ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2016
Paz com carabina
Paixão por bichos e tiros
Paula Sperb | Edição 121, Outubro 2016
Cibele Baginski, uma jovem de 27 anos com jeito doce, segurava a carabina numa das mãos enquanto deixava a coronha de madeira repousar sobre seu tênis All Star preto. Fazia isso para que, erguendo o pé, conseguisse avaliar melhor o peso da arma. “Que amor!”, concluiu. A carabina estava aprovada. Naquela manhã, em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, havia cheiro de pólvora no ar. Podiam-se ouvir, a cada minuto e a poucos metros de onde a moça se encontrava, os estampidos sucessivos de dezenas de tiros.
Mignon, cabelos loiros e piercing no lábio, Baginski ficou conhecida quando fotos dela passaram a ilustrar reportagens sobre o relançamento da Arena, a Aliança Renovadora Nacional, legenda que apoiou o regime militar entre 1966 e 1979. A ideia de recriar o partido da ditadura foi anunciada em 2012. Então com 23 anos e os cabelos tingidos de rosa, a estudante havia sido escolhida por seus correligionários para presidir a nova sigla.
A iniciativa, hoje vista pela moça como um erro, partiu de alguns alunos da UCs, a Universidade de Caxias do Sul, que defendiam o livre mercado e queriam acabar com a “vergonha de ser de direita” no Brasil. Baginski cursava direito e engrossava o grupo. Num gesto que não deixava de ser uma provocação, alguém sugeriu o nome ligado ao regime militar. A ideia colou.
Coube à jovem se certificar de que podiam mesmo ressuscitar a Arena. Ela achou por bem ligar para o gabinete de Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal. “Sem problemas, podem utilizar a sigla. O funeral é de vocês”, teria respondido um assessor do ministro. “O cara sabia que ia pegar mal”, disse a moça em setembro. O nome ajudou o novo partido a crescer, atraindo gente talvez ainda mais à direita do que o núcleo original de estudantes gaúchos. Entre os recém-filiados, figurava, claro, um grande número de simpatizantes da ditadura.
Baginski já integrou o Clube Caxiense de Caça e Tiro, na zona rural da cidade. Hoje, não é mais sócia dele, embora o visite com certa regularidade. Foi lá que, numa manhã ensolarada de domingo, em meados de setembro, avaliou a carabina. Dali a poucos minutos, usaria uma arma parecida, mas sem luneta, no torneio interno da agremiação, disputa que naquele dia juntava cerca de noventa pessoas. Todos apertavam os gatilhos num galpão bem equipado, dentro de cabines protegidas por vidros isolantes.
A jovem se dedica ao esporte desde a infância. “Comecei com 9 anos.” A prática, segundo ela, é corriqueira em famílias vindas do campo, como a sua. Entre as dezenas de competidores daquele domingo, apenas duas mulheres estavam inscritas. Na categoria “carabina com mira aberta sênior”, só Baginski.
Uma espécie de inspetor circulava pelas cabines para verificar a observância das regras. Quando ele deu o sinal, a moça pôde finalmente apertar o gatilho: disparou trinta vezes na direção de três alvos situados a 25 metros de distância. Por causa do abafador de som sobre os ouvidos, não conseguia escutar direito a própria voz. “Devo ter errado muito”, lamentou, quase gritando, depois da sequência de estampidos.
A atividade fazia parte de sua campanha eleitoral. Baginski abandonou a Nova Arena no fim de 2013. Mais tarde se filiou ao PP, o Partido Progressista, que ainda a abriga. Ela afirma que a legenda, pelo menos em Caxias do Sul, é neutra – nem de direita, nem de esquerda. A própria Baginski já não consegue se encaixar no espectro ideológico tradicional. Nas eleições municipais deste ano, concorreu a uma vaga na Câmara de Vereadores de Caxias com uma plataforma impensável para seus antigos aliados: defende os direitos da população LGBT e a proteção aos animais. “Fui madrinha no casamento de duas mulheres. É um casal normal. Depois de amadrinhá-las, comecei a me envolver mais com esse ativismo”, conta. Quanto aos animais, garante que sempre teve paixão por bichos. Possui dois gatos, com nomes que os arapongas da ditadura considerariam suspeitos: Mitchonska e Gatonski. Seu material de campanha explora a fase atual com o slogan “uma jovem na luta pelas minorias”. Sobre os velhos companheiros, Baginski reconhece que de fato havia “bastante maluco” na Nova Arena. Ela seria uma exceção.
Fora do clube de tiro, enquanto fumava um cigarro, a candidata admitiu que, quando refundou a Arena, não tinha conhecimento suficiente a respeito do que acontecera no país sob os militares. Hoje, assegurou, é radicalmente contra a tortura e a censura que marcaram o período. Chega mesmo a se definir como left lib: cética quanto a algumas formas de intervenção estatal, mas simpática a causas tradicionalmente encampadas pela esquerda.
Ainda não era meio-dia quando a jovem e seu noivo – o estudante de direito João Manganelli Neto, de 30 anos – deixaram o clube. Decidiram almoçar na estrada, antes de retornar à cidade. Foi só no restaurante que o noivo acessou pelo celular notícias sobre o torneio. E descobriu que Baginski alcançara o quinto lugar na sua modalidade, entre dezessete competidores.
A moça ficou satisfeita, mas não se entusiasmou. Talvez fosse efeito do xintoísmo, religião japonesa que adotou faz pouco tempo. “É mais sincrética, mais condizente com o que sou agora. Busco paz espiritual. Estou cansada de radicalismo.” O que parece não ter mudado em Baginski é a alegria de dar tiros. Disparar relaxa, “alivia a tensão”, explicou. Mais cedo, no clube, diante de um alvo cravejado de balas, ela já havia comentado: “Quanto mais a gente atira, mais vontade dá de atirar – e de acertar.”