A violência no filme não é visível. Para o expectador, basta ver o rosto de Paulo ILUSTRAÇÃO: RODRIGO LEÃO_ESTÚDIO ONZE
Pequenas expectativas
Um filme sem grandes atrativos comerciais, Praça Saens Peña deve servir de alerta, por suas virtudes incomuns, para as distorções do cinema brasileiro
Eduardo Escorel | Edição 39, Dezembro 2009
Ser simples é uma das virtudes de Praça Saens Peña, dirigido por Vinícius Reis[1]. O título indica o ponto de convergência do bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde a ação transcorre, entre fevereiro e junho de 2003, início do primeiro governo Lula, período em que os Estados Unidos invadiram o Iraque e o próprio diretor escreveu o roteiro. Concebido para ter a atualidade como pano de fundo, ao ser lançado seis anos depois de roteirizado, virou filme de época.
Documentarista experiente, sonhando fazer um filme de ficção, Vinícius Reis criou um personagem central que é, em certa medida, seu alter-ego. Paulo (Chico Diaz), professor secundário apaixonado por História, é convidado para escrever um livro sobre a Tijuca, antigo projeto que sempre sonhara realizar. Queria também “ver um homem do povão no governo, lá em Brasília. Agora, o Lula não é presidente?”, pergunta Teresa (Maria Padilha), sua mulher. Quando estava grávida, ela sonhava ter uma menina linda. Bel (Isabela Meireles), filha adolescente do casal, fortalece a convicção materna de que “um dia, as coisas podem acontecer”. Ela mesma, de início, tem ambições modestas. Trabalha em um café e quer apenas comprar um computador novo e instalar banda larga. Apostando no sucesso do marido como escritor, suas aspirações mudam de patamar e passa a sonhar com um apartamento para não viver de aluguel. Paulo, por sua vez, consciente de não estar escrevendo um livro de autoajuda, pergunta se ela “sonhou que vai chover dinheiro”. Temperada de bom senso, a ironia do marido exaspera Teresa. Irritada, responde, sem convicção, que cansou “de vocês, cansei, cansei. Vou procurar outra família”. Prenúncio da crise que levará o casal à ruptura.
Vinícius Reis sabia não estar fazendo um filme de autoajuda. Trabalhando com meios modestos, imprimiu marca pessoal a essa história meio anacrônica de uma família comum, lidando com pequenas expectativas e frustrações. Ao pesquisar para seu livro, Paulo encontra nos pintores e paisagistas franceses do século XIX, moradores da Tijuca, inspiração para escrever sem atender à “demanda do mercado editorial”. Vinícius, do mesmo modo, faz um filme sem grandes atrativos comerciais, mas que deve servir de alerta, por suas virtudes incomuns, para as distorções da atividade cinematográfica no Brasil. Burocratizado, perdulário e subordinado à pretensa demanda do mercado, o modelo de produção dominante impõe condições adversas a um projeto com as qualidades de Praça Saens Peña. Tendo levado quatro anos para ser realizado, está sendo lançado em um único cinema, no Rio, dois anos depois de concluído, estando ainda para ser confirmada a exibição em uma segunda sala, na própria Tijuca.
Coerente com o propósito de ir contra a corrente, Praça Saens Peña não tem cenas de violência explícita. Fiel à experiência de parte dos moradores da cidade, a violência não é visível, sendo integrada ao filme através da trilha sonora. Ao ver um apartamento, Teresa pergunta se “tem problema de bala perdida”. Ao ouvir tiros na comunidade do Borel, Paulo recebe conselho de ficar tranquilo: “Tão experimentando armas, só. Não é invasão nenhuma, não.”
De madrugada, na barraquinha de cachorro-quente da praça onde mora, Paulo ouve um freguês contar que o filho foi morto por um traficante, com um tiro na cabeça. A dramaticidade do relato não é enfatizada. Macedo (Guti Fraga) é visto de costas enquanto conta o que aconteceu. Para o espectador, basta ver o rosto de Paulo.
Nesse encontro casual, Paulo acredita ter descoberto “a cara que o livro vai ter” – a história do bairro contada “do ponto de vista dos seus moradores”, ideia recebida com incredulidade por sua filha e rejeitada pelo editor. Ele recusa a inclusão de “personagens” no livro que não é “um romance”. Paulo contra-argumenta que não está “inventando nada”, nem escrevendo ficção.
Quem faz ficção é Vinícius Reis, ao escrever um roteiro sobre moradores da Tijuca em que o personagem central escreve livro sobre o mesmo tema. Há, dessa maneira, uma circularidade entre Praça Saens Peña e Paulo que revela uma estrutura narrativa mais elaborada do que parecia à primeira vista.
Transitando com habilidade entre uma abordagem documental e formas narrativas próprias da ficção, Praça Saens Peña, além de muito bem fotografado, tem outras qualidades na informalidade da decupagem e no uso da câmera na mão, operada com destreza pelo próprio diretor de fotografia, Fabrício Tadeu.
A primeira imagem do filme é um plano geral, fixo, de um cruzamento movimentado. Seguem-se um lago, um banco, a fachada de um prédio, árvores e o chafariz de uma praça. São imagens documentais que delimitam o espaço da ação. Uma legenda superposta circunscreve o tempo, informando o mês e o ano em que o filme começa. No plano seguinte, introduzindo a encenação, a câmera ganha agilidade e segue Paulo, caminhando pelo corredor do colégio. Ao longo do filme, outros planos documentais, sempre fixos e bem compostos, marcarão transições de tempo da narrativa elíptica que progride sem dar conta do que ocorreu entre a última sequência de um mês e a primeira do seguinte. A ficção é sempre gravada em estilo documental, com a câmera móvel comandada pela movimentação dos atores, perseguindo, em panorâmicas rápidas, o foco de interesse da ação. O plano volta a ser fixo na cena em que, conjugando de maneira explícita ficção e documentário, Paulo entrevista Aldir Blanc. Em seu depoimento, ele diz que a letra do samba de quadra “não é pra te conduzir a um fecho de ouro, não. Cada verso é um verso e cada um tem que ter seu próprio peso”. Lição que incorporou, transcorrendo, até o fim, em tom menor.
Acentuado de início, o antagonismo da filha adolescente em relação ao pai se transforma em cumplicidade quando Bel lê, no computador compartilhado, trecho do livro em que ele descreve o assassinato do filho do Macedo e sua saída forçada do Borel, para onde só voltou depois que uma nova facção de traficantes passou a dominar o morro. A integridade de Paulo, ao escrever segundo suas convicções, conquista a filha.
Tendo relação agressiva com a mãe, Bel fica mais hostil quando percebe que Teresa tem um amante. Só na última sequência, através da narração, Bel diz que a mãe poderá sempre contar com ela e ficamos sabendo que os pais se reconciliaram. Mesmo beirando a pieguice, esse final feliz escapa da banalidade ao não ser mostrado. Enquanto ouvimos a narração final de Bel, o que vemos são planos noturnos do trânsito nas ruas movimentadas da Tijuca.
Isabela Meireles, fazendo Bel, é uma revelação, capaz de criar com notável sutileza a adolescente em conflito com os pais. Guti Fraga tem presença expressiva, mesmo em um pequeno papel. Chico Diaz e Maria Padilha fazem muito bem personagens diferentes dos estereótipos aos quais costumam ser condenados.
Praça Saens Peña se filia à ilustre tradição do cinema brasileiro a que pertencem O Grande Momento, dirigido por Roberto Santos, em 1958, e Eles Não Usam Black-tie, adaptado da peça de Gianfrancesco Guarnieri e dirigido por Leon Hirszman, em 1981. É uma estreia auspiciosa na ficção que deveria ter oportunidade melhor de ser vista.
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[1] Vinícius foi assistente de direção de uma série de vídeos didáticos que dirigi, em 1995.
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