ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Pedras da História
Do explorador Burckhardt ao agente secreto Cereja, o mundo das descobertas de ocasião
Dorrit Harazim | Edição 15, Dezembro 2007
Nem todo mundo pode ostentar um currículo como o de Lawrence da Arábia, e, menos ainda, pretender ter o charme do personagem imortalizado nas telas por Peter O’Toole, com aquele kefiah esvoaçando na imensidão do deserto. Mas boa parte dos grandes exploradores europeus do século XIX teve a sua cota de momentos sublimes. Entre eles, o suíço Johann Lewis Burckhardt. Nascido na Basiléia e radicado em Londres, Burckhardt escolheu a Síria para test drive de uma vida de explorador. Ali, adquiriu fluência no idioma árabe, além de aprender uma dezena de dialetos regionais. Adotou a religião muçulmana, aposentou as roupas européias e enroscou a cabeça num turbante colossal. Uma copiosa barba e as vestes orientais completaram o novo figurino de Ibrahim, como Johann passou a se chamar. Como pretendia se aventurar por terras pouco amigáveis a viajantes europeus, Burckhardt se transmutou em árabe.
Passados três anos, sentiu-se pronto para a grande travessia até o Cairo, e em 1812 botou o pé na estrada. Ou melhor, no deserto. Partiu no lombo de um cavalo, sem bagagem e com pouco dinheiro. Meses depois, com a roupa do corpo em frangalhos, trocou o cavalo por um camelo e prosseguiu a longa marcha, muitas vezes a pé. Foi ao cruzar a imensidão do Vale de Wadi Musa, na antiga Transjordânia, que Burckhardt cedeu à tentação de fazer um desvio e procurar a “cidade perdida” de Petra, que já por um milênio permanecia escondida das vistas de europeus e por isso exercia fascínio sobre tantos exploradores. Para despistar os beduínos, que começavam a suspeitar de sua curiosidade, alegou que procurava um local apropriado para sacrificar uma cabra em homenagem a Aarão.
Foi por meio desse estratagema que Burckhardt entrou para a história como o primeiro europeu dos tempos modernos a ser fulminado pela visão de Petra. Temendo ser desmascarado como “infiel” pelo guia beduíno que o acompanhava, o explorador não anotou as impressões que o majestoso cenário lhe causou. Apenas rabiscou uns cálculos e desenhos do que viu. Foi o bastante para abrir caminho para a segunda leva de viajantes, cujas narrativas registram o alumbramento geral: “Jamais esquecerei a beleza selvagem deste lugar, onde o silêncio da morte é incomparável…”, “Hoje foi um dos dias mais decisivos da minha vida… As massas de rocha e pedra que emolduram a cidade, a beleza incomum destas ruínas… Sou incapaz de traduzir o que sinto e vejo”.
Ainda hoje, Petra tem a capacidade de perturbar. Seu efeito acachapante se dá por etapas. Primeiro, o viajante adentra um tortuoso desfiladeiro de quase 1 quilômetro de extensão, espremido por massas cambiantes de pedras monumentais. Depois, sem aviso prévio, entre uma curva e outra de rochedo, ele se vê frente a frente com o soberbo portal rosado conhecido como “O Tesouro”. A partir daí, é enveredar por um horizonte onde se fundem uma cidade perdida e uma natureza extrema. Ali não se vêem forasteiros com iPods, nem se ouvem risos soltos a ecoar pelos penhascos. Em Petra, o êxtase é silencioso.
Johann Lewis Burckhardt, que descortinou tudo isso 200 anos atrás, morreu de disenteria ao chegar ao Cairo. Sofreu as penas do inferno, mas entrou para a história. Já sua contrapartida dos tempos modernos – o jovem israelense Davidale Beeri, codinome “Cereja” (duvdavan, em hebraico) – teve menos sorte. Dificilmente computará louros, apesar de ter alterado o curso da história, da arqueologia e das descobertas milenares de Jerusalém. Como o seu feito transcorreu por acaso, quase à sua revelia e sem expertise, Cereja precisa continuar nas sombras.
Foi nos anos 90 que o jovem agente Cereja, do Serviço de Inteligência de Israel, recebeu por missão infiltrar-se entre a marginália árabe que costumava se reunir num imenso lixão da zona sul de Jerusalém. A cidade havia sido reunificada à força, em 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, e uma erupção do setor árabe era preocupação constante para as forças vencedoras. No lixão, aos pés da Cidade Velha reconquistada, os serviços de inteligência israelenses imaginavam que poderia estar brotando um embrião de marginalidade terrorista. Era necessário conhecer suas intenções.
Davidale Beeri, como Burckhardt dois séculos antes dele, transmutou-se para se lançar a campo. Nome, identidade, indumentária, modos, língua, visual, tudo foi alterado com êxito. O agente passava os dias e as noites no lixão, infiltrado, e chegou a montar moradia numa das cavernas do entorno. Com pouco ou nada para fazer, começou a garimpar a área onde acampara, sempre tomando cuidado para não chamar atenção. Estudioso amador da Bíblia, acreditava que a lendária cidade de David, na Jerusalém de 3 mil anos a.C., poderia estar soterrada naquelas bandas. E foi cavucando que Cereja desobstruiu, por acaso, uma abertura profunda, algo como um poço desproporcionalmente grande. Associou a descoberta a um trecho bíblico que se refere ao período da invasão da cidade pelos babilônios – e foi contaminado pela coceira do explorador.
Para Cereja, a boca do poço que descobrira apontava para a provável descoberta do que fora a cidade bíblica de David. “Então tomaram a Jeremias, e o lançaram na cisterna de Malquias, filho do rei, que estava no átrio da guarda; e desceram Jeremias com cordas; mas na cisterna não havia água, senão lama, e atolou-se Jeremias na lama”, diz o texto de Jeremias 38:6. O estado de enlevamento do explorador de ocasião teve de permanecer camuflado para não comprometer sua condição de agente secreto. Apenas quando um dos grandes nomes da arqueologia israelense, Eilat Mazar, deu sua chancela às suspeitas de Cereja é que as escavações propriamente ditas, financiadas por banqueiros americanos, se iniciaram.
E foi dois anos atrás que a arqueóloga anunciou poder mostrar as ruínas do mítico palácio do rei David e os vestígios inequívocos da cidade por ele fundada. O anúncio sacudiu os alicerces da arqueologia bíblica mundial, eternamente dividida entre “maximalistas” e “minimalistas”. Os primeiros exercitam o ofício com a Bíblia numa mão e ferramentas de escavação na outra; os segundos mal aceitam a noção de David como rei e consideram que ele nunca passou de um mito. Hoje, a monumental área de escavações da Cidade de Davi, controlada pela Fundação Yir David, tornou-se um dos sítios arqueológicos mais procurados por quem visita Jerusalém.
No lugar do lixão onde operava o agente Cereja, o viajante é conduzido por camadas superpostas de ruínas, galerias, aquedutos, fragmentos de paredes de ângulos impossíveis, pedaços de evidências. Fica-se com uma extraordinária sensação de descer, fisicamente, às entranhas da história da humanidade.
Para o israelense Davidale Beeri, a vida mudou muito. Com o andar das escavações e a expulsão da turma árabe do lixão, seu disfarce foi exposto. Abandonou a casa-caverna depois de sofrer um atentado de coquetel molotov e hoje, já na reserva, trabalha na própria Fundação Yir David que ajudou a erguer, sem querer. Mas dificilmente entrará para a história e seu nome talvez jamais venha a ser citado nos anais da ciência arqueológica.
Conta apenas com uma legião de admiradores de primeira hora, entre os quais está uma brasileira, Deborah Srour. Como tantos arabescos do Oriente Médio, Deborah é uma convergência de interesses e vidas múltiplas. Aos 45 anos de idade, fala nove línguas, é advogada formada pela Universidade de São Paulo e atua simultaneamente em três praças – Nova York, Jerusalém e São Paulo – destrinchando fraudes bancárias e lavagem de dinheiro. Além do que, é ex-campeã mundial de tiro, com 117 troféus em casa e uma medalha de ouro para o Brasil. Deborah dedica alguns meses do ano a comer poeira em Yir David, como voluntária nos trabalhos de escavação, em que perfaz o duro percurso de visitação turística do sítio sem despender uma única gota de suor, em pleno verão de 40 graus à sombra.
Como pouco em sua biografia pode ser qualificado de banal, a brasileira é casada com um coronel de artilharia de tanques nascido no Brasil, que aos 16 anos venceu o concurso mundial de conhecimentos da Bíblia em Israel. O pai, por sua vez, é o empresário Alfredo Srour, dono do Grupo Franco-Suissa (sem cedilha mesmo), maior importador de vinhos do país, além de cantor lírico e historiador nas horas vagas. Poucos anos atrás, Deborah convidou a família a visitar pela primeira vez as escavações em Yir David. Alfredo Srour, impactado pela visão do que teria sido o imemorial poço de Jeremias, não teve dúvidas – pôs-se a entoar Jerusalém de Ouro, a canção que alguns judeus pensavam transformar em hino nacional depois da Guerra dos Seis Dias. Pouco antes, um grupo de visitantes americanos da Igreja Batista, extasiados diante do mesmo cenário, reagiu erguendo os braços e entoando Praise the Lord.
Ali, a seu modo, cada um repete a essência do que experimentaram os exploradores do século XIX diante de Petra: “Sou incapaz de traduzir o que sinto”.
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