ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Pechincha em Shoreditch
Um canto para chamar de yours
Mariana Schreiber | Edição 99, Dezembro 2014
Gabriela Montgomery sobe no patinete de rodinhas fluorescentes e dá um rolê pela sala. Partindo da área de ginástica, desvia do saco de boxe, passa entre as cadeiras e os sofás, tira um fino do piano, contorna o futon e, depois de dar uma volta ao redor da mesa quadrada de vidro e metal, desce do brinquedo.
“Tem tanto espaço. Nunca tive uma casa em que eu fizesse essas coisas dentro”, diverte-se. Mulata, filha de um baiano e de uma inglesa, a jovem de 23 anos fala de forma serena, num português razoável para quem vive desde os 6 anos em Londres. Muitas vezes pontua as frases com palavras do idioma de David Cameron. “Londres é tão caro… Mas aqui eu vivo com luxury. Não é só ter um quarto, mas um castelo. É, uau, muito bom.”
Os 250 metros quadrados onde mora são compartilhados com mais dois brasileiros, a paulista Juliana Roldão e o baiano Solomar Coelho. Os roommates dividem o 3º andar de um antigo prédio comercial numa pequena rua de Shoreditch, a hipsterlândia londrina. O valor médio do aluguel de um quarto na área, uma das mais valorizadas da capital, é de 900 libras (3 600 reais). Na república tupiniquim, cada um desembolsa metade disso.
Os três são guardiões do prédio, junto com os moradores dos outros quatro andares – em torno de 35 no total. A presença de live-in guardians serve para manter distantes os squatters – pessoas sem moradia que ocupam imóveis vazios. Uma pesquisa no Google revela uma dúzia de empresas que atua no ramo em Londres. Elas fazem o meio de campo entre os proprietários que não querem gastar muito para proteger seus imóveis e pessoas dispostas a abdicar da estabilidade e privacidade de uma residência convencional em troca de moradia ampla, barata e central.
Uma das mais antigas dessas empresas, Camelot, nasceu na Holanda em 1993 e uma década depois chegou ao Reino Unido. O negócio se popularizou no país há dois anos, quando a ocupação de imóveis residenciais virou crime e os squatters migraram para outras paragens. Na página da empresa, a lista de potenciais cafofos à espera de guardiões inclui escritórios, escolas, lojas, delegacias, castelos, hospitais, cinemas, igrejas, fábricas, mosteiros e até piscinas.
Londres é o lugar ideal para o negócio florescer. A prática do squatting, que na Inglaterra remonta às revoltas camponesas de 1381, é estimulada pelos preços galopantes: em setembro, o aluguel médio na capital bateu o recorde de 1 466 libras, ou quase 6 mil reais.
De havaianas, jeans, blusinha florida acima do umbigo e faixa na cabeça, Gabriela conta que virou guardiã há um ano e meio. “Fui a uma festa de guardiões e só tinha artista, de todo lugar do mundo.” Tentaram avisá-la dos poréns: “Você paga para morar em espaços que não são casas, tem que mudar muito e parará. Mas eu queria me envolver com pessoas do mundo artístico”, diz a baiana graduada em dança.
Juliana, a veterana do grupo, foi introduzida nesse universo por um namorado, em 2011. “Londres é uma cebola”, diz ela, explicando que a capital se divide em seis zonas concêntricas, com aluguéis mais baratos à medida que se afasta do centro. A designer vive há quase uma década na cidade-bulbo. Antes, dividia um quarto e sala com o irmão na zona 4. Gastavam 800 libras entre o aluguel e as contas, mais 100 de transporte. Na zona 1, é tudo mais prático. “Aqui só preciso de uma bicicleta”, conta a guardiã, com um sotaque entre o português brasileiro e o de Portugal, onde cresceu.
Em seu primeiro endereço em Shoreditch, Juliana arcava com um custo total de 250 libras por mês (1 000 reais). Em outro prédio comercial, seu lar era um quarto sem janela, no térreo. “O espaço era tão grande que me acostumei a não ter janela.” Também mulata, a moça de fala mansa é magra e prende os cabelos cacheados num rabo de cavalo. “Ser live-in guardian virou trendy”, resume, enunciando a última moda. “Antes era discriminado, agora é um estilo de vida. Por isso ficou mais caro.”
A vida dos guardiões é regida por uma lista de exigências e proibições. É preciso comprovar renda e ficha limpa. É proibido ter animais ou filhos, dar festas, fumar e acender velas, receber mais de duas visitas simultaneamente, hospedá-las à noite e dar entrevistas. Um inspetor pode chegar a qualquer momento e entrar sem bater, para verificar o cumprimento do contrato. Recentemente Solomar foi multado em 25 libras (100 reais) por causa do cigarro.
A casa dos brasileiros exige um desapego extra à privacidade, uma vez que as divisórias que separam a sala dos quartos são daquelas de escritório, finas e transparentes. Cortinas atenuam o problema, mas é preciso fazer ouvidos moucos aos ruídos. “Todo mundo é humano, todo mundo grita, ronca, faz sexo”, diz Gabriela. “Temos que nos acostumar.”
Eles se consideram privilegiados por dividir o espaço entre apenas três locatários. Nos outros andares, chegam a viver oito. Ocorre que naquele patamar havia três enormes buracos no piso da sala. Solomar, que é servente de obras, reparou o chão e o revestiu com um mosaico de retalhos de carpetes variados encontrados no térreo do edifício. O grosso da mobília – quatro sofás, cadeiras, poltronas, mesas e televisores – foi garimpado no lixo das redondezas. Numa dessas excursões, um vizinho que perdeu o pai ofereceu máquina de lavar, piano, armários e espelhos do falecido. “Aqui só tem milionário”, ressalta Solomar. “Achei uma tevê de 40 polegadas funcionando. Só quebrou porque deixei cair.”
Vive-se ao sabor do momento. Se o proprietário pedir o imóvel, os guardiões têm três semanas para sair. Mas nenhum dos brasileiros sabe muito do futuro. Gabriela diz que viveria assim para sempre. “Eu podia morar com meus pais, mas essa é uma experiência once in a life-time”, disse, frisando seu caráter único. “Sou artista, e com essas pessoas around me, estou aprendendo.” Juliana, por sua vez, está cansada. Planeja se mudar em breve. “Achava bom uma casa grande, hoje vejo vantagens numa pequena. Agora preciso de estabilidade, é questão de sanidade mental.”