CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2024
Parlamento das garças
A amizade do jardineiro do Congresso com duas aves que pegaram medo do verde e amarelo
Marcos Amorozo | Edição 210, Março 2024
No gramado do Congresso Nacional, duas garças brancas seguem o homem de calça jeans, camisa azul, botas pretas sujas de terra e chapéu de palha. Elas aguardam, ansiosas, pelo momento em que ele fará uma pausa em seus afazeres para lhes providenciar uma refeição. Com uma vara de pesca ou uma armadilha feita de garrafa pet, o homem apanha algumas das piabas que nadam no espelho d’água, e logo os peixinhos estão no longo bico das aves. A cena se repete nas manhãs de segunda a sexta-feira, mesmo nas folgas e recessos parlamentares.
O jardineiro Antenor Pereira, de 67 anos, já está no batente quando as garças pousam perto dele, por volta das 9h30. Ele costuma chegar cedo para adiantar o serviço e assim dar total atenção às amigas de penas quando elas aparecem. “Às vezes não consigo, e elas precisam esperar um pouco para comer”, diz, com um sorriso. “Bom que o café da manhã acaba servindo de almoço e janta para elas.”
Ele as vê chegando de longe. Uma delas fez seu ninho próximo à Catedral Metropolitana de Brasília; a outra, atrás do Palácio do Itamaraty. O assobio é o sinal do jardineiro para que elas aterrissem a seu lado. Quando volta ao trabalho depois da distribuição dos peixes, o jardineiro segue de olho. Se as garças continuam a acompanhá-lo de perto por muito tempo, ele faz uma pausa na sombra, a fim de protegê-las do Sol forte da capital federal. Quando vai embora, elas saem voando. Nem sempre foi assim: “Muitas vezes eu precisei voltar com as garças para o gramado, pois elas queriam entrar no carro comigo. Agora, já sabem a hora que eu saio pra almoçar e a hora que eu vou embora.”
A amizade com as garças começou mais ou menos dez anos atrás, quando Pereira assumiu os cuidados do jardim na área externa do Congresso. Durante o trabalho, ele via as garças bebendo e comendo no espelho d’água. Certo dia, o nível da água estava muito baixo, o que dificultava a pescaria das aves. Foi então que o jardineiro resolveu dar os peixes em vez de ensinar a pescar. “Cortei uma garrafa pet, coloquei umas bolachas e entreguei a elas os peixes que ficaram presos”, conta.
No começo, as duas aves mantinham uma distância cautelosa em relação ao homem, mas logo perderam o receio. Acabaram mimadas. “Alguns dias, vejo que ficam esperando eu pescar para elas, senão não comem. Acostumaram assim.”
A cumplicidade da dupla de garças com o jardineiro é tamanha que elas o acompanham aonde quer que ele vá – na pausa do almoço, na conversa com colegas de trabalho e até na fila da lotérica. “Vira e mexe eu preciso pagar umas contas. Elas vão andando comigo e ficam bonitinhas esperando na fila ao meu lado. Já levo até uma garrafa porque sei que em algum momento elas vão abrir o bico pedindo água.” A equipe de televisão da Câmara dos Deputados registrou um desses passeios à lotérica. O vídeo pode ser encontrado no YouTube.
Há uma boa diferença de altura entre as amigas do jardineiro, pois elas pertencem a espécies distintas: a maior é uma garça-branca-grande (Ardea alba); a menor, uma garça-branca-pequena (Egretta thula). As garças são animais muito inteligentes e com visão e audição aguçadas. Podem viver mais de vinte anos e são capazes de identificar humanos pela roupa que usam – uma habilidade demonstrada pela dupla do Congresso. Depois de seguidas manifestações políticas na Esplanada dos Ministérios e especialmente depois do 8 de janeiro, elas pegaram medo de certas cores. Pereira relata um episódio recente: “Uma mulher vestida com a bandeira verde e amarela queria tirar uma foto com as bichinhas. Ela pegou a armadilha que eu criei cheia de piabinha e, mesmo assim, as garças não se aproximaram.” Elas só chegaram perto e posaram para a foto quando a mulher colocou a bandeira de lado.
Graças à excelente visão, as garças já encontraram o jardineiro em meio a milhares de pessoas no Parque da Cidade, que fica a 5 km do Congresso. “Fui levar meus netos para passear lá um dia e, de repente, eu ouço um deles dizer: ‘Vô, olha os passarinhos andando atrás da gente!’” Pereira caiu na risada quando constatou que estava sendo seguido pelas garças em seu dia de folga. Mas teve que deixar o parque mais cedo do que planejara, por receio de que os curiosos reunidos à sua volta acabassem ferindo suas amigas.
Nascido em Sete Lagoas, Minas Gerais, Pereira – ou seu Antenor, como é conhecido – foi criado “no meio do mato”, bem próximo da natureza. Ele conta que sempre teve uma boa relação com os animais. Abandonou a roça aos 17 anos, quando se mudou para Brasília a fim de fazer o alistamento militar. Ao deixar o quartel, passou a trabalhar em jardinagem por uma combinação de oportunidade e dom. Começou fazendo alguns bicos em mansões e embaixadas. Depois, foi indicado por um amigo para uma vaga fixa no Congresso Nacional.
Até pouco tempo atrás, ele criava pássaros na casa onde mora com a família no Paranoá, região administrativa a 20 km do Centro de Brasília. Todos tinham anilhas e registros em dia. Mas a maturidade e a convivência com as garças livres fizeram com que entregasse as aves ao Ibama. Pediu até o cancelamento da licença de criador. “Antes, eu já achava que era um pouco errado ficar com os pássaros trancados. Depois de conhecer as garças, quis largar tudo”, diz.
Nos fins de semana, quando tem um tempinho para descansar em casa, sente saudade das amigas aves. “É aquele negócio, rapaz, a gente se apega, né?”, confessa. Ele não gosta nem de tirar férias para não ficar longe do trabalho e, principalmente, das garças.
Até o momento, Pereira não pensa em se aposentar. “Enquanto eu tiver saúde, vou cuidar delas. Se eu passar dois dias dentro de casa, já sinto doer o corpo. Não posso parar”, diz. E mesmo que um dia se aposente, garante que vai ficar de olho nas garças: “Ninguém vai cuidar delas do jeito que eu cuido, não.”