CRÉDITOS: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Patrimônio espiritual
A arte santeira do Piauí aguarda seu tombamento
Vitória Pilar | Edição 207, Dezembro 2023
José Alves de Oliveira não tinha muitas expectativas quando deixou Valença, no sertão do Piauí, rumo a Teresina, na década de 1960. Instalou-se com esposa e filhos no bairro Vermelha, na Zona Sul da capital, e arranjou emprego como vigia de uma praça. Também esculpia ex-votos – braços e pernas em madeira que os fiéis depositavam nas igrejas, representando membros doentes curados por “graças atendidas”. Essas peças impressionaram o pároco da Capela Nossa Senhora de Lourdes, que então passava por uma ampliação para ganhar o estatuto de igreja. Ele resolveu encomendar ao vigia uma estátua de Jesus Cristo para o novo altar da igreja. Artesão inexperiente, Oliveira não se julgava à altura da tarefa, mas atendeu à insistência do padre.
A escultura ficou tão bonita que logo o padre fez novas encomendas: três anjos, Santa Bernadette Soubirous e Nossa Senhora de Lourdes. Até o altar foi talhado pelo novo artista. Dom Avelar, então arcebispo metropolitano de Teresina, deu a Oliveira o epíteto de “Aleijadinho do Piauí”. Mas ele ficou conhecido por outro nome: Mestre Dezinho, o pioneiro da arte santeira no estado, que morreu, em 2000, aos 83 anos, cerca de quarenta deles dedicados à escultura.
Os técnicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) elaboraram um dossiê, ainda inédito, sobre a obra do ex-vigia que se descobriu escultor. Com essa documentação, espera-se que o registro e o tombamento da Igreja de Nossa Senhora de Lourdes e de seu acervo aconteçam no primeiro semestre de 2024. Também deverá ser tombado um patrimônio imaterial: a técnica pioneira que Mestre Dezinho ensinava em seu ateliê.
Nenhum dos seis filhos de Dezinho interessou-se em continuar a arte do pai. Quem observava, curioso, a atividade do escultor era o sobrinho Joaquim José Alves, que por volta dos 13 anos começou seu aprendizado: passava as tardes lixando os santos de madeira feitos pelo tio. Tornou-se assim um dos primeiros discípulos do patrono da arte santeira, na qual se consagraria como Mestre Kim.
Hoje com 57 anos, Mestre Kim acompanhou o auge da arte santeira no Piauí, entre os anos 1980 e 1990, quando políticos locais e agitadores culturais de todo o país exaltavam Mestre Dezinho e seus êmulos. A arte santeira ganhou espaço na imprensa e se espalhou por outros estados do Nordeste. Apesar da fama do escultor, um decorador que apareceu na Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, achou por bem colocar coroas de ferro na cabeça dos anjos – e ainda tirou as asas de um anjo de bigode. Depois de mover um processo judicial contra a adulteração, Dezinho conseguiu remover as hediondas coroas. Só o anjo de bigode ficou sem asas: elas hoje estão no Memorial Mestre Dezinho, espaço criado por seus discípulos para preservar as obras e a história do patrono.
No ano seguinte à morte de Dezinho, um grupo de artesãos de Teresina foi convidado a expor suas esculturas e mostrar suas técnicas em Miami. O problema é que quase nenhum dos convidados tinha passaporte – muitos sequer tinham RG ou certidão de nascimento. Quando documentos e vistos finalmente foram providenciados, a Al Qaeda melou a viagem: a entrada de estrangeiros nos Estados Unidos ficou mais difícil depois do ataque às torres gêmeas, no Onze de Setembro. “Estávamos de malas prontas, com dólares nos bolsos, esperando a resposta de lá”, lembra Mestre Kim. O contratempo acabou atrasando a comunicação com a instituição americana. Sem tempo hábil para chegar aos Estados Unidos, o grupo ficou de fora da mostra.
Ainda em 2001, Kim levou suas ferramentas e esculturas a Córdoba, na Argentina, para participar de uma exposição internacional de artesanato. Ele perdeu a conta do número de peças que já vendeu para colecionadores de outros estados e países.
As obras pioneiras de Dezinho eram inconfundíveis: anjos e santos de queixo largo e olhos arregalados. Já as de seus seguidores conservaram essas características, mas cada artista foi desenvolvendo seu estilo.
Para se tornar um mestre, é preciso habilidade e anos de experiência. O bom santeiro deve fazer sua própria ferramenta, conhecida como “toco de faca” – uma lâmina configurada para talhar a madeira com firmeza e delicadeza. Não se enverniza a escultura: ela é lustrada com cera e pintada com uma tinta artesanal feita à base de álcool, para não queimar a madeira. Só se admite um material: o cedro vindo do Pará ou do Maranhão. Mestre Kim diz que as árvores do Piauí não dão a madeira lisa necessária para os santos: “Tem nó, um tipo de estria que desenha a madeira por dentro.” E não se faz produção em série: se em uma peça a pombinha de São Francisco aparece no ombro, na próxima ela pousará no braço, ou sobre a cabeça. A roupa de São José ganha várias texturas, e Santo Expedito às vezes usa na cabeça o capacete que tradicionalmente é representado a seus pés.
Mestre Expedito, que colaborou com o dossiê do Iphan e moveu um abaixo-assinado pelo tombamento da arte santeira, morreu aos 90 anos em dezembro de 2022. Os discípulos de Dezinho ainda vivos, como Mestre Kim, já se aproximam dos 60. Eles se preocupam com a continuidade do ofício e esperam que o reconhecimento da arte santeira como patrimônio nacional desperte o interesse de novas gerações de artesãos.
Kim lembra com certa amargura de um jovem aluno que o acompanhou a uma exposição no Rio de Janeiro e decidiu ficar por lá – hoje, trabalha como porteiro. Mas o mestre não desiste: está reformando seu ateliê para receber as turmas de aprendizes e buscando bolsas e editais de cultura para financiar a escola. Quando fala desses projetos, ele sorri, recordando o artista que lhe ensinou a dar forma e beleza ao cedro: “Sinto que Dezinho ficaria orgulhoso.”