
No fim da vida, Paletó dizia aos seus parentes Wari’ no rio Negro, meio rindo, meio sério, que, se não cuidassem bem dele, ele viria para o Rio e morreria aqui. Os únicos netos que o chorariam seriam Francisco e André. Em minha última viagem a Rondônia, em dezembro de 2015, realizada expressamente para vê-lo, levei em meu iPad duas pequenas gravações, cada uma com um dos meninos conversando com ele, chamando-o de avô e dizendo que estavam pensando nele. Em uma cena tocante, ele e To’o Xak Wa conversaram com a imagem dos meninos, como se eles estivessem ali, como se fosse uma conversa por Skype. To’o repetia: “André, André, sou eu, sua avó. Estou velha, estou fraca. Não consigo mais enxergar direito. Francisco, Francisco!” Quando Paletó segurou o tablet, disse a um dos seus netos: “Quando você vier aqui, não vou mais existir.”
Em contato com os missionários evangélicos desde 1961, o que finalmente levou Paletó a se declarar crente, mais de uma década depois, foi, segundo ele, o medo do fim do mundo – mais especificamente, o medo de ser abandonado pelos seus conterrâneos e parentes, muitos deles já convertidos, e que por isso iriam para o céu. O que se passaria com os que ficassem na Terra, segundo lhe dizia o missionário Royal Taylor, era digno de um filme de terror: “Se vocês não acreditarem, vão ficar na Terra e a onça vai comê-los. Vai haver todo tipo de espírito de bicho. Um grilo enorme vai comer os Wari’. Um grilo enorme enviado do céu. Deus vai mandar para comer as pessoas que não acreditam.”
No meio de uma pescaria com Abrão, quando o filho ainda era bem menino, Paletó ouviu um trovão e teve medo de que o mundo fosse acabar. “Tínhamos muito medo”, contou Paletó. Em particular, do inferno: ali, em um fogo lento que nunca se extingue, os pecadores vão queimar para sempre, ficar com a pele cheia de feridas, e sentir muita sede, que não pode ser saciada.
Ao voltar para casa depois dessa pescaria, Paletó disse a sua esposa que queria ser crente. Ela, de início, não gostou da ideia, mas depois de um tempo decidiu acompanhar o marido, e foram ambos à casa do pastor, já um homem wari’ formado pelos missionários, comunicar a decisão. No dia do culto, comunicaram-na a todos, e algum tempo depois foram batizados, com um mergulho na água do rio Negro. Segundo Paletó, o batismo de To’o não correu tão bem: o fato de, tempos depois, ela ter se desviado da vida cristã provou que, como desconfiavam, a imersão na água tinha sido insuficiente, pois na ocasião viram que os cabelos do topo de sua cabeça continuaram secos.
Alguns anos depois, já no início dos anos 80 – logo antes de eu conhecê-lo, portanto –, Paletó, por ter se envolvido em brigas de borduna, largou Deus, como costumam dizer. O mesmo aconteceu com boa parte dos Wari’ nos primeiros anos daquela década. Voltaria a ser crente já mais velho, em 2001. “Voltei para Deus”, ele me disse. “Atualmente, acredito direito. Sou velho. Velhos não vivem muito. ‘Seja crente, para que o seu duplo fique bem. A sua mulher também’, disseram para mim.”
Muitos outros Wari’ tornaram a se dizer crentes naquele mesmo ano de 2001. Alguns me disseram que voltaram para Deus depois de assistirem na televisão comunitária da aldeia ao ataque dos aviões ao World Trade Center, em Nova York. Entenderam então, por meio das exegeses dos pastores, que uma guerra mundial iria acontecer, sinal da proximidade do fim do mundo.
Quando cheguei ao rio Negro em janeiro de 2002, diversas pessoas pediram-me notícias da tal guerra mundial, perguntando especificamente se os talibãs já haviam chegado ao Rio de Janeiro.
Não havia mais missionários morando no rio Negro e, como eu não sabia que os Wari’ haviam se tornado cristãos, não entendia bem o que se passava. Tampouco me dava conta dos cultos noturnos quase diários na igreja local, cuja sede era naquele tempo uma construção de paxiúba e telhado de palha, que ficava afastada da casa da escola onde eu estava hospedada com meus filhos. Lá, recebia a visita de Paletó quase todos os dias, mas a certa hora invariavelmente ele ia embora, com explicações evasivas, sem aceitar o meu convite para jantarmos, nem mesmo quando eu preparava o seu prato predileto, macarrão à bolonhesa, o que me surpreendia. Era a hora do culto. Ele não queria que eu soubesse que estava frequentando a igreja, pois temia a minha reprovação. Passei, de toda forma, a acompanhar as cerimônias e a conversar muito com os Wari’ sobre Deus, Jesus, seu filho, e o Espírito Santo, o “duplo” de Deus.
Ao frequentar os cultos fiz a alegria de Paletó, genuinamente preocupado com minha salvação e consequente ida para o céu, algo que o pouparia de, já no céu, ter de recusar os meus pedidos de água vindos do inferno. Embora eu sempre explicasse que estava ali por curiosidade sobre a vida deles, e não por ter me tornado crente, ele abria um grande sorriso quando me via entrar na igreja, orgulhoso como ficam os pais crentes quando os seus filhos resolvem “seguir Deus”.
Pouco a pouco, a insegurança de Paletó sobre a minha opinião em relação à sua conversão se desfez. Tenho uma foto ao seu lado em que ele veste uma camiseta rosa que traz uma frase bordada: “Jesus, nosso caminho.” Na cabeça, o chapéu de lã quadriculado em preto e branco que o meu pai daqui lhe havia enviado. Ele está sério, e eu, sorridente, com uma camisa cor de abóbora e uma bolsa atravessada a tiracolo, onde sempre levava o meu pequeno caderno de anotações, caneta, repelente de mosquitos e uma lanterninha.
Nesses cultos, regidos pelos pastores Wari’ em sua língua, cantavam-se hinos cristãos, vertidos do inglês e do português para o wari’ pelos missionários, auxiliados por tradutores Wari’; orava-se em admiração ao trabalho divino da criação; pedia-se a Deus proteção e estudavam-se os livros bíblicos já traduzidos. Esses cultos eram tão compridos, especialmente no domingo de manhã, que algumas pessoas, especialmente as mais velhas, chegavam a dormir. Eram acordadas por diáconos que rodavam pela igreja, atentos aos bons modos dos fiéis.
Quando André era pequeno, pedi certa vez a Francisco, então com 11 anos, que fosse comigo ao culto para me ajudar a tomar conta do irmão. Acostumados às boas brincadeiras com as crianças Wari’, que corriam com seus arcos simulando guerras aos inimigos, no caso do André, ou o desafiavam a jogar xadrez, no caso do Francisco, os meninos ficaram muito entediados. Francisco, ao final, anunciou: “Eu faço qualquer coisa que você pedir, mas não venho mais à igreja.” Isso não o impediu de aprender, com os amigos e amigas de sua idade, alguns hinos cristãos em sua versão brasileira, especialmente um que falava repetidamente de uma ovelhinha desgarrada do rebanho, que fazia méé, méé.
Devo dizer que sou totalmente contrária ao trabalho de conversão religiosa realizado por quaisquer missionários entre grupos indígenas, e sempre procurei expressar claramente essa opinião aos Wari’, em diversas ocasiões e de diversas formas, inclusive enumerando os motivos pelos quais eu não era crente, algo que causava consternação a Paletó. De todo modo, por mais que eu explicasse que frequentava a igreja apenas por estar interessada em acompanhar o dia a dia deles, o fato de eu estar lá era para ele um claro sinal na direção oposta, ou seja, de que eu estava sim me tornando crente – para os Wari’ as ações são muito mais importantes do que as palavras. E afinal eu estava na igreja.
Ainda assim estavam sempre atentos ao que sabiam ser meus outros interesses. Certa vez, já em 2014, ao fim de um culto o pastor veio me dizer que eu devia ir conversar com um homem idoso recém-chegado de outra aldeia, pois lhe haviam dito que esse homem tinha sonhado com espíritos animais, assunto de meu interesse. Por mais que tenham sido catequizados por missionários fundamentalistas, que insistem em uma visão de mundo única, expressa literalmente pelas palavras da Bíblia, os Wari’ parecem ter sido naturalmente moldados à aceitação da multiplicidade de visões. São radicalmente não dogmáticos.
Beto, meu ex-marido, lembrou-me agora ao telefone de um episódio em que isso apareceu com clareza, ocorrido no Rio de Janeiro, em janeiro de 1993. Ele havia levado Abrão e Paletó ao Aeroporto Santos Dumont para verem os aviões decolar e pousar. O primeiro aparelho que Paletó viu levantar voo era um avião pequeno, o que o levou a observar que voara apenas por ser diminuto, dizendo duvidar de que os maiores fizessem o mesmo. Esperaram então que um avião grande decolasse, o que logo aconteceu. Diante do olhar do Beto, que o interpelava como quem diz “Está vendo?”, Paletó disse: “Este foi!” Esse apenas, aquele um. Deixava subentendido que não tomava antecipadamente essa capacidade válida para qualquer outro avião.
Como no passado, meus parentes, lá no rio Negro, vão ficar de luto por muito tempo, chorando e cantando a melodia fúnebre todos os dias, lembrando-se, por meio dela, das ações do morto, Paletó, de seus cuidados, do alimento que dava aos parentes. Quase não vão comer, vão emagrecer e ficar muito roucos.
No passado, depois de meses um parente próximo decidia terminar o luto, convidando a todos para uma caçada de alguns dias. Voltavam carregados de cestos, repletos de animais mortos e já assados, e entravam na aldeia na mesma hora do dia em que a morte havia ocorrido. Choravam agachados em torno dos cestos do mesmo modo como choravam os mortos, cantando a melodia fúnebre e lembrando-se de seus feitos, de seus pequenos atos de cuidado em relação a eles. Choravam não só aquele morto, mas outros também, aqueles de que ainda se lembravam. E então todos comiam as presas moqueadas, rindo e chamando-as de cadáver. “Quer um pedaço de cadáver?”, alguém diria, puxando um tasco para oferecer ao outro. Sem palitos, sem cuidados. Era cadáver, mas também, agora sim, era caça. Uma transformação havia ocorrido e por isso celebravam. O morto, ao ser comido como caça, finalmente saía do mundo dos vivos, da lembrança das pessoas.
Paletó não será comido. Talvez até desejasse isso, pois os Wari’ tinham horror ao enterramento, ao fato de que o corpo continuaria ali sob a terra por muito tempo. Mas sei que Paletó temia também que sem um corpo íntegro não pudesse ressuscitar e ir para o céu, onde estariam todos os outros que morreram já convertidos ao cristianismo, inclusive sua esposa.
Hoje eu queria muito que esse céu, para onde ele almejava ir, existisse, só para receber Paletó, bem-vestido como foi, e com seus sapatos de cadarço. Chegando, certamente ia ser admirado por todos – e quem sabe o próprio Deus, que nunca aparece para aqueles que estão no céu, até possa abrir uma exceção para vê-lo chegar.
Leia Mais