ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Parestesia não, formigamento
Trinta e três regras que mudam a redação de bulas no Brasil
Clara Becker | Edição 70, Julho 2012
Sair do consultório médico com uma receita do antidepressivo Zoloft na mão nunca é uma notícia exatamente alvissareira. Sair da farmácia com o medicamento comprado e se aventurar pela leitura da bula representa um risco adicional. Entre os efeitos colaterais associados à ingestão do produto estão listadas a parestesia, alopecia, ginecomastia, paroníria e midríase. Com males de sonoridade tão cavernosa e significado tão impenetrável, cabe a dúvida se não seria melhor ficar com a depressão, velha conhecida.
Até meados de 2013, contudo, o paciente será informado, através de uma bula menos enigmática, que os sinistros males eventualmente associados ao Zoloft nada mais são que alteração da sensibilidade e formigamento, perda de cabelo, aumento das mamas no homem, perturbação do sono e dilatação das pupilas.
Embora o primeiro decreto que regulamenta a redação de bulas no Brasil date de 1931, elas conservaram seu variável aspecto de micro-hieroglifos até que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, determinasse, em 2003, a reformulação das bulas. Frases do tipo “dados in vitro ae in vivo demonstram que ebastina exerce potente antagonismo dos receptores H1, de longa duração e altamente seletivo, não apresentando efeitos sobre o SNC ou efeitos anticolinérgicos” eram a norma e só faziam sentido para os profissionais da área médica – se tanto.
A mudança decisiva, contudo, só ocorreu por pressão dos órgãos de defesa do consumidor e do Ministério Público. Com o Projeto Bulas, de 2004, voltado para a tradução do jargão farmacêutico para a língua portuguesa – aquela falada em todo o Brasil – e a regulamentação do uso de medicamentos no país, cinco anos depois, o Brasil começou a sair das trevas.
O primeiro lote de 202 bulas para leigos foi lançado no mercado no início de 2011. Uma segunda leva, de 135, chegou às farmácias em abril passado e outras 264 acabam de sair do forno. Mas ainda restam perto de 6 mil no Núcleo de Bulas da Anvisa aguardando para serem decifradas até meados do próximo ano.
A empreitada é de porte e conta com profissionais como a carioca Celina Frade, até então mais ocupada em dar cursos sobre a redação de contratos de seguro e de petróleo. Doutora em linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Celina foi convocada pela Anvisa para coordenar um grupo de trabalho que analisa o português mais adequado para bulas.
Na mesa da sala do seu apartamento na Lagoa, Zona Sul do Rio, a linguista mostra exemplares de bulas de vários países que fizeram parte do material didático usado para a execução da tarefa. A preferida de Celina, pela forma, pelo texto e pela comunicação direta com o consumidor leigo, é a de um xarope para tosse fabricado em Portugal.
Após analisar 600 bulas brasileiras ao longo de três meses, Celina concluiu que o jargão médico-farmacêutico dos redatores era deliberado. “Quem escreve a bula não quer que ela seja entendida por todos”, garante. “Mesmo tendo substituído os termos técnicos por populares, percebi que o texto continuava incompreensível.” Segundo a linguista, o medo de processos por parte do fabricante explica o excesso de informação e de alertas nas bulas. “Havia medicamentos de uso infantil que continham a advertência: ‘Não dirigir ou operar máquinas’”, citou, a título de exemplo.
Outro problema estava encravado na própria estrutura dos textos: pontuação deficiente, instruções múltiplas numa mesma frase longa e truncada, além de um inexplicável apego à voz passiva. “As vírgulas eram usadas de forma arbitrária, muitas vezes induzindo ao erro”, acrescenta. Sem falar que o conjunto da obra vinha impresso em letras de menos de 1 milímetro.
O grupo comandado por Celina sugeriu à Anvisa mudar tudo. Elaborou, também, “A redação de bulas para o paciente: um guia com os princípios de redação clara, concisa e acessível para o leitor de bulas”, disponível em versão adaptada no site da Anvisa. Diferentemente do que acontece com outros gêneros, na bula não há espaço para inovações de estilo. “O uso de fórmulas repetitivas é bem-vindo, dá força institucional ao texto”, explica Celina. “A bula não pode abrir possibilidades de interpretações ao seu leitor.”
Se obedecidas, as 33 regras do guia são de serventia genérica – quem lida com qualquer tipo de escrita pode se beneficiar de seus ensinamentos. A regra 12, por exemplo, manda abolir a linguagem técnica, fonte de possível constrangimento para quem não compreendê-la, e recomenda: “Não irrite o leitor.” A regra 14 prega um tom cordial, educado e, sobretudo, conciso: “Não faça o leitor perder tempo.”
Nas bulas já impressas segundo a nova regulamentação, no lugar de “posologia”, “reações adversas” e “contraindicações”, entraram as perguntas: “Como devo usar esse medicamento?”, “Quais os males que este medicamento pode causar?” e “Quando não devo usar esse medicamento?” Para a linguista, o texto com perguntas e respostas é mais palatável para o consumidor. “Faz parecer que a bula está falando do seu caso específico, fica mais íntimo.” Quem encarar a leitura também irá se deparar com a mudança da forma: o tamanho de letra, Times New Roman, dobrou e o espaçamento entre cada linha aumentou. Ou seja, no lugar de lupa, um bom par de óculos resolve.
Com seu manual, Celina Frade não pretende alçar o gênero bula ao status de literatura. “Ler com prazer seria pedir demais. Espero apenas que as pessoas leiam bulas.” De preferência, até o fim.