Hamdy sobre o amigo Mohy: "Ele é do sul e viajou dois dias para se juntar às pessoas na praça. Foi um dos mais bravos defensores da Tahrir. Ferido três vezes, em todas voltou direto para a praça" FOTO: AHMED HASSAN_2013
Pedras, armas, religião
O golpe militar no Egito pelos olhos de um veterano dos protestos e dos cafés do Cairo
Muhammed Hamdy | Edição 83, Agosto 2013
O cineasta MUHAMMED HAMDY é um veterano da praça Tahrir, um grande círculo descampado, originalmente concebido como uma rotatória para o tráfego no Centro do Cairo, que se tornou o epicentro improvável das revoluções egípcias. Hamdy passou dois anos na praça Tahrir (libertação, em árabe) nos protestos que levaram à queda do ditador Hosni Mubarak e prosseguiram durante a conflituosa transição comandada pelos militares. Dirigiu a fotografia do documentário The Square, vencedor do prêmio de público no último Festival de Sundance. No final de junho, o cineasta de 29 anos voltou à Tahrir para acompanhar as manifestações pela renúncia do presidente Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana. Eleito no ano passado, Morsi acabou deposto pelas Forças Armadas. Entre passeatas, pedradas, tiros e conversas intermináveis num café perto da Tahrir, usado como quartel-general, Hamdy e seus amigos revolucionários oscilam entre festejar a queda da Irmandade e questionar o poder do Exército, única força a sair intocada em dois anos e meio de rebeliões no mais populoso país árabe.
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DE TEL-AVIV PARA O CAIRO, SÁBADO, 29 DE JUNHO_As ruas estão vazias em Tel-Aviv porque é manhã do shabat. Passei os últimos seis dias trabalhando num documentário em território palestino e em Israel, e a experiência foi densa. Estou ansioso para voltar ao Cairo para o 30 de Junho. Cerca de 22 milhões de pessoas aderiram ao abaixo-assinado pedindo que Morsi renuncie nessa data, quando completa um ano que ele assumiu a Presidência. Acho que serão as maiores manifestações desde a queda de Mubarak, em fevereiro de 2011.
Meu avião de volta ao Cairo sai à uma da tarde, e preciso estar no aeroporto às oito da manhã. Todo mundo me disse para chegar cinco ou seis horas antes da partida. Combinei com um táxi para vir me pegar às sete. Na recepção do hotel, um sujeito me diz que eu devia ter escolhido um taxista judeu: “Se descobrirem que o motorista é palestino, vão mandar parar e revistar o carro inteiro na chegada ao aeroporto.” “Agora é tarde”, respondo, “já fechei negócio.”
Na entrada do aeroporto, mandam o táxi parar e nos pedem para sair do carro. Abrem a mala e o capô e me pedem para entrar numa fila de umas dez pessoas em pé diante da porta de uma sala. Descubro que são todos árabes. A partir daí, passo por seis horas de revistas. Tenho que esvaziar a mala várias vezes, sou obrigado a tirar minhas roupas e, até passar pelo controle de passaporte e embarcar no avião, sou acompanhado por uma mulher que não me deixa nem ir ao banheiro ou beber um café.
Chego ao Cairo, deixo minha bagagem em casa e saio imediatamente para o Centro, rumo ao nosso ponto de encontro tradicional no El Nadwah, ou “a cúpula”, um café frequentado por artistas e jornalistas, a 50 metros da praça Tahrir. O café é um balcão voltado para a rua, com mesinhas e cadeiras velhas na calçada. As pessoas tomam chá, café, limonada, e fumam narguilé.
São onze da noite, e a praça já está cheia de gente. Todas as ruas que levam a ela estão repletas, e pode-se ver gente grafitando paredes, carregando bandeiras, faixas e cobertores. Parece a véspera de um festival. No café, já discutem o que vai acontecer depois que Morsi for derrubado. Todos preveem que amanhã haverá violência.
Saio por um tempo para me encontrar com um produtor americano que trabalha para o canal Showtime e quer que eu filme para ele no dia seguinte. Ele insiste em seguir um ativista do Movimento 6 de Abril, formado em apoio a grevistas ainda no período de Mubarak e que se tornou um dos principais movimentos jovens de resistência ao antigo regime e ao atual governo.
Às três da manhã minha amiga Petra Costa me chama do Brasil no Skype e me pede para escrever este diário para a piauí. Digo a ela que nunca escrevi um diário e que nem sei como começar. Ela me pede para descrever o que aconteceu desde que acordei no dia anterior. Devagar, as palavras começam a sair.
CAIRO, DOMINGO, 30 DE JUNHO_Encontro meu produtor americano no hotel dele. São nove da manhã e levamos quinze minutos para atravessar a praça Tahrir até o El Nadwah, onde meus amigos já estão. Do lado de fora, as pessoas gritam “O povo e o Exército estão de mãos dadas”. Meus amigos e eu ficamos irritados. É uma das palavras de ordem mais repetidas hoje porque as pessoas imaginam que os militares sejam a única força capaz de fazer frente à Irmandade Muçulmana e acelerar o processo. Mas meus amigos e eu tivemos tantos confrontos com o Exército depois da queda de Mubarak que, para nós, é impossível aderir a esse sonho.
Brincamos que, na verdade, quem está de mãos dadas são a Irmandade e o Exército. Porque o que de fato aconteceu é que o Exército fez um acordo com a Irmandade no ano passado. [No segundo turno da eleição presidencial de 2012, houve um impasse de uma semana até que o Conselho Supremo das Forças Armadas reconhecesse a vitória de Morsi com 51,7% dos votos, contra 48,3% de Ahmed Shafiq, ex-premiê de Mubarak.]
Meu produtor me pede que eu filme o seu personagem numa passeata prevista para se deslocar da praça Tahrir ao palácio presidencial. Vou até lá esperando no máximo umas mil pessoas (normalmente, as passeatas aqui começam muito pequenas e ao longo do caminho vão atraindo mais gente). Mas desta vez milhares e milhares de pessoas se juntam à passeata à medida que ela avança. Tento ligar para o meu personagem, mas as redes de celular estão congestionadas. Ao final de três horas, finalmente consigo completar a ligação. Eu o filmo por algum tempo, depois me perco dele no oceano de gente. Estou com sede, mas não há água. Os estoques de todos os quiosques se esgotaram.
Levo cinco horas para chegar ao palácio presidencial, uma caminhada de 11 quilômetros que num dia normal levaria duas horas. Quase no palácio, encontro meu diretor, filmo com ele imagens da massa, das mulheres gritando, das faixas e bandeiras. Depois voltamos para perto da Tahrir. Subimos para tomar uma cerveja no quarto de hotel dele. Da varanda, vejo a praça e me dou conta de que nunca vi tanta gente em toda a minha vida.
No caminho de volta para o café, descubro que os manifestantes não protestam mais, já estão celebrando a derrubada de Morsi, embora ele continue na cadeira presidencial. Não é a mesma sensação do tempo de Mubarak, quando todos viviam tensos esperando que ele renunciasse. A atmosfera é completamente outra, e parece que não há nada a temer. Hoje não explodiu uma única bomba de gás lacrimogêneo. Sinto falta do cheiro.
SEGUNDA, 1º DE JULHO_Acordo à uma da tarde e vou para o café El Nadwah. Dois velhos a meu lado começam a falar de como o envolvimento do Exército é importante neste momento. Dirigem-se a mim, perguntando quem, em minha opinião, é o homem certo para governar o país.
Respondo que estou bem mais interessado em saber como essa revolução está afetando a cabeça das pessoas do que na vitória de algum governante em particular. E continuo: “Nós, os manifestantes, somos como cachorros nas ruas, latindo toda vez que os políticos fazem uma coisa errada. Somos as pessoas que os políticos deveriam temer.”
“E o Exército?”, pergunta um deles.
“O Exército é o problema”, respondo. “Mubarak era um dos chefes do Exército, e a Irmandade só assumiu o governo porque fez um acordo com o Exército. Então de qual Exército o senhor está falando?”
“Vocês jovens! Nunca estão satisfeitos com nada”, diz ele com ar de desaprovação, e se levanta.
“Não, esses políticos estão sempre esperando por nós, por mim e pelo senhor. Sempre esperam que o povo tome uma atitude e então reivindicam os méritos para si. Depois proclamam que vão corrigir os erros dos velhos políticos. Mas quem criou toda essa situação foram Mubarak, os militares e os islamitas.”
“Não concordo com você”, responde ele, irritado. “Você apenas diz que nenhum deles presta, que não acha nenhum deles bom.”
“Mas o senhor eu acho bom quando conversa aqui na rua comigo”, digo, fazendo um gesto para que torne a se sentar. Ele se acalma e começa a rir, dizendo: “Meu filho, e qual é a solução?”
“Por favor, o senhor está querendo que eu segure um peso grande demais”, respondo. “Não sou político, e é deles que se esperam respostas e soluções.”
“E você?”
“Como cidadão, sou eu que devo fazer as perguntas, e não eles; sou eu que devo fazer queixas, e não eles. Eu sou quem mete medo nos políticos por serem políticos.”
“Vocês ainda são jovens, não conhecem o peso das responsabilidades e dos compromissos. Nunca estiveram debaixo de muita pressão.”
De repente, começam a gritar no café pedindo silêncio porque o Exército está fazendo um pronunciamento pela televisão. Ouvimos um discurso dizendo que o governo tem 48 horas para atender às reivindicações do povo. Meus sentimentos são ambíguos. Ainda não sei se devo ficar animado com a queda iminente de Morsi ou preocupado com a ameaça de um novo golpe militar.
Resolvo sair com Ammar, um amigo que vem pintando murais sobre a revolução nas ruas do Cairo. Junto com dois canadenses estamos fazendo um projeto de transformar extintores de incêndio em pistolas de pintura. Sugiro fazermos o desenho de um general dando de mamar a um bebê. “Podíamos transformar a cabeça do general numa caveira”, sugere Ammar, “e pintar a águia da bandeira egípcia à volta dele, mas de cabeça para baixo.”
Decidimos pôr este plano em ação no dia seguinte.
TERÇA-FEIRA, 2 DE JULHO_Acordo ao meio-dia e vou para o El Nadwah, encontrar Ammar e outros amigos. Ele olha para mim com grande entusiasmo, ergue as mãos num gesto de triunfo e diz: “Estamos de volta ao jogo!”
“Mas esse jogo não tem volta”, respondo. “Você não pode começar provocando o Exército e, quando os militares reagem, dizer que vai parar. A gente não pode parar.”
“Mas a verdadeira mudança é essa, porque, quando a gente ataca o Exército, está atacando as raízes”, diz Ammar. “Exatamente, agora a revolução está tendo uma virada, e é a virada de que a gente precisa”, digo eu, porque sempre achamos que os islamitas iriam cair rápido, mas não tão depressa assim.
Saio do café com Ammar e começo a procurar onde podemos encontrar extintores de incêndio. Precisamos de extintores usados e vazios. Os comerciantes ficam paranoicos, achando que queremos fabricar bombas. Finalmente encontramos um comerciante que nos pergunta quantos nós queremos, e por quê. Explicamos que é para usar em pintura. Então ele ri e diz: “Meus jovens, também sou corajoso e acredito nas mesmas coisas que vocês, então me digam a verdade.”
“Mas é a verdade”, respondemos.
“Ora, vamos lá, eu sei que vocês pensam igual a nós.”
“Como assim?”
“Como nós, vocês estão cansados da Irmandade. Vocês têm certeza de que só querem os extintores para pintar?”
“Juro por Deus que são só para pintar!”, eu digo.
Depois de muita barganha, ele diz para passarmos no dia seguinte para apanhar os extintores.
Às duas da manhã, ficamos sabendo que confrontos estão acontecendo perto da Universidade do Cairo, onde a polícia e o Exército estão enfrentando a Irmandade. Ficamos animados para ver os aliados de ontem lutando hoje um contra o outro.
Essa imagem precisa ser capturada. Nos aproximamos o máximo possível da área com outros dois amigos, estacionamos o carro e decidimos fazer o resto do caminho a pé. No meio de uma rua secundária, avistamos uns dez sujeitos com armas nas mãos. Assim que eles nos veem, apontam as armas para nós e berram: “Não façam nenhum movimento! Se vocês se mexerem, nós atiramos! Parados, parados!”
Ficamos parados, com as mãos para o alto.
Ammar me pergunta: “Que é isso?”
Respondo: “Aparentemente, são moradores das redondezas.”
Os homens caminham na nossa direção, apontam as armas para as nossas caras e gritam: “Quem são vocês, porra? São da merda da Irmandade?”
Fico tão apavorado que nem consigo responder. Estou com medo de que uma dessas armas dispare a qualquer momento, a julgar pelo ódio que vejo nos rostos deles. Eles começam a discutir entre si se somos ou não membros da Irmandade. “Os óculos dele não são do tipo da Irmandade”, diz um deles. E outro retruca: “Mas as barbas são do tipo usado pela gente da Irmandade.” Tudo isso com metralhadoras apontadas para as nossas caras.
Até que um deles finalmente aponta para a camisa de Ammar, com cores fluorescentes, e diz: “Mas essa camisa não é coisa da Irmandade de jeito nenhum”, o que põe fim à discussão e nos dá uma chance de falar. Ammar diz: “A gente é da Tahrir, a gente é da Tahrir!”
O sujeito olha para mim e pergunta: “E o que vieram fazer aqui?”
“Um amigo nosso contou que a Irmandade estava atacando nessa área, e viemos para ficar do lado de vocês.”
Finalmente eles entendem e começam a se desculpar, contando que a milícia da Irmandade estava atirando desde as seis da tarde, e que ninguém do Exército ou dos revolucionários aparecia para ajudá-los.
Começamos a nos aproximar da rua principal, onde os confrontos prosseguem. A maioria dos carros na rua está em chamas, chovem balas de todas as direções. Está escuro porque os dois lados atiraram nos postes de luz próximos às suas posições. Os moradores da área estão sem munição. Então chega um sujeito trazendo o equivalente a 2 500 dólares em balas, que só dão para uns vinte minutos porque a Irmandade não para de atirar. Durante o tempo em que passo lá, dois homens são mortos a tiros. Chego em casa às oito da manhã e apago de cansaço.
QUARTA-FEIRA, 3 DE JULHO_Às três da tarde vamos pegar os extintores de incêndio. Depois partimos para comprar tinta, mas todas as lojas estão fechadas. Vou com Ammar e os canadenses até o café. Discutimos o plano de abrir uma pequena oficina para dar um curso prático de como pintar com extintores. Pintamos murais há anos, mas com os extintores podemos pintar uma superfície muito maior em muito menos tempo. Em questão de minutos dá para cobrir um outdoor inteiro, um tapume de construção, um tanque do Exército. Decidimos que nosso primeiro ato vai ser cobrir os letreiros de propaganda com frases em preto e branco sobre a revolução e nossas dúvidas quanto ao Exército.
Um pouco mais tarde vou até a casa de meu amigo Abo el-Hassan para tomar cerveja. Ele é um romancista de 42 anos, de olhos grandes e um corpo fino. Enquanto eu troco as cordas do violão dele e ele fuma um cigarro de haxixe, na tevê o Exército anuncia que Morsi não era mais presidente e a Constituição foi suspensa. Descemos para as ruas, e a multidão está em transe.
Vejo um panorama infinito de seres humanos. Acho que as ruas do Egito nunca viram quantidade igual de gente em toda a nossa história. Todos se abraçam. Parece uma alucinação. Raios de luz verde emitidos por canhões de laser chineses cruzam os céus por todos os lados.
É incrível como as coisas estão acontecendo depressa. Dois dias, e Morsi caiu. Não sei o que pensar. O povo deixou o Exército sem opção. Ficou bem claro que, se não ficarem do lado do povo, os militares vão se transformar em inimigos.
O Exército anuncia que não vai ocupar o poder, que o entregará ao juiz mais graduado do Tribunal Constitucional. Diz que irá continuar protegendo as ruas até que eleições presidenciais sejam possíveis. Enquanto isso, um governo provisório será formado para reescrever algumas das emendas da Irmandade à Constituição que produziram tanta indignação entre o povo.
Fico espantado com o quanto mudou o comportamento do Exército. Quando derrubamos Mubarak, eles declararam que estavam no controle. Agora estão dizendo que não são eles que governam. Pessoalmente não confio no Exército, mas o que está acontecendo é novo na história do Egito. É a primeira vez que os militares cedem às demandas do povo. Bom demais para ser verdade.
Volto para casa e ligo a tevê. Tudo o que dizem é que o Egito está sofrendo um golpe militar. Parece que estamos vivendo duas realidades paralelas. Meu amigo Rabab el-Mahdi posta um texto no Facebook que exprime o que sinto: “Cara CNN e outros amigos da mídia: vocês não podem ficar choramingando toda vez que saímos na rua para derrubar um presidente: da primeira vez era o medo dos islamitas, desta vez é a perda da democracia… Isso é uma revolução, e não uma transição democrática do tipo que aparece nos seus livros. Por favor nos deem um tempo… criamos os nossos problemas, e nós mesmos os resolvemos.”
Meu pai vem falar comigo e me pergunta: “Você está feliz ou preocupado?” E eu respondo: “Não tenho nenhum motivo para ficar preocupado nem para ficar feliz, além da saída dos islamitas.”
Meus pensamentos se dispersam. Minha mente não consegue digerir a totalidade dos acontecimentos.
QUINTA-FEIRA, 4 DE JULHO_Ligo a tevê antes de lavar o rosto. O noticiário diz que Adly Mansour, do Tribunal Constitucional, foi anunciado como novo presidente até a convocação de eleições presidenciais. Escuto o seu discurso, que é breve e objetivo. A notícia seguinte cobre a prisão dos líderes da Irmandade Muçulmana. Muitas canções melosas na tevê, junto com as imagens das celebrações de ontem. Televisão: sempre traumatizante.
SEXTA-FEIRA, 5 DE JULHO_Acordo às onze da manhã. Assisto ao noticiário sobre os protestos por duas ou três horas. Prenderam os líderes da Irmandade que estavam ameaçando o povo, fazendo declarações como “As portas do inferno vão se abrir” ou “Depois não nos culpem pela violência entre os egípcios”.
Às cinco da tarde, meu pai está no terraço da casa, vou vê-lo e ele sugere jantarmos lá mesmo. Enquanto como com ele, vejo o chefe da Irmandade Muçulmana na tevê, dizendo: “Estamos advertindo o Exército para o que vai acontecer!” Sinto na mesma hora que alguma loucura vai acontecer nas ruas.
Troco de roupa, vou para a praça Tahrir e vejo que todas as lojas estão fechadas, as ruas totalmente vazias. Ligo para Ahmed, um outro amigo, e ele me fala de conflitos entre a Irmandade e revolucionários perto do Museu Egípcio. Lá, vemos muita gente, e o som de balas é intenso. Tiros de chumbinho atingem meus braços e minhas pernas. Fico furioso. Entrego a câmera a Ahmed e chego mais perto.
Consigo me aproximar, mas não quero jogar pedras porque não consigo ignorar o fato de que são cidadãos (na época de Mubarak, eu joguei pedras contra os militares algumas vezes). Os sujeitos perto de mim começam a gritar: “Se você tem a coragem de chegar aqui, mas não está jogando pedras, pelo menos traga pedras pra gente que a gente atira!” A escassez de pedras na linha de frente é sempre um problema.
Volto até um quiosque e me dão um caixote vazio, que enchemos de pedras. Um outro sujeito o leva até a linha de frente. Começo a carregar os feridos para as motocicletas de resgate. Sempre que há um confronto, as pessoas tuitam: “Precisamos de médicos no endereço xis.” Eles vêm e instalam um hospital de campanha.
Acendo um cigarro e um tiro de chumbinho me acerta no rosto. Fico em pânico, achando que pegou no olho (muitos conhecidos meus perderam os olhos dessa forma). Para o meu alívio, logo percebo que pegou bem em cima da minha sobrancelha.
Sento no meio-fio para ver a cena e tento refletir sobre o que está acontecendo. Me levanto e me apoio numa barreira de ferro. Escuto o som de uma bala e sinto uma vibração tão forte que parece que a bala me atingiu. Tremendo, olho para a minha direita e vejo um buraco no ferro, tão grande que dá para passar meu dedo por ele.
Vejo Abdo, um amigo meu, lutando com outras pessoas. Tento tirá-lo da briga quando chegam os tanques do Exército e se postam entre os dois lados. O conflito cessa. Enquanto me afasto do local onde ocorriam os choques, minha mente começa a divagar em várias direções.
– Nestes momentos fico surpreso com a quantidade de amigos que fiz nessa revolução. Caminhando pelas ruas depois das batalhas, você vê todas as pessoas que conheceu, e o mais estranho é que estão todas felizes.
– Dois anos atrás, a Irmandade Muçulmana e os revolucionários lutavam juntos contra Mubarak.
– É impressionante a quantidade de armas que as pessoas têm agora. As armas estão sendo contrabandeadas da Líbia para as ruas do Egito. O que salva é que ainda não há muitas balas.
– O Exército nos viu lutar por quatro horas. Ficaram olhando enquanto as pessoas se matavam nas ruas, sem fazer nada.
– Os islamitas não têm um projeto. O projeto deles não é o Egito, é uma religião. O projeto deles é o reino de Deus, não tem nada a ver com o país.
– A triste realidade: dezessete pessoas foram mortas.
SÁBADO, 6 DE JULHO_Acordo às duas da tarde, já detestando o dia antes mesmo de ele começar. Às três e meia ouço o chamado para as orações. Os islamitas não estão mais no poder, mas os chamados para as orações continuam; as pessoas ainda rezam. Dentro de quatro dias começa o Ramadã e eu, como quase todo o país, vou entrar em jejum.
Vou começar a filmar um documentário sobre as mulheres nas revoluções do mundo árabe. O diretor me ligou para pedir que acompanhe uma das suas personagens amanhã, quando ela for à manifestação. Que alívio saber que vou trabalhar.
Enquanto fumo um cigarro na varanda, minha mãe me pergunta: “Você viu a cachorra da rua? Ela teve três cachorrinhos novos.”
“Não poderiam ser três cachorrinhos velhos”, respondo. Ela me diz para deixar de ser espertinho, arranjar algumas sobras de comida e levar para os filhotes.
Quando volto para o apartamento, minha mãe está assistindo ao noticiário e me sento ao lado dela. Ela pergunta o que é o galo em cima do meu olho, conto que Ammar deixou cair uma escada em mim enquanto pintávamos na rua. Minto, pois não posso contar a ela que estava nos confrontos; quando levei um tiro antes, prometi que nunca mais iria a essas batalhas.
Em seguida, fui até o El Nadwah. Um sujeito perto de nós, de uns 30 e tantos anos, tentava nos dar conselhos. “Precisamos apoiar o Exército, precisamos proteger o Exército”, diz ele.
“É mesmo? De quem?”, pergunto.
“Das pessoas que odeiam o Exército e o Egito”, ele responde.
Isso me deixa com tanta raiva que eu respondo: “Você, um cidadão, quer ir proteger os militares, que têm tantos tanques, soldados, aviões, e todas as armas? Você quer proteger o Exército? Tem gente morrendo todo dia nas ruas, e você quer proteger o Exército? O povo virou o exército do Exército?”
O sujeito começa a rir e a falar de propaganda, teorias conspiratórias e sei lá o que mais. Paro de lhe dar atenção.
DOMINGO, 7 DE JULHO_Acordo tarde. Desço e pego um táxi porque ouvi no noticiário que as ruas estão bloqueadas por protestos da Irmandade. Vou até o El Nadwah e, enquanto espero a pessoa que vou filmar, um menino de rua de uns 15 anos, que está sempre por ali, vem e senta ao meu lado. Fala da sua percepção em relação às pessoas que frequentam o café. Para ele, quase todos os que vêm aqui são jovens mimados que não sabem o que é pressão de verdade, não entendem o que é preciso fazer para existir, sobreviver, e gostam de se queixar além da conta. Ele diz que gosta de mim porque eu lhe dou cigarros e às vezes bons charutos. “Eu pego os charutos que você me dá, atravesso a rua para encontrar os outros e faço de conta que sou muito importante.”
A pessoa que vou filmar chegou. É uma jovem de 25 anos, da oposição aos militares. É baixinha e um pouco rechonchuda, com o rosto redondo e um sorriso caloroso. Parece honesta e fiel aos mártires da revolução. Eu a filmo com suas amigas, conversando sobre as Forças Armadas. Ela está indignada, e repete as mesmas coisas que os meus amigos dizem o tempo todo. Fico entediado.
Depois que termina a filmagem, volto ao café e encontro Ammar e os dois canadenses que estavam trabalhando conosco no projeto dos extintores de incêndio. Conto a eles que uma amiga brasileira falou que eu precisava acreditar em lideranças políticas. Pergunto o que eles acham disso. A pergunta abre uma porta para a qual eles não estão prontos.
E pergunto: “Vocês conversam com os seus amigos no Canadá, e eles perguntam o que está acontecendo no Egito?”
“Sim, horas a fio.”
“Aposto que dizem que é um golpe militar, mas vocês insistem em responder que é uma revolução, tentam discutir com eles e mostrar as imagens que fazem todo dia nas ruas; como as pessoas são diferentes e como a sensação é na verdade de uma revolução, mas tudo o que vocês dizem cai em ouvidos surdos, e vocês ficam muito frustrados.”
“E é exatamente assim”, eles respondem.
“Pois é exatamente assim que eu me sinto quando um ocidental vem me falar da liderança política.”
“Por quê?”
“O problema é que, aqui, rótulos como esquerda, direita ou socialismo não querem dizer nada. Estamos saindo de uma revolução, e não há como explicar em pouco tempo que toda essa violência que a gente viveu não vai acabar com a simples escolha de um líder político pelo voto. Precisa haver outro caminho. Precisamos manter a tensão entre os políticos e as ruas.”
Na praça Tahrir, as pessoas aplaudem os militares, que estão pintando a bandeira egípcia no céu com aviões, o que me deixa furioso.
Meu amigo Raie liga e eu peço uma carona até minha casa. Ele responde que tudo bem, mas que precisa passar num funeral antes. Eu digo: “Me pegue que vou ao enterro com você.”
Vamos a el-Sayedah, um bairro muito pobre. É o funeral do pai de um dos assistentes de produção do escritório do Raie.
“Como foi que ele morreu?”, pergunto.
“Um acidente de moto.”
“Foi tão sério assim?”
“Não, na verdade a perna esquerda dele já estava quebrada desde antes, e ele não conseguiu controlar a moto.”
“Então por que estava andando de motocicleta?”
“Estava entediado”, responde Raie.
“E agora nunca mais vai sentir tédio”, digo eu.
O filho tem apenas 16 anos e agora virou “o homem da casa”. O funeral é na rua, porque a casa do rapaz não comporta muita gente, e ele não tem dinheiro para alugar um salão.
SEGUNDA-FEIRA, 8 DE JULHO_O massacre acontece enquanto estou dormindo. A tevê está ligada na sala com o volume alto. Fala da morte dos membros da Irmandade que atacaram uma instalação do Exército. Mais de cinquenta mortos. E os meios de comunicação perguntam: “Como, como a Irmandade fez a loucura de ir lá e atacar os militares?” Troco imediatamente para a Al Jazeera porque sei que está do lado da Irmandade (é financiada pelo Catar, uma das maiores fontes de apoio para a Irmandade Muçulmana). A Al Jazeera fala da atitude perversa do Exército, matando os manifestantes enquanto rezavam, exatamente o contrário do que eu vinha ouvindo nas tevês egípcias. Vou para o meu quarto e volto ao livro de Hussein Mansur al-Hallaj, um poeta sufi.
Depois de algumas horas, sigo para o café, onde encontro os meus amigos. Estão todos em estado de choque. Um ano atrás o Exército fez a mesma coisa, só que conosco. Massacraram muitos dos nossos amigos na praça. Somos os sobreviventes. Enquanto os militares atiravam em nós, membros da Irmandade apareciam nas tevês pedindo que o Exército limpasse a praça de bandidos como nós. Um ano mais tarde, o mesmo Exército que apoiaram e pediram que nos liquidasse está acabando com eles. Agora que os militares estão matando a Irmandade, não sabemos o que pensar nem sentir. Devemos avaliar o que é justo com a cabeça fria, ou pensar com as nossas emoções, em nome da humanidade?
TERÇA-FEIRA, 9 DE JULHO_Meu pai me acorda para ajudá-lo a ir buscar o carro dele na oficina. Passo no banco para descontar um cheque recebido num trabalho. Ao meio-dia, encontro o banco fechado: “O que está acontecendo, uma hora da tarde e vocês fechados? Por quê?”
“O que é isso, rapaz, não sabe o que está acontecendo no país?”, devolve o segurança.
“Vocês só estão aproveitando os acontecimentos como um pretexto para fechar mais cedo, mas estão se lixando para o que acontece no país. Querem é trabalhar só duas horas por dia.”
Vou embora do banco ao encontro do Raie, que está com outro amigo, Selim. Eu sei que Selim mora perto da instalação militar onde ocorreu o massacre da Irmandade. Selim conta que viu toda a cena do massacre da janela do seu quarto. Pergunto o que aconteceu.
“Fui dormir em torno das três e meia da manhã, horário de uma das orações”, contou ele. “Dali a alguns minutos, ouvi tiros, fui até a janela e vi milhares de membros da Irmandade, alguns deles atirando contra a instalação militar. O Exército começou a jogar gás lacrimogêneo, e os caras da Irmandade responderam com pedras.”
Ele não sabe ao certo se o oficial do Exército morto no lugar morreu naquele instante ou mais tarde, mas tem certeza de que foi a Irmandade quem atirou primeiro. “Os caras da Irmandade não são treinados como a Guarda Republicana. Os militares só precisaram de quatro minutos de tiros para dispersar os milhares de membros do grupo. Então começaram a recolher os corpos dos mortos e feridos.”
Às três da manhã o sol nasce e começa o Ramadã, o mês em que todos os muçulmanos precisam jejuar do nascer ao pôr do sol. Minha técnica é ir dormir todo dia às sete da manhã e acordar às três da tarde, o que reduz o meu jejum a apenas quatro horas depois que acordo, e mais quatro antes de dormir.
QUARTA-FEIRA, 10 DE JULHO_Acordo às três da tarde e quebro meu jejum às sete da noite. Minha família toda se reúne para comer. No Ramadã, sempre começamos a refeição com uma sopa, que é mais leve para os estômagos vazios.
Quando terminamos já são oito e meia, e saio para encontrar alguns amigos noutro café. É um lugar que frequento desde menino, e é lá que me encontro com meus amigos do tempo do colégio, quase todos meio burgueses. Em sua maioria são filhos de empresários, alguns deles têm negócios próprios ou trabalham em multinacionais. Temos uma grande discussão sobre o que está acontecendo no país. Falo do Exército em tom de grande desconfiança. A maioria deles fica contra mim nesse ponto (o contrário do que acontece no El Nadwah, onde todo mundo tem opiniões parecidas com as minhas). Estão dizendo que as Forças Armadas são as protetoras do caminho para a democracia.
“Eu odeio como vocês falam de Exército e democracia na mesma frase com tanta naturalidade”, respondo. “O Exército é uma instituição que devia estar preocupada com a defesa e a guerra. Duvido que algum de vocês se lembre de alguma posição que o Exército tenha tomado contra qualquer dos ditadores que governaram este país nos últimos sessenta anos. Nada! E por quê? Porque todos eram oficiais do Exército, e hoje vocês vêm me dizer que é o Exército quem vai proteger o caminho para a democracia?”
“Não temos nenhuma outra opção”, responde um dos meus amigos.
“Vocês podem não ter nenhuma outra opção. Mas nós não. Milhares de pessoas ainda estão nas ruas, e podem voltar para as ruas…”
“E é com essa democracia que você sonha?”, ele me interrompe.
“A diferença entre as nossas visões da democracia é que as suas são preconcebidas. O Ocidente não se limitou a adotar uma palavra para descrever o que desejava. Eles passaram por toda uma experiência e, quando chegaram a um resultado, chamaram de democracia. Não tenho dúvida de que o Egito há de encontrar e definir uma democracia própria, certa e justa para ele. E este caminho, meu amigo, quem irá proteger é o povo, e não o Exército”, digo eu.
E ele responde: “E eu vou lhe ensinar como deve falar comigo depois de acabar com você numa partida de gamão.”
E realmente acaba comigo. Nunca perdi tão feio num jogo de gamão.
SEXTA-FEIRA, 12 DE JULHO_Durante o Ramadã, o país inteiro se reúne nas mesquitas ou nos cafés. Sou da parte que se reúne nos cafés. Depois da queda de Morsi, entramos num momento em que a única coisa que podemos fazer é esperar. O conflito entre o Exército e os islamitas ainda está em andamento. Qualquer iniciativa da nossa parte seria interpretada como um gesto de apoio aos islamitas ou aos militares. Por isso, precisamos tomar muito cuidado com o que fazemos. E como é que devemos agir? Observando os acontecimentos das mesas de um café. Então, como sempre, vou para o El Nadwah me encontrar com Ammar e os outros.
Vou com ele até seu apartamento para começar a trabalhar numa ideia para a criação de um estêncil. A palavra de ordem “O povo e o Exército estão de mãos dadas” é a primeira coisa que precisamos atacar, de maneira que começamos a visualizar o refrão como uma bunda oferecida para quem quiser enrabá-la; depois de mudar uma palavra e mais uma letra da palavra de ordem, seu sentido é trocado, de “mãos dadas” para “bunda oferecida”. O uso dessa ideia obscena é a única coisa que nos diferencia da Irmandade, pois os islamitas nunca usariam um vocabulário que incluísse “bunda” ou “enrabar”.
Ammar começa a desenhar e chegamos a um desenho grande que começamos a distribuir pelas redes sociais. O estêncil mostra uma bunda imensa usando capacete, olhando para o retrato de um helicóptero militar iluminado pelos pontos verdes do laser que o pessoal usa na praça para apontar para eles. Debaixo da bunda, usamos uma fonte caligráfica islâmica para escrever a frase “Uma bunda oferecida”.
Planejamos pichar o estêncil em todas as ruas, e saio com Ammar para a loja onde geralmente compramos as nossas tintas, mas descobrimos que está fechada desde o dia 30 de junho, o que adia todo o nosso projeto dos extintores de incêndio. Ammar me diz que o dono da loja é da Irmandade, o que faz todo o sentido, porque deve ter fechado a loja para acampar com o pessoal do grupo do outro lado do Cairo. Se esse sujeito soubesse o que pretendemos fazer com as tintas, viria abrir as portas só para nós.
DOMINGO, 14 DE JULHO_Vou ao café e entro numa discussão teológica, porque a derrubada da autocracia transforma a religião num assunto vital na nossa sociedade. Discutimos basicamente sobre a liberdade na religião. Sobre a liberdade de reinterpretar as escrituras do Corão. Sobre os desentendimentos em torno do que as escrituras não mencionam, como por exemplo a escolha ou a derrubada de um dirigente político. Há versículos que falam sobre a crença e sobre Deus. Mas, quando lidamos com os versículos que falam da lei, há muitos elementos que precisamos levar em conta, como por exemplo o momento em que os textos foram escritos e sua finalidade original. A meu ver, não somos forçados a enxergar com os olhos das escrituras. O impacto espiritual que elas têm sobre as pessoas pode ajudá-las a perceber as coisas, e reagir a elas com liberdade.
A conversa, como sempre, acaba tratando da grande mãe, do protetor, do salvador. Nosso amado Exército. Os militares liberaram o Sinai dos israelenses, o que ficou profundamente gravado no espírito do povo egípcio. E o serviço militar aqui é obrigatório, de maneira que todo mundo serviu no Exército (o único motivo pelo qual eu nunca servi é a minha dupla cidadania, pois tenho também passaporte americano). Basicamente, o Exército é formado pelo povo, pelos cidadãos comuns.
Mas é claro que isso nada tem a ver com os oficiais que tomam as decisões: esses não têm nada a ver com os cidadãos que servem no Exército. Ainda assim, de maneira geral, os egípcios gostam do Exército, que é motivo de orgulho nacional. Pense no presente como um momento, um belo momento. O Exército impediu que nos transformássemos no Irã. Mas foi o próprio povo, e não o Exército, quem saiu às ruas aos milhões e forçou os militares a reagir.
Meu ódio pelos comandantes militares não me permite admitir nenhum bem que eles tenham feito, embora eu festeje a queda da Irmandade Muçulmana. Esse ódio se deve a uma experiência pessoal: o Exército atacou a mim e aos meus amigos nas ruas, e a Irmandade fez o mesmo.
Volto para casa hoje pensando que começo a me acostumar com o jejum. O Ramadã é um período especial para mim. Trabalho menos e tenho tempo para ler e refletir. Também gosto porque une as pessoas, pois é uma época em que todo mundo tem o mesmo horário. Tudo fecha à mesma hora porque as pessoas precisam sair mais cedo do trabalho, às quatro da tarde, para quebrar o jejum às sete. Esta é a única época em que eu, meu irmão, minha irmã, meu pai e minha mãe comemos juntos todo dia à mesma hora. Hoje há passeatas em toda parte, são todas pacíficas, mas o tráfego está péssimo.
SEGUNDA-FEIRA, 15 DE JULHO_Os liberais sofrem de fundamentalismo liberal, os religiosos são ofuscados pelo fundamentalismo religioso, e tanto uns quanto outros estão cegos pelo desejo de vingança. Assisto à Al Jazeera e vejo que aderiram 100% à visão do lado islâmico; assisto aos canais locais e vejo que aderiram 100% à visão dos liberais. Em vez de incentivar um processo de reflexão, preferem criar uma narrativa demonstrando a estupidez da Irmandade Muçulmana.
Posso dizer que a luta do Egito destes últimos dias não é a minha luta. Acho que venho entendendo isso nos últimos cinco dias. Os figurões da imprensa da época de Mubarak costumavam atacar a revolução quando era contra Mubarak. Depois que Mubarak foi derrubado, desapareceram por algum tempo. E ressurgiram com a ascensão do Exército, que governou diretamente por um ano, antes de Morsi ganhar a eleição.
Com a vitória de Morsi, esses figurões começaram a tomar posição contra os islamitas, e agora reaparecem na condição de libertadores, de revolucionários de hoje. Os políticos e as elites estão travando suas batalhas pessoais, e não me parece que o interesse do Egito esteja em suas equações. Há gente morrendo nas ruas a cada dia, enquanto as elites se enfrentam pelo poder.
Às dez da manhã vou até o Centro para encontrar o produtor do documentário sobre as mulheres e a revolução. Nossa entrevistada criou uma ONG para investigar as violações contra jornalistas que cobrem a revolução. Hoje ela está investigando a história de um jornalista da Irmandade morto nos últimos confrontos com os militares. Ela explica como a mãe desse jornalista põe a culpa pelo sangue do filho tanto na Irmandade quanto no Exército. Acusa a Irmandade de mudar a cabeça do seu filho e mandá-lo a lugares perigosos. E acusa o Exército de ser cruel e brutal na maneira como trata os cidadãos.
Esses incidentes me levam a começar a ler Farag Foda. Farag foi um pensador liberal, assassinado por um grupo fundamentalista religioso em 1992 por causa de seu livro A Verdade Ausente. Um fato irônico é que, quando o juiz perguntou ao assassino por que o tinha matado, ele respondeu: “Por causa dos textos ateus que ele escrevia.”
O juiz indagou: “E você leu o que ele escrevia?”
“Não, nunca li”, respondeu ele.
E o juiz questionou: “Por quê?”
“Porque não sei ler nem escrever”, respondeu o matador.
E o dirigente da Irmandade Abu El’Ela Abdrabu, que deu a ordem para a morte de Farag, foi um dos líderes fundamentalistas que Morsi soltou da prisão.
Quando leio a introdução do livro, começo a chorar. Porque ele começa dizendo: O que digo aqui muitos irão negar, porque preferem ouvir só o que querem ouvir, porque sua alma só gosta do que já gosta, só adora o que já decidiu adorar, e é muito difícil que consiga entender qualquer outra coisa. E o pior que pode acontecer para os leitores deste livro é começarem a lê-lo a partir de um prejulgamento determinado pelo ódio.
A simples ideia de estar lendo as palavras de um homem que foi morto por causa delas me deixa muito emocionado. Eu queria que esse homem estivesse vivo para ver o povo do Egito lutando sua luta, revoltando-se contra os que o mataram, surpreendendo a ele e a mim.
Há dois anos, eu pensava que quando a revolução tivesse terminado eu teria muitas ideias e projetos para pôr em prática. Depois descobri que a revolução nunca termina. É como religião. Você acredita porque quer acreditar, porque revoluções não fazem sentido.
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