Por mais de duas horas, o turista passeia pelos lugares que guardam a marca das celebridades de má fama na cidade FOTO: DIVULGAÇÃO_CORRUPTOUR_FOTO DE ZDENKA HANÁKOVÁ
Pássaros espertalhões
Um roteiro da corrupção em Praga cheio de metáforas ornitológicas
Tamine Maklouf | Edição 84, Setembro 2013
O guia turístico Justin Svoboda veste um uniforme da Swat, o esquadrão especial da polícia norte-americana, e leva no pescoço um cachecol com as cores de todos os partidos da República Tcheca. Postado em frente a uma mansão da tranquila rua Lopatecka, nos arredores da capital, ele filosofa: “Praga é um belíssimo lugar para observar o comportamento dos pássaros da corrupção.” Depois, didático, define o comportamento da espécie: “São aves peculiares que tentam tirar o máximo das outras aves.”
A mansão em estilo moderno que deixa Svoboda tão inspirado é de propriedade do empresário e lobista Roman Janoušek, uma das personalidades mais notáveis deste país do Leste Europeu. Apelidado de “prefeito fantasma” e de Voldemort, o vilão da saga de Harry Potter, Janoušek éamicíssimo de Pavel Bém, que foi o prefeito (oficial) de Praga entre 2002 e 2010. Acusado de subornar funcionários, fraudar concorrências e lucrar com a venda de terras públicas, o empresário acabou preso no ano passado – pelo atropelamento de uma mulher. Ele estava embriagado e pisou mais fundo que o recomendável no acelerador do seu Porsche Cayenne.
A biografia de Janoušek e outros komptr (padrinhos), como os tchecos se referem a corruptos e mafiosos, é a matéria-prima da CorruptTour, a agência de turismo na qual Svoboda trabalha. Seu roteiro mais requisitado, que leva o nome em inglês de Crony Safari, ou Safári dos Compadres, é uma excursão aos escândalos locais. Durante quase duas horas e meia, os cartões-postais não são a praça São Venceslau, a Catedral de São Vito ou o Castelo de Praga, mas lugares que guardam a marca das celebridades de má fama.
Os tchecos são assombrados pela sensação de que uma máfia domina os negócios e a administração. Como lembrou o New York Times, um ditado dos tempos do comunismo nunca saiu de moda: “Aquele que não rouba do Estado rouba da própria família.” As cores no cachecol de Svoboda servem para indicar que o fenômeno, nesta era democrática, é pluripartidário. Seu mais recente protagonista foi uma ave de alta plumagem, o ex-primeiro-ministro Petr Nečas, do conservador Partido Democrático Cívico.
Há três anos, Nečas assumiu o comando do Executivo com uma plataforma de combate à corrupção. Em junho, foi obrigado a renunciar, acusado de corrupção e abuso de poder. Uma operação da polícia e da promotoria prendeu sua chefe de gabinete e amante, a loura e curvilínea Jana Nagyová. Ela foi acusada de corromper parlamentares e de ter dado ordens ilegais de espionagem ao serviço de inteligência militar. Entre os bisbilhotados estava a mulher do premiê – e o casal acabou se divorciando.
Naquela quarta-feira de agosto, um ônibus da CorruptTour levava vinte interessados no safári, a maioria turistas alemães. “Nosso hábitat da corrupção é muito bem conservado. Por favor, nos ajude a protegê-lo”, anunciou Petr Sourek, dono da agência e mentor da empreitada que usa metáforas ornitológicas tchecas para descrever maracutaias universais. Como Svoboda, ele também veste um colete à prova de balas. Os dois dividem o microfone na descrição das atrações.
O ônibus passa por Blanka, a “mãe de todos os túneis”. A obra resultará em um dos maiores túneis urbanos da Europa, com 6,4 quilômetros de extensão. Antes calculados em 22 bilhões de coroas, os gastos já ultrapassaram a marca de 37 bilhões – mais de 4,6 bilhões de reais. Sourek pede a atenção dos presentes ao concreto onde foi enterrado dinheiro público, inclusive da União Europeia. O caso levou à prisão o deputado e ex-governador da Boêmia Central David Rath.
Petr Sourek, de 38 anos, trouxe do teatro a faceta performática da trupe da CorruptTour. O passeio custa 30 euros e proporciona uma visão incomum da cidade. Uma das paradas é uma rua residencial com um conjunto de apartamentos populares. Um deles é a residência declarada do empresário Ivo Rittig, chamada de “ninho paralelo” porque ele passa a maior parte do ano em Mônaco. Entre os negócios suspeitos de Rittig está a exploração do transporte público de Praga.
Em outra parte da cidade, o veículo para em frente ao verdadeiro domicílio de Rittig, bem mais vistoso. Os turistas são orientados a não descer do ônibus para não perturbar o pássaro em seu hábitat natural. “É capaz de ele ficar agressivo”, alerta Sourek. Na tranquila rua Rohácova, fica o lar de Martin Vnouček, um laranja que tem mais de setenta empresas em seu nome. O guia Svoboda conta que o pássaro Vnouček é hábil na arte de colecionar “sementes”.
Na última parada, o ônibus estaciona à beira de uma floresta. Os turistas são instruídos a seguir uma trilha bucólica. Depois de quinze minutos, chegam ao grand finale do safári, o mausoléu que Martin Roman mandou construir para si e sua família descansarem quando deixarem este mundo. Ex-diretor da estatal de energia CEZ, Roman foi acusado de financiar partidos políticos. De volta ao ônibus, o turista pode manipular um gerador de ruído, usado para driblar grampos telefônicos, além de comprar bottons e camisetas da CorruptTour.
Por coincidência, Petr Sourek havia convidado para o passeio os intérpretes Michaela Cerna e Milan Pichy, que falam português. Sourek explicou que, desde que a fama de sua agência chegou à imprensa internacional, ele tem recebido e-mails de brasileiros que pedem um roteiro adaptado a seu país. “Dizem que no Brasil vamos encontrar locais de interesse por toda parte.”
Por enquanto, os dois intérpretes receberam a missão de elaborar uma versão do roteiro de Praga para turistas brasileiros. A expectativa é que consigam adaptar as explicações baseadas na passarada tcheca para o público tupiniquim. Não é nada fácil para um visitante de primeira viagem entender a gama de trocadilhos com nomes de aves. O controvertido político Tomáš Hrdlička, por exemplo, tem um sobrenome exótico que significa “rolinha”. Já o lobista Janoušek costumava chamar o ex-prefeito de Praga pelo codinome fofo de Kolibřík, beija-flor. Milan Pichy conhece a expressão “mamar nas tetas” e talvez a inclua nas anedotas do Crony Safari. Já Michaela pensa em piadas com animais da fauna brasileira, como cutia e preguiça.
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