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Papagaio!
A tradução ornitológica da nacionalidade
Roberto Pompeu de Toledo | Edição 1, Outubro 2006
Se os Estados Unidos ostentam a águia como símbolo, a França o galo e o Chile o condor, o Brasil tem o papagaio como tradução ornitológica da nacionalidade. À diferença desses outros países, o papagaio não figura nos escudos, nos selos, nas medalhas, ou em outros sinais pelos quais o Estado anuncia sua presença. Talvez não o tenham julgado digno de tais honrarias. Ele não é forte como a águia, não tem a autoridade do galo nem voa alto como o condor. Exibe um ar matreiro e carrega uma reputação galhofeira que não o recomendam para o papel de representar oficialmente a pátria. Apesar disso, está presente na história no Brasil em manifestações que vão da carta de Pero Vaz de Caminha ao Zé Carioca. “Terra Papagalli” foi um nome que concorreu com o de “Brasil”, e até com certa vantagem, nos anos que se seguiram à Descoberta. Se tivesse vingado, nosso país seria conhecido hoje por um nome de bicho, como a República dos Camarões, e nós seríamos os “papagaienses”, ou “papagaianos”, o que talvez soasse de mau gosto, mas de modo algum seria despropositado. O papagaio brasileiro se fez presente, ao longo dos séculos, em autores que vão do filósofo inglês John Locke ao romancista francês Gustave Flaubert. Pousou no ombro dos piratas e virou protagonista de piadas. Em todos esses casos, de uma forma ou de outra, apresentou-se a serviço das cores nacionais, que por acaso (ou não seria por acaso?) são as mesmas de suas penas.
A carta de Caminha tem cinco menções a papagaios. Na mais expressiva delas, dois índios que tinham sido trazidos à nau capitânia, ao observar “um papagaio pardo, que o capitão traz consigo”, logo acenam para a terra, “como se os houvesse ali”. A informação é valiosa. Ficamos sabendo que “o capitão”, quer dizer, Cabral, tinha um “papagaio pardo”. Muito provavelmente se trata do papagaio cinza existente na África. Os navegadores portugueses mantinham trato com a África havia já mais de sessenta anos, ao chegar do Brasil. O fato de Cabral possuir um desses bichinhos indica que o hábito de conservá-los como animais de estimação, possivelmente contraído dos africanos, já começava a cativar os portugueses. Mas que eram os papagaios africanos, diante dos brasileiros? Os daqui apresentavam-se em copiosa variedade e exuberante colorido. A própria carta de Caminha faz menção a “papagaios vermelhos, muito grandes e formosos”, bem como aos “verdes, pequeninos”. Os primeiros eram provavelmente araras e os segundos periquitos — a palavra “papagaio” cobria toda sorte de psitacídeos. Não importa. Nossos papagaios têm mais cores, assim como nossos bosques têm mais flores e nossa vida mais amores.
Em duas outras menções da carta de Caminha papagaios são arrematados por membros da comitiva em troca de artigos oferecidos aos índios. Os portugueses não poderiam deixar de incluir na bagagem amostras dessas aves. A primeira nave de Cabral a chegar de volta a Portugal, a Anunciada, que aportou em Lisboa em junho de 1501, trazia a bordo nossos psitacídeos. Não há dúvida de que causaram forte impressão. Tanto assim que desde logo serviram de apelido às novas terras, como comprova a carta que o italiano Matteo Cretico, secretário do embaixador de Veneza em Lisboa, enviou ao dodge. Nela, ele dá conta da descoberta, “acima do Cabo da Boa Esperança”, de uma certa “terra delli papagá”. No famoso mapa-múndi de Alberto Cantino, de 1502, o primeiro em que aparece o Brasil, um trio de coloridos psitacídeos decora nosso território. Em mapas imediatamente posteriores, a nova descoberta portuguesa será identificada como “Terra Papagalli”.
Araras, periquitos, maracanãs, canindés, tuins — todos exibiam bela plumagem, e foram todos responsáveis pelo deslumbre do europeu. Mas o papagaio propriamente dito tinha ainda outra qualidade: juntava a beleza ao talento de, assim como o papagaio africano, imitar muito bem a voz humana. Suas qualidades não escaparão aos cronistas dos primeiros tempos. Fernão Cardim, depois de dar conta de que os papagaios oferecem “boa carne” para comer, deixa registrado, em seus Tratados da Terra e Gente do Brasil (escritos entre fins do século XVI e inícios do XVII), que “são de ordinário muito formosos e de muito várias cores e quasi todos fallão, se os ensinam”. Pero de Magalhães Gandavo, na História da Província de Santa Cruz (1576), informa que os papagaios “vêm a ser tam domésticos que põem ovos em casa, e acomodam-se mais à conversação da gente que outra qualquer ave por mais doméstica e mansa que seja”. O mesmo autor acrescenta que essas aves gozam de “tanta estima” entre os índios que uma delas só é negociada em troca de “dous, três escravos”. Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (1627), exercita a veia crítica ao escrever que a primeira coisa que os portugueses ensinam os papagaios a falar é “Papagaio real, para Portugal”. Tudo, afirma, irritado, o religioso, os colonizadores queriam arrancar da terra e carregar para a metrópole.
Não só os portugueses. Os franceses por esses anos andavam igualmente empenhados em surrupiar o possível das riquezas da nova terra — e nesse mister demonstravam igual gosto pelos papagaios. Prova disso é um precioso documento, relativo ao apresamento em 1538 do navio francês La Pélérine pelos portugueses, em um dos inúmeros entreveros entre os nacionais de um e outro país na costa brasileira. Os franceses, julgando- se esbulhados, exigiram indenização dos portugueses, e para instruir a demanda elaboraram um rol das mercadorias existentes no navio e respectivos valores. Além do pau-brasil, o produto mais disputado por estas bandas, La Pélérine transportava 600 papagaios. 600! Mais espantosas ainda eram as estimativas de valor de uma mercadoria e outra. Um quintal de pau-brasil (o quintal equivalia a 58 quilos e gramas) era avaliado em 800 ducados, enquanto um papagaio (um único!) em 600 ducados.
A febre pelos papagaios tomava conta da Europa. Os franceses mantinham em terra agentes que, ludibriando a vigilância dos portugueses, encarregavam-se de convencer os índios a cortar o pau-brasil e transportá-lo para bordo dos navios. Esses agentes, chamados de “intérpretes” porque tinham por primeira missão aprender a língua dos índios, também aproveitavam para capturar papagaios e — importante — ensiná-los a falar francês. Um papagaio que já chegasse papagaiando algo na língua de Montaigne valeria mais nos mercados de Honfleur ou Paris. Jean de Léry, integrante da comitiva de Villegagnon na aventura da França Antártica, conta em Viagem à Terra do Brasil (1578) que ganhou de um intérprete um papagaio que já havia três anos esse intérprete tinha consigo. “Pronunciava ele tão perfeitamente as palavras da língua selvagem e da francesa que não era possível distinguir a sua voz da de um homem”, escreve.
Léry conheceu um papagaio ainda mais impressionante, pertencente a uma índia. “Dir-se-ia que essa ave entendia o que lhe falava a dona”, afirma. Em troca de um pente ou um espelho, a índia fazia o papagaio saltar do poleiro, assobiar, falar e imitar o grito de guerra da tribo. “E quando a dona dizia para cantar, ele cantava, e também dançava quando ela lho ordenava.” Conclui o cronista de Villegagnon: “Se os antigos romanos foram bastante sábios para fazer suntuosos funerais ao corvo que, em seus palácios, os saudavam por seus próprios nomes, tirando mesmo a vida a quem o matava, como nos refere Plínio, imagine-se o que não teriam feito se tivessem possuído um papagaio tão perfeitamente ensinado!”
A Holanda foi outro país tomado pela moda. Erasmo de Roterdã, numa obra de 1518, constrói um diálogo entre duas mulheres em que uma pergunta à outra quanto tempo levou para ensinar seu papagaio a falar. Mas em nenhum momento nosso bichinho aparece com desempenho tão espetacular quanto numa história relatada pelo príncipe Maurício de Nassau, o governador da colônia holandesa implantada no Nordeste do Brasil no século XVII. Nassau contava que, tendo ouvido falar de um prodigioso papagaio, pediu para que o trouxessem em sua presença. Assim foi feito. Ao ser introduzido na sala onde o esperavam o príncipe e membros de seu séquito, o papagaio teria exclamado: “Quantos homens brancos por aqui!” Um dos presentes apontou para Nassau, e perguntou ao papagaio quem seria aquele homem, paramentado em trajes militares. O papagaio teria respondido: “Um general ou algo assim”.
A história é extraordinária. Maurício de Nassau acreditava que os papagaios, ou pelo menos aquele papagaio, eram capazes de raciocinar e dialogar como seres humanos. O embaixador inglês em Haia, William Temple, ouviu a história do próprio príncipe, e deixou-a registrada em suas memórias. A cena prossegue da seguinte forma, no relato de Temple: “Quando trouxeram o papagaio para perto do príncipe, este indagou: ‘De onde vens?’. A resposta foi: ‘Do Maranhão’. O príncipe: ‘A quem pertences?’. O papagaio: ‘A um português’. O príncipe: ‘Que fazes ali?’. O papagaio: ‘Vigio as galinhas.’ O príncipe riu: ‘Guardas as galinhas?’. O papagaio: ‘Sim, guardo, e muito bem’; e quatro ou cinco vezes fez o ‘xô, xô’ que se usa para chamá-las.”
Não se sabe o que mais admirar — se a credulidade do supremo agente da Companhia das Índias Ocidentais ou a naturalidade com que se entrega ao diálogo com o bicho. Mas esta é apenas a primeira parte deste caso. A segunda, e ainda mais impressionante, é que a história passou-se com armas e bagagens para um livro do filósofo inglês John Locke, um dos pais do moderno racionalismo. No livro 2, capítulo 27, de seu Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690), Locke transcreve o relato de William Temple. E não o faz para ilustrar a atração humana pelo impossível, ou para abrir um intervalo de humor em suas explanações. O ponto que defende é que não é apenas a racionalidade que define o ser humano, mas a forma de seu corpo. Assim, “se deparamos com um ser da nossa mesma forma e matéria, embora não seja mais dotado de razão do que um gato ou um papagaio, ainda assim o chamaríamos de homem”. Inversamente, “se ouvíssemos um gato ou um papagaio discursar, raciocinar ou filosofar, nem por isso deixaríamos de pensar neles como um gato ou papagaio”. Segue-se, em defesa do argumento, a história do papagaio de Nassau, que Locke endossa porque narrada por um príncipe “a quem se atribui grande honestidade e piedade”, e transcrita por um autor “de grande notoriedade”. Segundo Afonso Arinos de Melo Franco, autor de um livro, O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa, em que cita o episódio, este pode ser considerado “a primeira anedota de papagaio do anedotário popular brasileiro”.
Os micos e sagüis se constituíram no segundo animal brasileiro mais querido pelos estrangeiros, nos dois primeiro séculos da colonização. Também eles eram arrancados das matas pelos caçadores de novidades comercializáveis nos mercados europeus e também eles obtiveram sucesso. “Os nossos macaquinhos faziam (…) as delícias das casas ricas. As damas, sobretudo, eram loucas por eles”, escreve Arinos no livro citado. Os sagüis aparecem ao lado dos papagaios num clássico da literatura portuguesa, a Carta de Guia de Casados (1650), de dom Francisco Manuel de Melo. Com seu jeito entre moralista e irônico, a certa altura o autor passa a condenar o hábito das mulheres de manter bichinhos de estimação. Fala mal dos “cachorrinhos enfeitados”, investe contra os rouxinóis, que têm fama de provocar saudades (“De que servem saudades estando o marido em casa?”) e, quanto à dupla de bichinhos brasileiros, afirma: “Papagaios, saguins, são praças mortas, mui escusadas, e que as mais vezes induzem ligeirezas”.
O que o autor quer dizer com “praças mortas, mui escusadas”, é, segundo esclarece o lexógrafo Mauro Villar, co-autor do Dicionário Houaiss (num caso desses, só pedindo seu socorro) que são seres inúteis, como os soldados que só estão no quartel para comer e dormir (“praças mortas”), e além disso supérfluos (“escusados”). Mas o mais interessante é a afirmação de que papagaios e sagüis “induzem ligeirezas”. Por que será?
Os dois bichos, tão diferentes, apresentam um traço comum: são ambos humanos. Os papagaios, como lembra Julian Barnes, autor de que se falará mais adiante, são tão humanos que tanto seu nome em inglês, parrot, como em francês, perroquet, derivam de Pierre, assim como o espanhol perico deriva de Pedro. Vá lá, não é que sejam humanos. Mas possuem características que lembram os humanos. Por isso mesmo, são engraçados. É como se as pessoas se olhassem num espelho de parque de diversões, no caso dos micos e sagüis, e como se se ouvissem num eco brincalhão, no do papagaio. Se temos em conta que induzem ao riso e à zombaria, fica mais fácil entender que podem induzir a “ligeirezas”, como diz o autor seiscentista. Mas há ainda ligeirezas piores a que papagaios e micos podem remeter: um com palavras, outro com gestos, são ambos chegados a obscenidades.
Deixemos os micos e sagüis. Eles tinham a desvantagem de não se adaptar aos climas frios nem ser tão fáceis de manter em casa. Fiquemos com o papagaio, que é o nosso tema, e agarremo-nos em suas penas para dar um salto em direção ao perigoso terreno da identidade nacional. Se o papagaio lembrava o Brasil, na mente dos estrangeiros, e se é um animal identificado com um comportamento folgazão, ou malandro, podendo chegar ao obsceno, pode-se daí concluir que o Brasil era identificado com essas características de folgazão e malandro, talvez obsceno? A resposta inescapável é sim. Como lembrou Gaspar Barléu, o cronista do Brasil holandês, não existe pecado abaixo do Equador. O Brasil não só era, como é, identificado como terra folgazã/malandra/obscena, tanto na visão estrangeira como na dos próprios brasileiros. Está aí o carnaval a comprová-lo.
O papel que o papagaio desempenha nas anedotas é esse mesmo do folgazão/ malandro/obsceno. O papagaio das anedotas é um estereótipo do brasileiro, numa de suas vertentes mais difundidas. O papagaio é Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.
Não sejamos reducionistas, porém. O papagaio é isso, mas não só isso. Para ter melhor noção do bichinho, é aconselhável acrescentar um pouco de ornitologia a esta conversa. Nossa escala agora é num dos mais antigos edifícios da Cidade Universitária, em São Paulo, sede do Instituto de Biociências da USP, onde trabalham a doutora Elizabeth Höfling e seu orientando Renato Gaban-Lima. São curiosos, esses ornitólogos. A doutora Beth vive de estudar bichos, mas em toda a vida teve um só bicho de estimação, um pássaro preto que habitou a gaiola da casa em que morava com os pais entre os quatro e 18 anos de idade. Renato Gaban-Lima vive de observar e dissecar psitacídeos mas não gosta de se aproximar muito dos exemplares vivos: o contato o repugna, as bicadas o assustam. A doutora Beth é autora de numerosos trabalhos nos campos da ornitologia e da anatomia dos vertebrados. Gaban-Lima dedica-se à pesquisa da origem comum dos psitacídeos que conheceram evolução separada nos diversos continentes.
Quando se fala em papagaio é preciso saber antes de mais nada de que papagaio se está falando. Existem muitos tipos deles, na América do Sul, na África e em partes da Ásia e na Oceania. No Brasil, um dos gêneros mais conhecidos é o Amazona, sendo a espécie mais popular o Amazona aestiva, que ocorre nos ambientes não-florestais do centro da América do Sul (chaco, pantanal, cerrado e caatinga). O povo o chama, com razão, de “papagaio verdadeiro”. É ele, na grande maioria dos casos, que se tem como animal de estimação. É dele, preferencialmente, que estamos falando. Em sua plumagem predomina o verde, sendo o amarelo, ao redor dos olhos e na extremidade superior das asas, a segunda cor que mais aparece.
A pergunta suprema a fazer a um ornitologista é: por que os papagaios falam? Um começo de resposta é que a siringe — o órgão vocal das aves — no papagaio apresenta características especiais. É dotada de “uma estrutura complexa, com cartilagens, membranas e músculos”, explica Gaban-Lima. A galinha, por exemplo, não tem músculos exclusivos da siringe. A siringe dos papagaios possui dois pares de músculos. Mas isso, se fornece uma base de onde partir, não explica tudo. Os psitacídeos em geral possuem siringes complexas, e também outros pássaros. A do sabiá é complexa, ao contrário das do bem-te-vi e do joão-de-barro.
A mais nobre aparição de um papagaio na literatura ocorre na obra-prima “Um Coração Simples”, de Gustavo Flaubert, conto escrito em 1876 que gira em torno da vida sem eventos da dedicada empregada doméstica Felicité. Sem eventos? Para quem um dia é sempre igual ao outro, não tem amores nem conhece outras terras senão a pequena Pont l’Évêque, grande evento foi quando uma família vizinha mudou-se e deixou-lhe de presente o papagaio que tinha em casa. O papagaio passa a absorver-lhe a afeição. Um dia morre, e ela manda empalhá-lo. O papagaio reina agora imóvel em seu quarto, “esplêndido sobre um galho de árvore parafusado a um pedestal de acaju”. Na igreja, ao contemplar a pomba que simboliza o Espírito Santo, Felicité começa a achá-la parecida com o papagaio. Mais um pouco, e chega à conclusão de que o papagaio simboliza melhor o Espírito Santo do que a pomba, pois é dotado do dom da fala. No recôndido do quarto, Felicité adquire o costume de, ao se pôr a rezar, voltar os olhos para o papagaio. Enfim, em seu leito de morte, ao exalar o último suspiro, ela “acredita ver, no céu que se entreabre, um papagaio gigantesco, planando sobre sua cabeça”.
Não há intenção de comicidade, no autor, e sim de flagrar a simplicidade de alma em estado puro. E para isso escolhe um papagaio! O bicho aqui desempenha papel oposto ao do malandro falastrão, com inclinações fesceninas. Enquanto se ocupou do conto, Flaubert manteve sobre a escrivaninha um papagaio empalhado, que tomou emprestado do Museu de História Natural de Rouen. A intenção era deixar-se tomar pelo espírito da ave, segundo escreveu a uma amiga. Seria brasileiro o papagaio de Flaubert? O do conto viera “da América”. “Seu corpo era verde, a ponta das asas rosa, a fronte azul, e a garganta dourada”. Flaubert era um sacerdote da precisão, mas, com todo o respeito pelo mestre, a “garganta dourada” seria mais propriamente amarela, pois cor dourada falta, no repertório dos papagaios. Da mesma forma, a ponta rosa da asa seria mais exatamente vermelha. E pronto: com toda a probabilidade, estamos diante de um Amazona aestiva. Um dos nossos. Verde, amarelo e azul, como a bandeira nacional.
Quanto ao papagaio que Flaubert tinha sobre a mesa, foi objeto de cerrada investigação por parte do romancista e ensaísta inglês Julian Barnes, autor de um livro de 1984 chamado, justamente, O Papagaio de Flaubert. Barnes (ou o personagem que ele inventa para o livro, mas que faz uma investigação real) visita o Hôtel-Dieu (equivalente a uma Santa Casa no mundo luso-brasileiro) de Rouen, onde Flaubert nasceu, filho do cirurgião residente, e lá, num museu com reminiscências do escritor, depara com um papagaio empalhado descrito como o que Flaubert manteve consigo enquanto escrevia “Um Coração Simples”. Depois vai ao museu instalado no que resta da casa onde o escritor morou, em Croisset, nos arredores de Rouen, e lá depara… com outro papagaio, igualmente descrito como o de Flaubert. Qual seria o verdadeiro? Barnes chega à conclusão de que nem o Museu de História Natural, que emprestou o bicho ao escritor, sabe qual o verdadeiro — e que, ao ser solicitado, destacou um exemplar qualquer de sua coleção para presentear tanto o museu do Hôtel-Dieu quanto o de Croisset.
O do Hôtel-Dieu é possível visitar pela internet. Na página do Museu Flaubert de História da Medicina (Musée Flaubert d’Histoire de la Médecine), opção “algumas peças da coleção” (quelques pièces de collection), surge-nos um bichinho de plumagem verde, entremeada de amarelo no peito e ao redor do bico e dos olhos, cocoruto azul, um pouco de amarelo também no alto das asas. Ele se exibe trepado num poleiro que mais parece um telefone antigo. A legenda especifica que se trata de um Amazona. As cores são de um Amazona aestiva. Mais uma vitória. Também o papagaio tido como de Flaubert no Hôtel-Dieu de Rouen é nosso.
Pode parecer estranho, o papagaio no papel de ave sagrada, mas isso vai ao encontro de tradições antigas e medievais, do tempo em que os europeus tinham dele apenas vagas noções. Sérgio Buarque de Holanda dedica a esse tema um trecho do livro Visão do Paraíso. Antes da exportação em massa dos papagaios da América, raro era o europeu que tivesse visto a ave. Afirmava-se que era originária da “Índia”, um lugar meio mágico, que não se sabia bem onde ficava, ao qual se atribuíam prodígios de variada espécie. Nas Navegações de São Brandão, repositório medieval de origem irlandesa em que se misturam lendas célticas e cristãs, fala-se de uma ilha milagrosa, só habitada por papagaios. Eles descenderiam dos anjos que, com Lúcifer, foram expulsos do paraíso. Como porém só tinham acompanhado o mestre por costume, e não por se identificar com sua maldade, receberam um castigo menor, o de se transformarem em pássaros.
O mesmo livro de Sérgio Buarque dá conta de outras obras medievais em que os papagaios são tidos como aves do paraíso. Nosso psitacídeo aparece em versões piedosas mesmo na tradição brasileira. Alexandre de Gusmão (1695-1753), o diplomata brasileiro que assinou o Tratado de Madri, empurrando as fronteiras brasileiras para além do previsto no Tratado de Tordesilhas, conta num livro dedicado à educação das crianças a história de um papagaio que sabia rezar o padre-nosso e a ave-maria. Uma vez, perseguido por um gavião, conseguiu safar-se graças à fé.
O papagaio vai retomar sua feição laica e extrovertida, quando não malandra e folgazã, na figura desse ícone das relações Brasil-Estados Unidos que é o Zé Carioca — ou Joe Carioca, na versão em inglês. O Zé Carioca fez sua estréia no filme chamado Alô Amigos no Brasil, Saludos Amigos no resto do mundo, uma obra de Walt Disney que teve sua première mundial apropriadamente realizada no Rio de Janeiro, no dia 24 de agosto de 1942, seis meses antes da apresentação nos EUA. O filme incluía-se no esforço de guerra americano, para o qual Hollywood fora convocada. Disney escolheu fazer sua parte cultivando a amizade da América Latina, cujos países deveriam estar unidos no apoio aos EUA. Alô Amigos apresenta episódios que se passam no Chile, na Bolívia e na Argentina, antes de chegar ao Brasil.
O grande momento do episódio brasileiro é quando o americano Donald, o pato, em visita a nosso país, e o brasileiro Zé Carioca, se vêem frente a frente pela primeira vez. Zé Carioca oferece um cartão de visitas ao estrangeiro — “José Carioca, Rio de Janeiro, Brasil” — e pede que o outro faça o mesmo. Donald saca então o seu — “Donald Duck, Holywood, USA — e ao lê-lo, e se dar conta de que está em frente ao querido personagem do cinema, Zé Carioca tem um ataque de euforia. “O Pato Donald! O Pato Donald!”, diz repetidas vezes, enquanto pula de alegria. “O Pato Donald!” Por fim, abre os braços e aproxima-se do outro. “Ora venha de lá um abraço”, diz, em característica linguagem anos 40… “um abraço bem carioca, bem amigo, um daqueles de quebrar as costelas” — e abraça o americano com efusão. O Zé Carioca desta cena não é bem o malandro — é o homem cordial. Sob sua tutela, Donald rebolará a cauda à exaustão, ao som de Aquarela do Brasil.
No filme seguinte, Você Já Foi à Bahia?, de 1944, (The Three Caballeros, no original), um terceiro personagem, o galo mexicano Panchito, se juntará a Donald e Zé Carioca, e os três viverão aventuras em que a tônica será o estado de delírio a que se entrega o pato na presença das belas brasileiras e das belas mexicanas. Donald fica incontrolável. Extasia-se, arrebata- se e perde o juízo primeiro diante de Aurora Miranda, a se requebrar enquanto canta Os Quindins de Iaiá, e depois diante das moças de maiô na praia de Acapulco. Os estúdios Disney, tão família, desta vez nos oferecem um pato priápico. Donald encarna o turista sexual, com a corda toda na América Latina. Só pode ter sido a má influência do papagaio, bicho que, como sabemos, além de malandro e folgazão, é vulnerável aos impulsos fesceninos.
O papagaio é o Brasil. É folgado e fescenino como os brasileiros. É um bicho que, como os micos e sagüis, distingue-se pela capacidade de imitação. Não é agradável admitir isso, mas os brasileiros somos também imitadores. Ocorre que o papagaio é também inteligente, dotado de atenção e de capacidade de aprender. Ponto para nós. É malandro. O Zé Carioca das revistinhas produzidas no Brasil é “o terror dos credores”, e não é à toa que a palavra “papagaio”, entre suas muitas acepções, tenha a de nota promissória de valor duvidoso. Ponto contra. É um bicho alegre, de aparência carnavalesca, mas também pode ficar triste ao ponto da depressão. É considerado farrista, mas é fiel ao parceiro ou à parceira. Tem um lado místico, com o qual se aproxima do Brasil devoto dos padres Cíceros e dos Antônios Conselheiros. Com esta síntese, voltamos ao terreno da identidade nacional, para concluir que o papagaio encarna à perfeição, sim, a identidade do brasileiro, mas não uma identidade só. Ele encarna as variadas, as múltiplas identidades do Brasil.
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