Para o que ela não serve
Para o que, afinal, ela não serve?
Fabrício Corsaletti | Edição 69, Junho 2012
SOBRE O CAVALO ÁRABE
1
a criação seletiva do árabe
vem sendo feita desde mil anos antes
de Maomé
o implacável rigor dos beduínos
quanto à pureza da linhagem
somado às adversidades
do clima desértico
foram os dois fatores que engendraram
o mais gracioso & o mais peculiar
cavalo do mundo
o alimento era escasso no deserto
a pastagem crescia só no inverno
e no início da primavera
no restante do ano
os cavalos se alimentavam
de leite de camelo
tâmaras secas
favas
e carne seca de camelo
só os mais fortes sobreviviam
2
Maomé estava tão convencido
da importância desses cavalos rústicos
que os comprou das tribos nômades
e pagou com escravos humanos
depois escreveu no Alcorão
uma irresistível prescrição aos homens
que alimentam bem seus cavalos
“quanto mais grãos de cevada
ofereceres a teu cavalo
mais pecados ser-te-ão perdoados”
o mandamento religioso reforçou
a paixão dos beduínos por esses animais
levando-os a uma relação homem–cavalo
inigualável nos dias de hoje –
isso durou treze séculos
o homem não só compartilhava
comida com seu cavalo
como dormia com ele
o que também estava de acordo
com o ensinamento de Maomé
“o Demônio jamais entrará numa tenda
em que é mantido um cavalo puro”
POEMA DOS 32 ANOS
em 2005
quando morei em Buenos Aires
fiquei amigo
da sobrinha de Mário Faustino
eu conhecia alguma coisa
do autor de O Homem e Sua Hora
meia dúzia de sonetos
transcritos na apostila do colégio
mas Fátima sua sobrinha era doce
como as medialunas que devorávamos
num café da calle Suipacha
nostálgicos e exultantes
ela com seu noivo portenho
eu com minha liberdade
Fátima voltou para Teresina
porque não aguentou de saudade dos filhos
eu voltei para São Paulo
porque estava louco –
depois me apaixonei pela Vaqueira Audaz
sinto que nunca mais serei feliz
Mário Faustino morreu aos 32 anos
PERGUNTA ERRADA
a questão não é
para que serve a poesia
mas sim para o que ela não serve
algumas hipóteses –
ao contrário do que se pensa
a poesia não ajuda na caça às mulheres –
no máximo elas se tornarão suas amigas –
nem é indicada para aumento de pênis
a poesia é ruim
no quesito ressurreição dos mortos
além de ser incapaz de evitar o luto
para fritar torresmos
ainda é melhor banha de porco
do que poesia
e quem escreve para ser eterno
mais cedo ou mais tarde se desapontará
até mesmo Shakespeare está com os dias contados
– para todo o resto a poesia serve
e serve muito bem
LÁ
um dia vou para a Eslovênia
passar uns dias sem problemas
vivo uma fase desumana
acho que vou pra Liubliana
quero esquecer o meu trabalho –
me sinto um tipo de espantalho –
quero beber slivovica
comer prekmurska gibanica
caminharei ouvindo vozes
que não dirão coisas atrozes
lerei poesia numa praça
que ela diria que é uma graça
verei passar muitos casais
terei inveja dos meus pais
conhecerei uma menina
capricharei na pantomima
depois sozinho na taverna
anotarei “que lindas pernas”
visitarei alguns castelos
e torcerei meu tornozelo
irei parar num hospital
hei de sonhar com um milharal
e novamente andando ao léu
respirarei o azul do céu
serei tomado pela angústia
de estar no mundo sem astúcia
desejarei morrer agora
ou ser feliz por uma hora
me perderei num bairro antigo
onde haja fogos de artifício
chapado voltarei pro hotel
cheirando a óleo de pastel
então de bruços na calçada
vomitarei de madrugada
–
no dia seguinte – que perfeito –
ninguém que eu ame está por perto
–
um dia vou para a Eslovênia
atravessar pontes pequenas
a vida é soberana lá?
um dia vou pra Liubliana