Continuo sem entender como é que cinco pessoas – agora quatro – que supostamente têm uma vida cheia de coisas concretas para fazer aceitaram vir aqui. Para procurar o quê? Por algum momento minhas próprias razões são um mistério para mim ILUSTRAÇÃO: VÂNIA MIGNONE_2019
Perdida no espaço
Memórias de uma residência literária no Brasil
Margarita García Robayo | Edição 149, Fevereiro 2019
Tradução de Sérgio Molina e Rubia Goldoni
Tenho tido sonhos que mimetizam a sensação de chegar aos trópicos, mas quando acordo tudo se dissipa e só resta um emaranhado de palavras imprecisas. O primeiro choque é mais ou menos esse: uma língua gigante me lambe o rosto. Depois o cabelo grudado na cabeça, o cheiro de suor e fritura e de mato recém-cortado que entra pelo nariz, mas se instala na garganta, lá onde o gosto ativa a memória e você se entrega à paisagem como a um ventre acolhedor.
No aeroporto, um homem ergue um cartaz com meu nome: o segundo sobrenome escrito errado, como sempre. Aceno, ele sorri e eu sorrio de volta, mas não muito, com receio de que ele interprete a amabilidade como uma condição necessária entre nós. Entro no carro gelado, o contraste com a temperatura exterior é violentíssimo e me pergunto como improvisar um cachecol, já que só tenho a roupa do corpo e uns lenços de papel na bolsa. Vou me resfriar, meu ponto fraco é a garganta, já me aconteceu três vezes em menos de um ano: em Santiago, México, Lima. Viagens a feiras literárias, todas elas, ou seja, viagens para falar do que faço, e a reação de meu corpo foi me deixar sem voz.
Partimos rumo a outra cidade, a viagem deve durar umas duas horas, o homem explica, sorrindo, e penso que alguém deve tê-lo convencido de que isso – sorrir – faz parte do trabalho. Amaldiçoo essa pessoa e depois me compadeço, porque quem diz esse tipo de coisa acaba comandando vastos exércitos de homenzinhos servis que cedo ou tarde vão descobrir a opressão e descarregar sua fúria contida contra o chefe – que também é vítima da opressão em outra escala, e assim por diante. Me vem à cabeça a imagem de um sujeito decente mas obtuso sendo linchado por seu séquito em fúria: o crânio arrebentado contra o chão cheio de graxa de uma garagem. Tudo por ter forçado a cordialidade, tudo por ter arruinado a espontaneidade de um silêncio respeitoso entre desconhecidos.
Evito olhar para o motorista e saco meu celular. Pela janela em movimento filmo um enorme bambuzal. Tenho a impressão de ver um cavalo correndo em meio a todo aquele verde, mas passamos tão rápido que talvez tenha sido imaginação minha, porque um cavalo correndo – ou, melhor ainda, um veado – é uma imagem que tende a se associar à liberdade, e quase todos somos seduzidos por essa mentira. Os animais que correm velozes na mata não fazem isso para celebrar o fato de não terem dono, mas para fugir de algum perigo. Do mesmo modo, uma pessoa que se mostra como um ser livre e ousado pode esconder o terror de quem escapa de um suplício, de um cativeiro, de uma vida indesejada, de um predador.
Abro os olhos quando estamos prestes a entrar na cidade. Na beira da estrada vejo burros e mulas puxando carroças, bois pastando. Estou com dor de garganta, peço ao motorista que, por favor, desligue o ar, mas ele não me entende porque não falo sua língua nem ele a minha. A ideia de que o castelhano e o português são dois idiomas não apenas vizinhos, mas irmãos, tem sido muito perniciosa: por acreditar nisso já me vi enredada em conversas de surdos, sentindo o entendimento orbitar sem me atingir. Depois de mais algumas tentativas, finalmente consigo que ele desligue o ar, mas já entramos no vilarejo (só então descubro que não se trata de uma cidade, como dizia o e-mail, e começo a me preocupar com a água potável e o horário das farmácias).
Olho pelo retrovisor: atrás de nós, uma esteira de pó amarelo. Através desse filtro vintage vejo bolas de futebol traçando amplas curvas no ar, cachorros vira-latas apontando suas escápulas pontudas para o céu e meninas amadurecendo seu jeito de andar atrevido. Aqui as mulheres andam com as carnes à mostra, distribuindo risadas e cumprimentos, descobertas. É o calor. Tudo o que fica sobre o corpo incomoda, inclusive – ou sobretudo – a pele. Nos trópicos, a pele é sempre um problema: amolece, treme, umedece, mancha, encarde. Você pode andar sem a roupa, mas, quanto à pele, você só pode soltá-la, desistir da luta da rigidez contra o relaxamento. Nos trópicos, mais do que em nenhum outro lugar, um corpo tenso é um corpo incômodo.
Ao me despedir do motorista, aí, sim, sorrio. Sou quase efusiva, aperto sua mão e digo “obrigada” em sua língua. É um homem moreno, jovem mas envelhecido, provavelmente se barbeou de manhã. É quase certo que nunca volte a vê-lo, por isso posso derramar gestos excessivos sem medo de isso alterar sua conduta. Deve ser por essa razão – penso enquanto arrasto minha mala para o hotel – que os amantes que se encontram numa viagem dizem desejar-se com especial intensidade. Porque podem se oferecer sem consequências, sem esperar transformações: te dou tudo o que tenho, mostro exatamente o que sou porque não temos futuro. Que bela ficção, nunca aconteceu comigo.
Não tenho wi-fi no quarto do hotel porque o prédio já foi um convento e as paredes são grossas justamente para favorecer o recolhimento. Encosto uma orelha à parede: imagino escutar o gemido da onda estrangulada entre tijolos centenários. Imagino que esse gemido parece uma frequência de rádio com interferência, que por sua vez parece um papel celofane sendo amassado. Talvez seja até bom eu ficar incomunicável parte do dia, penso, mas em seguida me desminto. Mais tarde vou descer à recepção, encarar uma nova tentativa de ser compreendida enquanto a recepcionista vai me fitar com olhos infinitamente inertes, sem fazer o menor esforço para me entender ou dar alguma indicação com gestos mudos, mesmo que eu os compreenda tanto quanto o bater de asas de um pombo. Em sua cabeça, calculo, a interferência é a minha voz.
Então me instalo no corredor do quarto, que é muito grande e tem o pé-direito altíssimo e aberturas retangulares que dão para um pátio de árvores verdes, brilhantes de sol. Por aqui o wi-fi voa, e de noite, dizem, também os morcegos. Foi o motorista que me falou, no momento em que me deixou com a mala e esta tosse que vai entrando em cena. O pátio fica no centro do convento, e como os corredores desembocam em seus vértices, não se pode passar de uma ala à outra sem atravessá-lo. Se uma freira tivesse alguma emergência à noite, penso, só lhe restava sair para o corredor até encontrar uma escada para o pátio e, uma vez lá, gritar.
Antes disso dei uma volta pelo vilarejo, que é pequeno e populoso. Muitas casas coloridas sobre morros íngremes. Algumas ladeiras têm escadas, outras, asfalto, outras, terra. Quando cansei, parei no topo de uma rua, o lugar mais alto que pude avistar ao redor. De lá imaginei uma chuva violenta arrasando tudo numa grande cachoeira espumante. Mas o riso das pessoas que passavam acabou com a gravidade da minha visão apocalíptica. Depois fotografei as mangueiras, todas elas prenhes de frutos obesos a ponto de cair e se esparramar nas calçadas. Vi outros cachorros magros soltos e crianças também soltas nos carros sem cadeirinha nem cinto, com os pais distraídos ao volante, embalados por uma música barulhenta. Depois me sentei num bar em frente ao rio e pedi uma água e espantei as moscas que sobrevoavam restos de comida sobre a toalha de plástico. E me distraí olhando um bebê que chorava por manha, sujeira ou fome, encaixado na curva entre a cintura e o quadril da mãe.
Reconheço a paisagem porque cresci num lugar tropical, de onde fugi assim que pude, e o reencontro com rastros daquela terra, ainda que seja em outra, me leva a perguntar o que foi feito da pessoa que eu era lá, daquela que comecei a ser e se truncou na fuga, ou se na verdade nunca fui aquela que recordo e essa estranheza sempre tenha me acompanhado.
Do corredor do convento tento ligar para casa, quero ver meus filhos, de repente sou assaltada por uma suspeita angustiante: que a cada minuto transcorrido corresponde um trecho que me distancia mais e mais deles. Passaram-se umas sete, oito horas desde que saí de madrugada e os deixei dormindo; o táxi já me esperava na porta quando entrei no quarto deles e os observei para guardar bem aquela imagem. Dediquei alguns segundos a cada um, a mim me basta um relance, tantas vezes os examinei, pedacinho por pedacinho – eles estão como que esculpidos nos meus olhos, e mesmo que ficasse cega eles continuariam lá. Os filhos, nesse sentido, são como os tormentos: depois que nascem, nunca mais nos deixam. Eu me pergunto a quantos quilômetros equivalem essas oito horas. Certas coisas eu sei com certeza: viajar é se desorientar. Ficar é se orientar. Se orientar significa olhar em volta e se reconhecer. Como se a pessoa fosse capaz de ver a si mesma de fora (de uma estrela, por exemplo) através de um telescópio e dizer: estou lá, essa sou eu. Agora, na mira do meu telescópio há um espaço vazio. Quem me olha agora que estou aqui, deslocada? Ninguém.
Não consigo me comunicar. Mas recebo mensagens de áudio e vídeos que mostram que está tudo bem; que nada, a não ser eu mesma, mudou de lugar.
À noite conheço os outros convidados da residência artística – somos cinco ao todo, mas um deles ainda não chegou. Por ora, somos eu, uma poeta local, uma acadêmica americana e um rapaz inglês de barba cerrada. Os anfitriões nos alocaram em duas alas do convento – uma terceira está interditada e a outra serve de depósito. Caí na mesma ala da americana; ela se chama X, é negra e grisalha e doutora em black feminism. Vou com a cara dela porque ela não faz a menor questão de chamar a atenção. Parece se esgueirar por aí e não deixa de sorrir quando alguém tenta se aproximar, e então logo volta a seus afazeres, que em geral consistem em observar uns quadros da via-crúcis que decoram a arcada ou ler o folheto das atividades do dia como se fosse um documento importantíssimo. Nós nos encontramos na hora do almoço; eu ainda não sabia quem ela era, e ela obviamente também não sabia quem eu era, mas conversamos em inglês, o que foi um alívio. Lembrei de um tempo em que viajava com frequência pela América Latina, a trabalho, e muitas vezes me sentia perdida em cidades onde supostamente devia me sentir à vontade; chegando ao hotel, ligava a tevê e, ao dar de cara com James Lipton, do Inside the Actors Studio, alguma coisa se assentava em meu cérebro. O velho Lipton, cabelo tingido e expressão embalsamada, me era mais familiar que um colega de Santa Cruz de la Sierra. Pensava nisso enquanto conversava com X sobre suas impressões do lugar: que a língua inglesa nos permite uma cumplicidade estapafúrdia baseada mais no consumo do que na experiência. Fui criada em espanhol castiço, mas minha educação de fundo – filmes, séries, músicas e slogans estampados nas camisetas – foi em inglês. Por isso hoje posso me iludir com a ideia de que X e eu poderíamos ser “amigas” durante esses dias. Ela me diz que é mais velha, que está em outro momento da vida; mas aqui isso não importa, compartilhamos a perplexidade de ter aterrissado num lugar estranho, e eu já sei – ela também deve saber – que o impulso de se unir diante da diferença é um combustível potente.
Assim, quando à noite saímos para um passeio ao luar com o coordenador e o grupo, já nos sentimos ligadas por aquela aura que distingue os perdidos, que é a aura da incompreensão. Mas devemos ficar alertas, penso, e me pergunto se deveria dizer isso a X, porque a incompreensão é enganosa e não costuma ser compartilhada do mesmo modo como compartilhamos outras categorias. Desta vez acho muito bom que o ponto de partida entre minha incompreensão e a de X seja tão literal: nenhuma das duas fala a língua do lugar.
De manhã consigo ligar para casa. Vejo o rosto dos meus filhos, escuto suas vozes animadas me cumprimentando, mas eles logo se dispersam porque Gaby e Alex estão visitando o parque Legoland Windsor na tevê. Deveria me bastar vê-los bem, contentes e de banho tomado, mas é um pouco frustrante que prestem tão pouca atenção em mim; comento isso com o pai deles, que também não me escuta porque está preparando o café da manhã, e eu aqui presa na tela do notebook, que está sobre a mesinha de centro da nossa sala, apontando para a poltrona como plano único. Só vejo os joelhos do mais velho e as plantas dos pés da caçula. Devo estar rodeada de brinquedos, aquarelas e desenhos feitos momentos antes.
A distância continua a me confundir.
Desde que tive meus filhos, é a primeira vez que encaro a perspectiva de tantas noites longe de casa. Em outras ocasiões já viajei para mais longe, muito mais longe, mas agora, insisto, o tempo passou a ser uma medida espacial.
Para calcular o tempo que um corpo leva para percorrer certa distância, sabendo a velocidade média em que ele se desloca, deve-se aplicar a fórmula: t = d/v. Sendo “v” a velocidade média. Meu corpo tende a se deslocar lentamente, portanto a fórmula será afetada em todas suas variáveis. No lapso que demoro para chegar até aqui, o tempo irá fermentando e a distância irá se expandindo. Agora parece que cheguei, mas poderia não ter chegado. Quando viajo penso em mim mesma como um ser desdobrado, como se na verdade estivesse lá, preparando as torradas, e essa versão de mim fosse uma extensão do meu corpo que continua em outro lugar, ou que vem vindo, porém mais devagar. Essa sensação é tão forte que às vezes me assusta pensar que, em algum momento, alguém descobrirá minha natureza. E que essa descoberta talvez traga outra: que meu lugar mais correto no mundo é o de uma sombra que espia.
Desço para o café da manhã. X não está. Encontro a poeta local. É muito famosa: seu livro vendeu oito edições em três meses. Uma coisa me chama a atenção: ela se diz negra, mas é mais clara do que eu, só que prende suas tranças num turbante colorido e usa batas africanas. “Ser negro é muito mais do que ter a pele escura”, ela disse numa entrevista que li, e depois: “Eu tive que construir minha negritude.” Ela me convida a sentar em sua mesa com um gesto amplo de matrona, eu obedeço. Levo meu café com leite, minha tapioca, sento e a escuto falar. Está rodeada por um séquito de mocinhas, em sua maioria, mas também há um ou outro garoto e até uma senhora de idade. Todos hipnotizados. Não entendo tudo o que ela diz, mas sua voz me agrada num sentido puramente sensorial. É como um arrulho diabólico capaz de dobrar vontades. Ela move as mãos e suas pulseiras tintilam. Fala de abusos e seus olhos marejam. Clama por justiça com a fúria de uma escrava açoitada. Maneja um discurso comovente e convincente em medidas quase idênticas. Está descalça, as unhas pintadas de azul-escuro, no tornozelo uma tatuagem – de uma divindade malê, ela explica, mas que se parece muito com ela.
O e-mail de apresentação do programa da residência trazia links de entrevistas com cada um dos convidados. A dela foi a primeira que eu li, e fiquei com a sensação de que já tinha escutado aquilo antes. Só agora descubro: o que ela diz lembra muito o stand-up de Agrado, a travesti do filme Tudo sobre Minha Mãe: “a pessoa é tanto mais autêntica quanto mais se parece com aquilo que sonhou para si mesma”, diz a personagem do filme, depois de enumerar todas as cirurgias por que passou e as que ainda lhe faltam fazer.
Terminamos de tomar o café da manhã. Todos se levantam. A poeta caminha para o centro do pátio e senta embaixo de uma grande árvore, como imagino que faria Sócrates. Os outros a imitam, e de olhos fechados ela começa a cantar para seus seguidores.
Olho para ela ainda na mesa e penso que também eu poderia construir minha negritude. Tenho por onde. Em sentido estrito, sou uma mistura de índio, negro e branco. “Mestiça” é o nome oficial. Mas, para mim, ser marrom não me serviu de nada. Sou invisível para as minorias favorecidas a que a poeta aspira, e sou um tanto “chamativa” – no sentido em que o adjetivo poderia se aplicar a um bicho – para os loiros privilegiados. Nenhuma das duas condições é desejável. Minhas amigas de infância, por exemplo – quase todas na gama dos claros –, me achavam exótica. Diziam que, se eu quisesse ser atriz de cinema e cuidasse do corpo com devoção cega, ser escura me ajudaria a conseguir um lugar em Hollywood e ganhar dinheiro interpretando aborígenes idealizadas, como Pocahontas, só que trash: ou seja, uma índia violentada e catequizada por um espanhol. Um homem branco que dizia gostar de mim uma vez fez um comentário que até hoje não sei se é muito racista ou muito avançado: “Você, mal-entendida, parece uma empregada.” E bem entendida – me perguntei –, pareço o quê? Mas não perguntei a ele. Meu pai me chamava de mojarrita [carapicu], um peixe de origem africana de olhos desproporcionalmente grandes. Eu gostava desse apelido porque, quando meu pai o dizia, seus próprios olhos grandes brilhavam. Mas depois ele o abandonou: seus olhos e suas palavras se apagaram diante de mim, assim como os de todos os outros. Por quê? Porque um dia abri a cortina e lhes mostrei o pântano em que sempre havíamos boiado. Que pântano?, disseram, ninguém via pântano nenhum. Mas lá estava ele, borbulhando e respingando em nós. E assim os fiz abrir a porta e mergulhar. Voltaram escorrendo lama, fedendo a podridão. Insistiram em negar tudo: do que você está falando, se estamos impecáveis? Depois disso, passaram a me olhar com suspeita.
A poeta sofreu abusos, ela conta; não sei como sua família a olhou quando ela lhes mostrou o pântano, mas hoje seus fiéis a olham com devoção. Como se fossem seus filhos. Não somos tão diferentes assim. Eu também me refugiei no olhar novo dos meus filhos, me agachei diante de seus olhos para que me iluminassem e me limpassem.
A poeta acaba de cantar, seu séquito aplaude. Agora passam às selfies. Todos a amam porque acreditam nela. Ou acreditam nela porque a amam. E isso, por mais que eu me empenhe em esmagar sob montanhas de ironia, só a torna mais autêntica. Nesse ponto, Agrado está enganada e eu estou enganada: tanto faz o que quisermos pensar de nós mesmos, não somos parecidos com o que sonhamos ser nem somos essa síntese que acreditamos ver no espelho. Somos o resultado de como os outros nos olham ao longo da vida. A história da nossa identidade é escrita pelos outros.
X aparece depois do meio-dia, tem o rosto corado e o cabelo molhado de suor. Conta que saiu bem cedo para uma excursão pelo rio. É uma das atividades que o programa organiza, mas que não são obrigatórias. X viu jacarés e está um tanto impressionada. Ela me pergunta o que eu fiz. Passei a manhã lendo na galeria porque achei que estava muito quente para passear. X me olha: procura as palavras para formular algo que ainda não se configurou de todo em sua cabeça. I can only take this heat with beer,[1] diz por fim, e segue para as escadas que descem para a recepção. Vou atrás dela.
Estamos no primeiro andar de um restaurante com uma sacada que dá para a praça do povoado; mais ao fundo se vê a igreja e seu campanário, que já tocou uma vez e nos pregou um susto. A lousa do local anuncia sopa de peixe, ao lado alguém desenhou um golfinho rechonchudo com um sorriso de dentes afiados.
X é professora aposentada da Universidade Princeton, ela me diz. Conta também que sua vida chegou a uma situação de estabilidade que lhe permite fazer essas coisas: vir a um vilarejo perdido do Terceiro Mundo para viver uma experiência literária que lhe é útil para tomar distância e pensar. Ela nunca tinha visto um jacaré, nem um burro, nem tinha provado aquele ensopado vermelho que comemos ontem no jantar. Acha tudo estimulante, diz, e a expressão de seu rosto a acompanha.
O convite à residência artística dizia algo parecido: seriam duas semanas num lugar estimulante, termo que eu imediatamente li como eufemismo de “marginal”. Mas pagavam bem, a cidade constava no mapa e as fotos do convento eram lindas. Naquela noite, quando contei a novidade para meu marido, ele pensou dois segundos olhando para o teto e considerou que seria uma boa ocasião para eu voltar a me conectar com minha escrita: sem as crianças, sem a rotina, sem a exposição diária a nossos defeitos que, com o tempo, se tornaram tóxicos. E apagou a luz. Naquela manhã havíamos discutido porque ele me culpara do atraso na saída para a escolinha, e depois na chegada a seu trabalho – segundo ele, tudo porque eu tinha me trancado no banheiro para me maquiar. Isso me humilhou mais do que se ele tivesse dito que me fechei no banheiro para me drogar. Eu nem sequer estava maquiada, portanto a acusação era falsa e só visava me magoar atribuindo a mim um comportamento que ele achou que eu consideraria frívolo. Portanto pensei que devia encarar o programa como uma estada num centro de reabilitação, para me desintoxicar. Melhor pensar que seria um spa, disse a mim mesma, e lembrei que ainda por cima iam me pagar. Na manhã seguinte, respondi que sim, escaneei meu passaporte, passei os dados da minha conta, e a passagem e o dinheiro chegaram pouco depois. Quando recebi o aviso do depósito, pensei: como caí fácil. Se fosse uma armadilha, eu era a presa perfeita. Alguém vinha me observando e concluiu que eu era feita de uma matéria mole, propensa a fraudes. Então deu a ordem: shoot.[2]
And you too, diz X, mas me perdi na conversa. Eu também o quê? Eu também pareço estimulante. Dou risada. Depois digo que eu, ao contrário dela, já tinha visto burros e jacarés, e também iguanas: no quintal da minha casa de infância, as iguanas eram comuns e era preciso espantá-las batendo os pés no chão e fazendo o mesmo som – sht! – que se usa com as galinhas. Mas, assim como ela, eu também nunca tinha provado o ensopado, ou talvez sim, mas numa versão menos contundente. Desconfio, digo a X, que aqui as comidas são preparadas sobre um fundo salgado de porco que encobre todos os sabores e acaba com o paladar. Ainda bem que o pessoal cura tudo com cerveja, ela diz, levantando sua garrafa e continuando a me contar.
Na sua casa em Boston, onde vive com o marido e recebe sua netinha algumas tardes por semana, X leva uma vida confortável. E para ela conforto e pensamento não formam um bom par. Para Borges, formavam, digo, e agora é ela quem ri: Do you think that man, inside that body, was comfortable at all?[3] Ela chegou antes do início do programa, para se aclimatar, mas não foi uma boa ideia porque está com muita saudade do seu café. É uma daquelas pessoas que precisam de, no mínimo, duas canecas cheias para começar a funcionar de manhã. O café daqui não faz nenhum efeito para ela. E eu, ela me pergunta, do que preciso para começar a funcionar?
Não faço ideia.
Acho que perdi para sempre a noção de funcionalidade.
Agora as duas olhamos para a sacada. As duas refletimos sobre algo que a outra ignora. Penso em como estou longe de pensar minha vida como um lugar estável. Olho o céu fúcsia e me parece uma rodovia de ideias que não acabam de chegar. Passam voando, posso ver os conceitos fugidios, as respostas que me foram negadas, as frases que ainda não pude decifrar. Todos elementos muito leves que continuam esperando ganhar a densidade que os ensopados daqui têm de sobra.
How do writers earn money?,[4] pergunta X, e vejo que ela terminou sua terceira cerveja. Enxoto um punhado de moscas, peço à garçonete outra rodada de bebidas e espero que ela assinta duas vezes para ter certeza de que entendeu; aspiro o ar quente e o expiro num suspiro, sacudo a angústia com um movimento rápido e curto, como de um pássaro molhado. Só então respondo: They don’t.[5]
Voltamos ao hotel bem bêbadas. É noite, mas não tão tarde, aqui escurece cedo. X se apoia em meu ombro e diz que o que mais gosta da minha companhia é que não se sente com uma pessoa jovem. Não sou jovem, digo, apenas sou mais nova que ela. Quando ela lida com gente jovem, continua, tem que fazer um esforço enorme para sentir empatia. E lida muito com jovens, sobretudo mulheres, porque, embora ela sempre tenha pesquisado sobre black feminism, parece que só agora elas a descobriram; as mocinhas pensam nela como uma espécie de oráculo que, de um modo ou de outro, acaba por desapontá-las, porque sua visão de mundo tende a ser bem mais otimista. O otimismo não mobiliza ninguém. O que é que mobiliza, então? A irritação. Mas ela custa a se irritar, embora lhe façam cada pergunta, diz, e leva as mãos à cabeça… O que vai dizer talvez seja mesquinho, X se desculpa, mas uma coisa que a irrita um pouco é essa sensação de espanto diante de coisas que sempre estiveram à vista: Girls just realized yesterday they’ve been always marginalized, just because some actress said that on television. So now they shout out loud for their rights as if everyone else had been muted before.[6]
Estou tão de acordo com o que ela diz que não abro a boca o resto do caminho, para não contaminar a porção de ar por onde agora voam suas palavras. Isso não começou hoje, X continua: sua avó colhia algodão e ela se doutorou em Princeton. Algum terreno foi conquistado. Entramos no convento e subimos as escadas, que esta noite parecem mais íngremes. Sempre haverá espaço para reclamar, X insiste, mas deve-se buscar o espaço para o reconhecimento, porque o contrário é desconhecer o que outros conseguiram antes. Entramos em seu quarto, eu a deito na cama e tiro seus sapatos. Sento a seu lado do mesmo modo como sento na cama do meu filho para lhe contar uma história antes de dormir. Today we live in a better world,[7] diz antes de fechar os olhos. Eu me levanto, vou até a porta e escuto o arremate: Don’t you dare to forget that,[8] e aponta com o dedo para o espaço vazio onde imagina que me encontro.
Amanhece e desço para tomar o café da manhã, mas não encontro ninguém. Faço hora no restaurante lendo um livro que não consegue me prender a atenção. Espero que apareça X ou algum dos outros convidados, mas nada. Só vejo as duas recepcionistas que se revezam para assistir a uma telenovela numa pequena televisão de carcaça laranja. Pergunto a uma delas onde estão os outros, mas ela me ignora. Não insisto. Resolvo naturalizar minha circunstância: o convento é grande e cada um poderia muito bem andar por lugares diferentes sem topar com os outros. Além disso, fico sabendo por e-mail que um dos convidados não chegou de Shangai, onde mora. Seu voo foi cancelado, e esse imprevisto foi o bastante para que ele desistisse. Continuo sem entender como é que cinco pessoas – agora quatro – que (supostamente) têm uma vida cheia de coisas concretas para fazer aceitaram vir aqui. Para procurar o quê? Para nos rendermos a quem? Por algum momento minhas próprias razões são um mistério para mim, e nem posso me perguntar pelas dos outros sem sentir o vazio me tragar de um gole.
De noite ligo para casa, porque na tentativa anterior as crianças estavam numa festinha de aniversário e não pude vê-las. Agora a pequena está dormindo, mas ainda consigo falar com o mais velho: “Você já vai voltar, mami?” Em seguida ele dá um grande bocejo e mergulho dentro de sua boca. O pai o leva para a cama e diz que me liga logo mais, mas isso não acontece. Deve ter adormecido pensando em acordar dali a cinco minutos para encerrar o dia, mas não conseguiu. Imagino-o estirado na cama com as persianas abertas e a roupa da rua. Nessa noite sonho com uma multidão de pessoas aglomeradas no corredor do meu quarto, todas vestidas com a bata da poeta. Os traços dos rostos estão borrados, mas não por completo, como se tivessem sido retocados por alguém não muito habilidoso com o Photoshop. Falam sem boca, emitem sons ou palavras que não entendo e gesticulam com energia, como se planejassem algo, mas não entrassem em acordo. Espio pelo olho mágico, não me decido a sair; quando afinal crio coragem e abro a porta, já não estão lá.
No dia seguinte chove muito, e parece ainda mais estranho que ninguém sinta necessidade de mitigar o rugido dos trovões com a presença do outro. Começo a suspeitar que talvez eu seja a única que está sozinha, que todos os demais tenham se reunido para fazer alguma atividade da qual nem tomei conhecimento. Consulto a programação do evento, para hoje não há nada de especial, nem nada que necessariamente deva ser feito em grupo. Abro o computador, quem sabe tenha chegado um e-mail que esclareça tudo, mas não há conexão. Vou ao quarto de X, bato várias vezes à porta, ninguém responde. Desço até a recepção, volto a perguntar a uma das recepcionistas onde foi todo mundo. Dessa vez ela me escuta porque a televisão está desligada, e então percebo que acabou a luz. A mulher aponta para a porta da rua. Pergunto se saíram. Assente com a cabeça. Todos juntos? Volta a assentir. Não sei ao certo se ela entendeu a segunda pergunta ou se essa resposta foi um eco da primeira.
Pego um guarda-chuva num cesto ao lado da porta e me disponho a sair, mas já na soleira vejo que é perigoso: as ruas são riachos amarronzados de água torrencial. Não se vê ninguém andando por aí, mas não acho nada demais, porque nos trópicos as pessoas se fecham em casa quando chove. Quando criança adorava os dias de tempestade porque podia faltar à escola e ficar em casa sem fazer nada. Nada era ler, desenhar círculos infinitos nas paredes, espiar pela janela os jatos violentos que ao bater no chão produziam uma espécie de estalo elétrico que arrancava faíscas do asfalto. São pingos, dizia meu irmão revirando os olhos, mas para mim pareciam faíscas como as que jorravam das máquinas de solda.
Volto a olhar para dentro do convento, a recepcionista já sumiu. Vistas daqui, as árvores do pátio interno parecem gigantes congelados em poses furiosas ou aflitas. Entrar ou sair? Odeio que a vida se baseie em escolhas. Me aventuro pelas ruas alagadas. Mergulho os pés e avanço no sentido da corrente. A água me empurra pelas panturrilhas, custo a manter o equilíbrio. As casas estão fechadas; totalmente trancadas, eu diria, mas algo me diz que os donos continuam lá dentro, esperando estiar, olhando a umidade subir pelas paredes. Chego ao topo de uma rua, vejo a ladeira que desce, não consigo discernir onde termina. No rio, talvez. Seria bom chegar ao rio. Quem sabe eu já esteja no rio. Quem sabe o rio tenha perdido suas margens, tenha engolido o vilarejo e agora o arraste para outro lugar.
Avanço, sinto a enxurrada aumentar e tenho a tentação de não opor mais resistência à força que me empurra. À minha frente, apenas água. Procuro localizar no tempo o dia em que cheguei, ainda não passou uma semana, mas parece tão longe: o primeiro passeio pelo povoado, a visão da água arrasando tudo. Então me pergunto se aquilo na verdade teria sido uma visão; se será isso o que chamam de destino. Respondo para mim mesma que esse deve ser um pensamento recorrente em quem esgotou o último pingo de vontade. Sem vontade é fácil abraçar a ideia de que há um conjunto de eventos irremediáveis a que estamos condenados desde o nascimento. A ideia de destino é afim à ideia de impotência. Cheira a lama. Tenho a impressão de ouvir vozes vindas de algum lugar, mas continua não havendo nada além de água barrenta ao meu redor. Dou meia-volta e tomo o rumo do convento pela mesma rua por onde vim. Agora vou contra a corrente, é mais difícil avançar.
Na cama, me sinto febril. A tosse, que já estava passando, voltou mais forte. Algo se endureceu dentro do meu peito, sinto estreitos e cobertos de mofo os dutos por onde passa o ar. Quando entrei ensopada no convento, as recepcionistas não estavam. Gostaria de ter pedido umas toalhas extras e de tomar um banho quente, mas a água do chuveiro estava gelada. Agora estou há algum tempo na cama, enrolada na única toalha disponível. A janela está fechada para a chuva não entrar, e a porta do quarto também. Minha respiração faz um ruído áspero, poderia ser um bicho agonizando numa gruta, mas sou apenas eu e minhas defesas fracas. Não há luz. Não há ninguém.
Batem à porta do quarto, e eu acordo. Já vai, respondo. Levanto da cama, abro a janela e o sol bate de frente. Me olho no espelho da parede, os sulcos das olheiras aumentaram 1 centímetro. Costumo me olhar no espelho com frequência, não por vaidade (ou não só), como pensaria quem me visse pela rua à procura de meu reflexo nas vitrines, mas por necessidade de me reconhecer: em meu rosto estou eu, mas também está meu pai e meu filho, que se parece muito comigo – ou eu com ele, não saberia dizer –; é tão parecido que quando não tenho um espelho à mão olho para ele e já me encontro. Seu rosto é uma âncora na terra.
Quando abro a porta já não há ninguém, mas deixaram um bilhete escrito na língua que não entendo. Guardo o papel, entro no quarto e me apronto para o café da manhã.
Encontro todo mundo no restaurante.
X está lendo um livro. Na mesma mesa, o rapaz inglês mexe uma xícara fumegante e aspira um vapor mentolado. A poeta está num canto, sentada no chão, escutando uma garota muito magrinha que fala com ela aos sussurros. Talvez seja sua namorada, outra coisa que ela dizia na entrevista é que gosta de jovenzinhas porque “lhe devolvem a fé”. Me sirvo de suco de laranja, me aproximo da mesa e pergunto se posso me sentar com eles. O rapaz me olha e assente; tem os olhos vermelhos, a barba emaranhada e uma camiseta azul puída com a inscrição: #thetweetingofourdiscontent.[9] Eu me pergunto se seria o título de um de seus livros. Sento e tomo meu suco. X parece não ter notado minha presença. Hi, digo, e ela parece um pouco irritada, olha para mim e me cumprimenta com um gesto rápido que me obriga a imaginar que esteja chateada. Mas magoada por quê? Seria o caso de lhe perguntar?
Cerro as mandíbulas e o efeito se faz sentir nas têmporas, como que pressionadas por dentro.
O livro de X tem capa vermelha, borda dourada e nenhum título à vista. Something wrong?,[10] pergunto, e ela volta a se mostrar irritada, ergue os olhos e responde com impaciência: What? I’m trying to read a book here, lady.[11] Não sei o que dizer, procuro os olhos do rapaz porque preciso de uma testemunha daquela grosseria, mas ele está de olhos fechados, aspirando o vapor de seu chá. A chuva também deve ter feito estragos nele. Lembro que sua entrevista me impactou. Ainda não sei se para o bem ou para o mal. Sei que a imprimi, sublinhei algumas frases e pensei: esse cara é sólido. Nas coisas que dizia não havia dúvidas nem rachaduras, a certeza tomava quem o lia. Alguém mais preconceituoso do que eu poderia dizer que ele falava como um homem. Sobretudo um homem que decide se mostrar frágil e derrotado. Disse algo sobre assumir o componente de vingança na escrita: “Sempre escrevemos contra alguém.” E disse algo sobre a suposta coragem daqueles que, como ele, tinham optado por escrever sobre suas misérias: “Só fui corajoso quando contei minha história pela primeira vez, depois comecei a despejá-la sobre qualquer um que encontrasse pela frente, como um bêbado patético. Escrever sobre mim mesmo virou um vício repugnante.”
Hey, digo, e ele abre os olhos, where have you been?,[12] e me vem à cabeça o resto da canção de Lenny Kravitz. Ele encolhe os ombros e diz: I don’t know, around, what about you?[13] Penso alguma resposta enquanto examino o entorno: a magrinha se perdeu no abraço da poeta. A mulher da cozinha vai e vem carregando travessas, um velho de chapéu varre folhas no pátio: agora as árvores estão cheias de flores amarelas, laranja, roxas. Escuta-se o rascar da vassoura por sobre o canto dos passarinhos.
Around, respondo.
Eu me pergunto o que terá acontecido nesses dois dias, se só eu os vivi desse modo. Se deliro, é porque estou disposta a delirar. Agora, olhando tudo a distância, não há nada estranho na sequência dos fatos: um temporal desaba, as ruas se alagam, as pessoas se fecham em casa. O inglês está evidentemente abatido, deve ter ficado de cama. A poeta está na dela. Talvez X não tenha escutado minhas batidas na porta porque estava no banheiro; ou então não quis me atender. Por que invento uma lealdade de companheiras? Na hora da verdade, temos muito pouco a ver. Alguma vez na vida X teve que tirar um visto, por exemplo? Nunca, imagino. Isso já nos põe em dimensões opostas. Pode ser muito negra, mas seu passaporte é azul. De que cor é o meu? Marrom. Volto a olhar para ela, tem o cenho franzido sem precisar da minha ajuda. Pousa o livro na mesa e esfrega os olhos. Ergue um braço, chama a mulher da cozinha que caminha lentamente até a mesa. Gosh, diz, sem disfarçar a irritação. I miss my coffee.[14]
Saio para andar. As ruas estão enlameadas, mas o azul do céu não tem um risco. Almoço num local em frente ao rio, servido por uma adolescente de saia curtíssima e com o umbigo de fora. Todos ali comem arroz com feijão e uma sopa espessa chamada “pirão”. Peço o mesmo prato. No calçadão, garotas tiram selfies com o rio ao fundo. No rio, vejo canoas entrando no manguezal com passageiros e voltando vazias. Como se o arvoredo os engolisse. Pergunto à garota o que há dentro da mata e consigo entender que se trata de um lugar de oferendas.
Tomo umas cervejas porque estou sozinha e me sinto autorizada, mas não vou muito longe. Nunca chego a me embebedar, algo me faz parar antes, um alerta mental que sinto como três tapinhas rápidos no rosto: que é que você está fazendo, pare. Na minha casa, na hora do lanche, às vezes sirvo álcool numa xícara de chá e sento com as crianças. Não sei por que camuflo minha bebida, é uma mentira desnecessária e frágil. Devo ter outras mentiras parecidas na manga, coisas que só eu sei até que me esqueço, e a consequência da revelação involuntária é nula. Mas continuo guardando segredos fúteis como que dizendo a mim mesma: tenho o direito de ser misteriosa, ter uma gaveta à qual ninguém tem acesso e que explique tudo.
Volto a pé, a chuva – ou a cerveja – baixou a temperatura, e o passeio é muito mais agradável do que em outros dias. As escadas da rua íngreme estão escorregadias. Prefiro evitá-las e voltar ao convento por outro caminho. Atravesso um bairro mais pobre, uma fileira de casas precárias, um bando de cachorros lambendo as crostas. Sou seguida por um homem que quer me vender alguma coisa que carrega numa bacia. Tem cheiro de coco, mas não olho, sigo caminhando e caminhando até chegar à praça que já conheço e, de lá, pego a rua mais direta até o convento.
À tarde ouço vozes no pátio, espio pelo corredor e vejo todos reunidos em volta do coordenador que conhecemos no primeiro dia. O coordenador – eu já havia reparado nisso antes – está sempre impecável. Camisa branca de algodão, jeans escuros e All Star preto. Não transpira porque vive aqui e seu organismo deve ter desenvolvido uma temperatura interna capaz de neutralizar a externa e deixar sua pele bronzeada e corada, como se estivesse maquiado por um profissional. Quando me descobre na sacada, acena sorridente e vejo que seus dentes são grandes e retos, de um branco lustroso. A certa idade os atributos físicos deixam de ser concessões da genética. Nessa pele e nesse sorriso reconheço a intervenção laboriosa de quem copia um modelo estético e não aceitará se ver de outra forma. É um finíssimo curador da sua aparência, e está consciente de que conseguiu o que queria: ver-se como um Ken.
Quando chego no pátio, o coordenador me informa dos planos para o dia: diz que faremos uma excursão. Por onde? Pelo rio. Mas já não fizeram uma excursão pelo rio?, pergunto. Ele diz que esta é diferente: vamos entrar na mata, preparar uma fogueira, e quem quiser poderá fazer oferendas, quem não quiser poderá olhar. Parece que depois das tempestades as pessoas do lugar costumam fazer oferendas. Que tipo de oferendas? Alimentos, objetos de valor pessoal ou algo espiritual. Espiritual, repito, só para ter certeza de que entendi bem. Se eu não quiser ir, não tem problema, o coordenador diz, é uma atividade opcional. Claro que quero ir, digo, talvez com ênfase exagerada. E é verdade que quero, mas, acima de tudo, me apavora ficar sozinha outra vez.
O grupo é dividido em duas canoas – X, a poeta e eu numa; o coordenador e o inglês na outra. Os remadores são dois adolescentes sem camisa que falam entre si, cantarolam e dão muita risada, o que me leva a suspeitar que fumaram alguma coisa.
A divisão por gênero nas canoas foi culpa minha. Fui a última a chegar porque parei num quiosque para comprar água e quando os alcancei eles já tinham embarcado. O coordenador me estendeu a mão para me ajudar a subir em sua canoa, mas optei pela das meninas. Enquanto me acomodava no assento estreito, pensei que, se tivesse vivido essa mesma situação quinze ou vinte anos antes, teria entrado na canoa dos homens. A atitude da poeta e de X não era muito convidativa: ambas contemplavam o rio ensimesmadas (ou entediadas). Os meninos, ao contrário, eram um par de criaturas ávidas de admiração, ansiosos por exibir seus encantos para satisfazer essa necessidade troglodita de submeter (outros diriam “conquistar”) suas vítimas. Aos 18 anos, eu teria confundido essas exibições de prepotência com uma oportunidade de tirar vantagem: os homens não vão me deixar sujar os sapatos, com eles vou viajar como uma princesa, enquanto com elas serei uma a mais. Mas hoje sei que tirar vantagem de um homem qualquer implica um jogo extenuante – mesmo quando inofensivo – de especulações, e a última coisa que quero é entrar nessa brincadeira.
Avançamos rápido porque vamos no sentido da brisa. Sinto que descemos, mas não me atrevo a perguntar. O silêncio viscoso que sobe do rio é interrompido pelas gargalhadas dos remadores e por algum grito de pássaro que faz um eco comprido e depois se apaga como que sugado pela terra. A poeta filma a água com seu celular. X fechou os olhos. Na outra canoa, o coordenador está de pé, a cara contra o vento e os braços cruzados. Mostra-se firme, com as pernas afastadas, uma na frente da outra: firmando base, como a estátua de um prócer. O inglês está deitado, olhando o céu, acariciando a barba, com cara de que o mundo pode fazer com ele o que bem entender.
Depois de amarrar as canoas, os dois remadores nos guiam até uma clareira no meio da mata. Levamos uns dez minutos para chegar lá. Durante o trajeto X se reaproxima, diz que não pode acreditar no tamanho das folhas das plantas, na altura das árvores e nos sons, sobretudo nisso, nos sons dessa floresta que parecem gritos, ou lamentos, ou rugidos. Concordo com suas observações, mas com cautela. Não quero dizer algo impróprio que lhe devolva o humor desta manhã. Tenho certa dificuldade em acompanhar o que ela diz em seguida: fala em consciência expandida, que o melhor que pode nos acontecer esta noite, ou qualquer das seguintes, é encontrar a passagem para a experiência coletiva, não mais a individual, que já não serve nem para escrever, porque está estragada, gasta, doente de olhar para si mesma: As a snake that bites its own tail.[15]
Agora estamos todos sentados em volta de uma fogueira que os remadores fizeram com a ajuda do coordenador. Fitamos as chamas, ninguém fala, mas o recorte dos nossos corpos é a expressão perfeita do desamparo.
Recentemente comprei para meu filho um livro de Oliver Jeffers chamado Aqui Estamos Nós. Na dedicatória, ele diz que o escreveu durante os dois primeiros meses de vida de seu filho Harland, enquanto tentava achar o sentido de tudo isto (“isto” é nascer e viver na Terra): “Isto é o que eu acho que você precisa saber…”, começa. Admiro o esforço de síntese que pressupõe a premissa: “A coisa mais importante que as pessoas devem saber – ele diz, lá pela metade do livro – é que todos precisamos comer, beber e conservar o calor corporal”, e ilustra a sentença com um grupo de diversas figurinhas em volta do fogo, sob um céu coalhado de estrelas, como o desta noite. A história procura ser correta e esperançosa, mas para mim soa sumamente melancólica. Mais do que “notas sobre como viver no planeta Terra”, o que eu penso ler como mensagem é: desculpa aí por ter te posto neste mundo.
O clima desta noite é perfeito. Os remadores fincam tochas com citronela para espantar os mosquitos. Começa a se dissipar a sensação de estar num lugar estranho. O espaço, enfim, é sentido como próximo e conhecido. Como se depois de muito tempo eu voltasse a uma casa familiar e tudo continuasse como deixei. As mesmas cortinas, os mesmos quadros, os mesmos móveis, os mesmos cinzeiros sem usar. O coordenador pergunta se alguém quer fazer uma oferenda ou dizer alguma coisa. A poeta suspira e já sei que é o preâmbulo para cantar uma dessas coisas que ela canta. Já a vi fazendo isso duas vezes e sinto que posso adivinhar o que se segue a cada gesto seu; também posso adivinhar que, faça o que fizer, por fim acabará me comovendo. Mas isso eu nunca vou dizer em voz alta.
Deito para olhar o céu: estrelas, estrelas, estrelas.
Penso nas minhas crianças, que um dia vou ter que enunciar a elas a frase de Jeffers: “Isto é o que eu acho que vocês precisam saber…” Deveria escolher duas ou três coisas pontuais para lhes ensinar e me aferrar a elas com unhas e dentes, como a uma tábua de salvação.
Uma vez apoiei uma xícara com vinho rosé na mesinha de centro da sala enquanto cortava um pedaço de bolo e escutávamos canções infantis; um dos meus filhos a pegou por engano, deu um gole e cuspiu o líquido. A babá tirou a xícara das mãos dele, dizendo: não é nada, meu amor, só o suquinho da mamãe. Eu quis dizer alguma coisa, mas fiquei pasma. Meus segredos, pensei, são gavetas vazias.
A poeta acaba de cantar, silêncio.
Uma estrela cadente, digo, e aponto para o céu. Os outros olham, ansiosos por vê-la. Perdi, lamenta-se o inglês, e X diz que não faz mal, que mesmo assim deve-se fazer um pedido, mas tem que ser rápido, antes que passe o efeito do seu rastro, que dura menos de um minuto. Já fizeram?, ela pergunta quase em seguida. Yes, diz a poeta; yes, dizem o inglês e o coordenador. Yes, digo eu, que também fiz meu pedido: mas meu desejo não vai se realizar, nem o de ninguém, porque não passou estrela nenhuma. Só falei para ver a reação deles.
*
Este texto foi escrito em setembro de 2018, numa pequena cidade do Brasil. Baseia-se num encontro de escritores do qual participaram autores cujos nomes e características foram alterados. Qualquer semelhança com a realidade é mais do que provável.
[1] Só consigo suportar esse calor com cerveja.
[2] Atire.
[3] Você acha que aquele homem, com aquele corpo, se sentia realmente confortável?
[4] Como os escritores ganham dinheiro?
[5] Eles não ganham [dinheiro].
[6] As garotas descobriram ontem que sempre foram marginalizadas, apenas porque alguma atriz falou sobre isso na tevê. Agora clamam por seus direitos como se todo mundo tivesse ficado calado antes.
[7] Hoje vivemos num mundo melhor.
[8] Não se atreva a esquecer isso.
[9] Trocadilho com o título de um livro do escritor John Steinbeck, The Winter of Our Discontent (O Inverno de Nossa Desesperança).
[10] Algo errado?
[11] Como? Estou tentando ler um livro aqui, querida.
[12] Onde você esteve?
[13] Não sei, por aí, e você?
[14] Poxa, sinto falta do meu café.
[15] Como uma cobra que morde a própria cauda.