ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Pequena Miss Sunshine
A dor de não ser Cinderela
Sara Stopazzolli | Edição 15, Dezembro 2007
Depois de chorar, chorar e chorar, Vanessa abriu a bolsa de pelúcia em forma de cachorrinho, pegou o gloss dourado e passou nos lábios. Apoiou o rosto triste na janela do carro e, acariciando os cristais bordados do vestido azul de armação, disse aos tios que permaneceria assim – triste, triste – ao longo das cinco horas de viagem entre Curitiba e São Paulo. Não queria trocar de roupa, não queria comer, não queria nada. “Foi tudo, tudo para nada.” Os ensaios com Sueli, a professora de dança, que a ensinou a imitar Madonna em Like a Virgin; o trabalhão danado para encontrar os vestidos certos; as quase vinte horas de estrada de Quirinópolis, no interior de Goiás, até Curitiba; em suma: tudo, tudo para não acabar nem entre as finalistas. E ainda ser obrigada a presenciar a vitória de Amanda, a menina loira de olhos azuis que dublou Planeta Água, sucesso de Sandy e Junior, na pele de uma exibida borboleta saltitante. Experiente, a lepidóptera buliçosa não se furtou em lançar sorrisos para lá de forçados na direção dos jurados. A morena quase jambo Vanessa, que do alto dos seus 10 anos havia feito uma excelente Madonna, tinha motivos de sobra para chorar.
A maratona em busca do título de “Cinderela 2008” começou às nove da manhã de um domingo, na Sociedade Thalia, tradicional clube no centro de Curitiba. Primeiro, ensaios na passarela; depois, cabelos e maquiagens. Amanda é a primeira da fila de Anderson, que trabalha há dez anos nos concursos e diz que a-do-ra maquiar crianças. A menina é sua conterrânea e pupila dileta. Foi preciso dar um tempo para que ela perdesse aquela vermelhidão que tinge as bochechas de mocinhas sapecas que brincam de corre-corre pelos bastidores. “Não sei por que ela fez isso hoje, é sempre tão comportada”, lamenta-se a avó. Depois de lhe aplicar emplastros de sombra azul e rímel preto, Anderson admira a obra: “Olha, já perdeu a cara de criança”. Segundos mais tarde, tenta arrumar a frase: “Não é para ser um mulherão, isso só depois dos 14. É só para dar um glamour sem perder a inocência”. Ele puxa e repuxa os finos cabelos de Amanda, desfia a franja para armar um topete e fixa tudo com um poderoso spray, em doses que enrijeceriam até algodão-doce.
Qualquer semelhança com Pequena Miss Sunshine pode ser mera coincidência – aparentemente, ali ninguém nem ouviu falar do filme. Danilo D’Avila, um senhor astuto de 66 anos, trinta só no métier de misses, produz há dez anos esse tipo de concurso, cópia dos que acontecem aos montes nos Estados Unidos. Hoje tem um portfólio recheado deles: Miss Brasil (existem outras versões, cada qual reivindicando o privilégio de se intitular “o concurso oficial de Miss Brasil”; o de D’Avila, que acontece desde 1994, em Brasília, não é o que manda representante para o Miss Universo, mas conta com o apoio do Congresso e dos maiôs Catalina), Miss Paraná, Miss Estado de São Paulo, Miss Curitiba, Miss Araucária, Princesinha e Rainha das Praias do Paraná, Reina de Las Playas de Las Américas, Miss BrasilTur, Miss Petite Brasil (concurso para moças de até 1,68 metro), Cinderela Brasil, Manequim Infantil, International Queen of Beauty, Miss Brasil Infantil e Miss Nations & Little Miss Nations.
Além de presidir a Danilo D’Avila Eventos de Beleza, ele também é mestre-de-cerimônias e marketeiro de primeira. No início do ano, para dar uma sacudida no combalido Miss Brasil, anunciou que o deputado cassado Roberto Jefferson seria jurado e cantaria três músicas do seu repertório lírico no evento. Jefferson deu o bolo e nem se justificou. Chato, chato. Mas não desastroso, já que o verdadeiro chamariz de D’Avila tem pouco a ver com políticos e celebridades. O que interessa são as viagens pelo mundo.
Ele mantém convênio com cerca de sessenta concursos de beleza internacionais e faz o que pode para associar suas misses aos países onde estiveram ou estarão. Foi assim que apresentou as juradas do Cinderela 2008. Uma acabava de voltar de Barbados, outra irá à China em janeiro. Para atiçar o sonho das meninas que se preparam para entrar na passarela, cada miss viajante é instada a dar suas impressões sobre as culturas e paisagens exóticas que viu. Não se percebe muita diferença entre quem foi à Turquia, à Malásia ou à República Tcheca: “É maravilhoso levar um pouco da nossa cultura para esses países”, declara uma beldade turística.
Amanda, que levou para casa seu 22º título em concursos de beleza – ela compete desde os 4 anos -, está ansiosa para “representar o Brasil” em 2008 na Bulgária. Será sua primeira viagem internacional. “O futuro vai ser grande. Depois que sai do Brasil, a vida muda!”, declara a avó, enquanto a neta devora um sanduíche de mortadela comprado no supermercado da esquina. A realidade por enquanto é outra. Até agora, o dinheiro só saiu. E não foi pouco. Participar de um evento como esse não custa menos de mil reais. A inscrição oscila entre 400 e 600 reais. Em nenhum dos 22 títulos Amanda ganhou um mísero centavo. É só a faixa, um ou outro presentinho e o “reconhecimento” em Ponta Grossa, cidade onde mora. Para ir à Bulgária, terá de correr atrás de patrocínio. Amanda tem 9 anos e perdeu a mãe há oito. A avó, que assumiu a criação da menina, ganha um salário mínimo de aposentadoria e confecciona chinelos “de andar em casa” para bancar a saga da neta pelos concursos de beleza. Só o vestido azul de armação custou 500 reais de matéria-prima e trinta dias de trabalho duro.
Às três da tarde, hora marcada para o início do Cinderela, cerca de oitenta familiares se sentam em mesas redondas dispostas sob um imenso e grave castiçal de cristal de mais de 5 metros. Sobe o som. É Lulu Santos (a música, não o próprio): “Eu não pedi pra nascer,/ eu não nasci pra perder,/ nem vou sobrar de vítima das circunstâncias”. Danilo D’Avila sobe ao palco. Anuncia as candidatas das quatro categorias: mini, infantil, teen e cinderela. Vez por outra, pede “Aplausos!” ou, mais elaborado, “Aplausos para a nossa bela candidata de Goiás!” Torcida, gritinhos. Depois do desfile de gala, as meninas apresentam seus talentos, um vasto leque que contempla a dança do ventre, dublagens várias e poemas de Cecília Meireles (“Alheias e nossas as palavras voam/ bando de borboletas multicolores, as palavras voam.”). Danilo agradece o apoio da água mineral Requinte e da prefeitura de Curitiba. Os jurados – um colunista social curitibano e uma infinidade de misses – refletem, confabulam, sopesam em voz baixa, misteriosa. Rabiscam notas em pedaços de papel e entregam o veredicto à produção.
São anunciadas as vencedoras. Terceiros e segundos lugares recebem troféus de acrílico em forma de sapatinho de cristal. Aos primeiros lugares de cada categoria, a tão ansiada faixa. Hora de gritos, gritinhos, sorrisos e lágrimas. Vanessa, não ouvindo seu nome, voltou para o camarim, arrasada. Era dor demais ver as novas cinderelas receberem cumprimentos e elogios de misses consagradas. A bela candidata de Goiás não quis mais saber. Correu para o carro.
E, não fosse a insistência da tia para que trocasse de roupa, teria ficado eternamente dentro do vestido azul ensopado de lágrimas.