Lanzmann, com Simone de Beauvoir: “Ela disse que não tinha mais relação amorosa e sexual com Sartre. Minha perturbação dobrou: não seria uma aventura; ela instaurava entre nós outra relação, infinitamente mais grave. Eu seria o seu sexto homem” FOTO: SYLVIE DE BEAUVOIR/JAZZ EDITIONS
Permanência e desfiguração
Sartre e Simone de Beauvoir; minha irmã e Deleuze; eu e Simone de Beauvoir; minha irmã e Sartre
Claude Lanzmann | Edição 55, Abril 2011
Dois acontecimentos em torno dos quais minha vida deveria girar se produziram naquele tumultuado ano de 1946: a vinda para Paris da minha irmã Évelyne e meu encontro com Judith Magre. Fui apresentado a ela e desmoronei, fulminado por aquela sílfide nervosa de 20 anos, corpo esguio e duro, de voz profunda e rica em todas as inflexões, por aquelas maçãs do rosto altas, aquele olhar de fogo, aquela boca vermelha e sensual sob um nariz poderoso.
Na época, ela não se chamava Judith nem Magre. Obedecendo a um chamado interior imperioso, havia fugido sem um tostão da província e de seus pais industriais, tinha se inscrito no curso Simon, onde aprendia a ser a grande atriz que se tornou. Abraçamo-nos no elevador que levava ao térreo, depois subimos de novo, sem interromper aquele mudo e louco abraço, até o 6º andar, pelo de serviço, que era preciso pegar para chegar à mansarda. Nenhuma palavra havia sido pronunciada entre nós, tudo fluía espontaneamente.
Vivemos durante quase seis meses uma paixão torrencial, e fizemos amor a noite toda que precedeu o concurso de ingresso na École Normale; não passei, é claro. Judith saiu em turnê, me deixou sem notícias, sofri bestialmente. Ela desapareceu da minha vida por quinze anos. No início dos anos 60, nos encontramos numa calçadada rue des Saints-Pères. Casei-me com ela em 1963, foi minha primeira esposa.
Évelyne, que ainda vivia em Brioude com meu pai e Hélène, veio passar uns dias de férias em Paris. Foi por meu intermédio que Gilles Deleuze e ela se conheceram. Tive a sensação, pelo primeiro olhar que trocaram, de ser uma testemunha impotente do inelutável. Ela tinha 16 anos, corpo de pin-up, imensos olhos azul-cobalto, um belo nariz semita. Fazia meses que eu não via minha irmã, a adolescente angulosa e desajeitada tinha se tornado uma mocinha atraente, radiante de inteligência, de vivacidade e de humor.
Ela se apaixonou por Deleuze logo às primeiras palavras que ele pronunciou, apaixonada pela filosofia, pela ironia e pelo riso filosóficos, inseparáveis nele das grandes bofetadas de desvendamento do mundo com as quais varria a tolice, metamorfoseando seu interlocutor em cúmplice, testemunha, discípulo, produtor de pensamento, instruindo o outro por meio de uma curiosidade e um espanto formidáveis diante de tudo o que parecia evidente.
Aos 16 anos, Évelyne mergulhou nesse amor sem prudência nem contenção, deslumbrada pelos conceitos, pondo-se a falar, a raciocinar, a se zangar como o próprio Deleuze. Estava sob seu domínio, como tantos outros, homens ou mulheres, estiveram ao longo da vida do filósofo. Conheci, em Vincennes e alhures, quem imitasse sem perceber o timbre, o ritmo, as modulações da voz deleuziana. Minha irmã esteve mais que outras e outros porque ela era muito mocinha, não trapaceava, ignorava os compromissos, era presa do demônio do absoluto.
Évelyne prolongou a permanência em Paris ou voltou logo, não me lembro. Em todo caso, Deleuze e ela não se largavam mais. Como se fosse a sua filha, ela se extasiava diante do gênio manifesto de Gilles. Um dia, ele e eu atravessávamos sob um céu carregado a ponte de Bir-Hakeim, e ele me perguntou se podia lhe fazer um imenso e dificílimo favor. Preocupado, não ousando pressentir que ia me pedir o impossível, respondi: “Sim, claro”, mas recusei quando ele se abriu. Desejava romper com minha irmã e queria que eu anunciasse isso a ela. O choque foi duro: temi e entrevi o pior para Évelyne. Mas estava igualmente magoado e incrédulo diante da covardia do meu amigo, que, ao mesmo tempo, se aproveitava de mim e me desdenhava. Nesse instante, naquela ponte, debruçado com ele na balaustrada sobre o Sena, sob o estrépito do metrô que passava a céu aberto, algo do meu laço com Deleuze se rompeu irremediavelmente.
De fato, o pior aconteceu. A garota voltou para Brioude sem saber de nada, eu avisei minha mãe, Monny e meu pai, preparando-os para qualquer eventualidade, pedindo que ficassem de olho nela e nunca a deixassem sozinha. Ela recebeu em Brioude a carta de ruptura, desajeitada como todas elas são, e mais do que todas, porque nesta a inteligência tentava lutar contra a violência com armas desiguais. Li a carta anos depois, com grande mal-estar, depois que Évelyne a mostrou a Sartre. Ela quis morrer, foi preciso não sair de perto dela um instante.
A ideia de ser atriz entusiasmou Évelyne, ela parecia feliz e se matriculou no curso Simon. Não lembro se conheceu Judith Magre então, ou se foi mais tarde. René Simon, o fundador e animador do curso, exercia sobre seus alunos de ambos os sexos uma ascendência fortíssima. Ele havia decidido que minha irmã, com seu corpo ideal, devia fazer carreira no cinema, mas que seu nariz de intelectual judia era um obstáculo impeditivo. O obstáculo foi vencido. Ela não descansou, contra a opinião do marido, enquanto não fez uma cirurgia plástica.
Refazer o nariz era uma moda nascente e febril, uma aventura libertadora, vivida como tal por suas pioneiras, ligada provavelmente, por mediações vagabundas mas inteligíveis, à libertação do país e das mulheres, de que O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, foi o ato inaugural. O mestre cirurgião era tão procurado na época pelas damas que deu, metonimicamente, seu nome à coisa: dizia-se “o nariz Claoué”, que nem sempre era um sucesso absoluto. Juliette Gréco teve um nariz Claoué, Évelyne Rey – foi o nome artístico que minha irmã escolheu – teve o dela, lindo. Só o descobri mais tarde, pois passava a maior parte do tempo na Alemanha, em Tübingen e depois em Berlim, durante os seus anos de vida com Serge Rezvani.
Durante uma passagem por Paris, encontrei-me com ela e o marido Serge uma noite no Royal, um café animadíssimo de Saint-Germain-des-Prés – um verdadeiro bistrô com um grande balcão curvo, altos bancos vermelhos e um grande salão nos fundos –, situado bem em frente ao Deux Magots, na esquina da rue de Rennes e do boulevard Saint-Germain. Ninguém poderia imaginar então que o Royal não seria eterno, que seria substituído pela Drugstore Saint-Germain, a qual nos parecia por sua vez enraizada na noite dos tempos e destinada a uma existência perene. Mas a Drugstore morreu. Uma butique do rei transalpino das roupas lhe sucedeu, com um restaurante chique e caro no 1º andar.
Permanência e desfiguração dos lugares são as etapas do tempo de nossa vida. Verifiquei isso de outro modo, no desespero, durante a realização de Shoah, quando me vi confrontado com as paisagens do extermínio na Polônia. Esse combate, esse esquartejamento entre a desfiguração e a permanência foram para mim uma comoção inaudita, uma verdadeira deflagração, a fonte de tudo.
Saint-Germain-des-Prés ou o Quartier Latin não são certamente lugares de massacres memoráveis: que o Royal, a livraria Le Divan, na esquina da rue Bonaparte, do outro lado da praça, ou ainda o boulevard Saint-Michel, a Presses Universitaires de France, palco de meus roubos, tivessem, como tantos outros, de ceder à pandemia da moda, é simplesmente triste. Muito mais, talvez: vivos, não reconhecemos mais os lugares das nossas vidas e sentimos que não somos mais contemporâneos do nosso presente.
No Royal, então, mal havia encontrado Serge Rezvani e minha irmã, e Deleuze entrou no meu campo de visão, ou antes, no campo de visão de nós três. Os quatro nos vimos no mesmo segundo, quatro olhares se trocaram num átimo: o meu sobre Évelyne que via Deleuze, sobre Deleuze que via Évelyne, sobre Serge que os via se verem etc., uma cintilante e imperiosa “estrutura em abismo”. Soube, soubemos no mesmo instante, que Évelyne voltaria inelutavelmente para Deleuze.
Em Scarface, o esplêndido filme policial de Howard Hawks, dois braços se estendem, dois isqueiros se acendem simultaneamente para oferecer sua chama ao cigarro que uma beldade fatal acaba de levar aos lábios. Eles são três, o velho gângster de quem ela é amante, o jovem lobo que quer ao mesmo tempo a mulher e o império do chefe. É ela quem vai decidir: e ela hesita entre as duas chamas. Suspense infernal, nenhuma palavra é trocada, nem um segundo a mais, ela se decide, como quem mata, pelo mais moço. Sabe-se que sua escolha é uma condenação à morte, e que a mesma mão que estende o isqueiro eleito liquidará aquele cuja chama foi desdenhada. Cinema puro.
Deleuze continuou a morar com a mãe na rue Daubigny, mas instalou Évelyne numa rua vizinha e igualmente sinistra do 18º arrondissement, que, para ela, era distante de tudo, sobretudo dos lugares que a aprendiz de atriz tinha de frequentar por motivos profissionais. Visitei-a um dia no quarto e sala mobiliado que ele havia alugado, e achei-a infeliz e como que exilada, tive a sensação de que ele a escondia, constrangendo-a a uma existência clandestina, indo vê-la furtivamente quando lhe convinha, como quem vai ao bordel.
Não sei quanto tempo durou exatamente essa segunda ligação – “sequestro” seria mais preciso – e não posso divulgar o que minha irmã me confiou mais tarde sobre o comportamento amoroso do seu amante, sobre os meios e artifícios que utilizou quando lhe pareceu necessário romper com ela, na medida em que a subversão filosófica e desejante necessitava, para se desenvolver e se dar livre curso, de uma respeitabilidade burguesa que Évelyne não podia lhe proporcionar. Essa ruptura acarretou a minha também: nunca mais voltei a ver Deleuze, salvo de passagem. A admiração permaneceu intacta e até aumentou, a amizade pereceu. A violência do suicídio a ressuscitou.
Vi Évelyne, perfeita, comovente e sutil, em As Três Irmãs, em Soledad, de Colette Audry, e em Ping-Pong, de Arthur Adamov. Em 1953, ela interpretou magistralmente o papel de Estelle, a infanticida, em Entre Quatro Paredes, de Sartre, na Comédie Caumartin, papel que reinterpretou várias vezes em outras salas, com outros atores, nos anos que se seguiram, e também na televisão com Judith.
Recordo isso tudo não para expor o currículo de minha irmã, a carreira normal de uma jovem atriz talentosa, mas simplesmente para restabelecer a verdade. Onde ela seria dita, senão aqui? Desde o seu suicídio, no dia 18 de novembro de 1966, a doxa relativa a Évelyne pretende que ela só representou peças de Sartre escritas especialmente para ela. A utilização de fórmulas ambíguas – como no volume da Pléiade consagrado à obra teatral de Sartre – deixa crer que foi ele quem impôs esse papel à Comédie Caumartin. Atesto que isso é mentira: Sartre não conhecia minha irmã, nunca a tinha visto atuar, e fui eu quem, uma manhã – na época eu vivia com Simone de Beauvoir fazia um ano –, recebi um telefonema dele me dizendo, textualmente: “Parece que sua irmã está muito bem em Entre Quatro Paredes, eu queria ir, arranje tudo com Castor[1], vamos convidá-la para jantar depois.”
Relatando a Castor os termos do pedido imperativo de Sartre, citei-lhe como comentário essas palavras do conde Mosca em A Cartuxa de Parma, ao ficar sabendo do encontro iminente de Sanseverina com Fabrice: “Se a palavra amor for pronunciada entre eles, estou perdido.”
Uma história entre Sartre e Évelyne era inevitável, tudo concorria para isso, o gosto de Sartre pela sedução, a inclinação de minha irmã pela filosofia – era necessário um pensador da estatura de Sartre para curar as feridas abertas por Deleuze –, mas também a simetria em espelho entre a relação do irmão com Simone de Beauvoir e a que a irmã teria com Sartre.
As consequências para Évelyne nos assustavam muito, a Castor e a mim, eu chegaria a dizer que, pessoalmente, elas me aterrorizavam, a tal ponto eu a sabia apaixonada pelo absoluto e incapaz de não se entregar por inteiro. Eu avaliava os perigos que uma aventura como essa a faria correr, sem falar das complicações que acarretaria na vida amorosa de Sartre, já passavelmente tortuosa, pois ele não rompia nunca e mantinha todas as suas amantes, mesmo quando a paixão e o sexo haviam desde há muito desertado de suas relações.
Castor e eu fizemos o impossível para adiar a data, mas ele fazia mesmo questão de ver a tal Estelle, não cedeu, tornou-se insistente, era preciso fazer o que pedia. Se reitero a minha resistência e meu temor é porque o contrário foi alegado em vários livros e pretensas biografias que se precipitam, sempre com a mesma avidez, sobre esse formidável paradoxo dos Lanzmann, incestuosos carreiristas que faziam escadinha um para o outro a fim de alcançar o topo: eu teria entregado minha irmã a Sartre como, antes, a Deleuze.
Évelyne Rey, em presença do autor da célebre peça, foi brilhantíssima naquela noite na Comédie Caumartin. Castor estava sentada entre Sartre e eu, ele à direita, eu à esquerda, eu estava dividido, em guerra comigo mesmo, orgulhoso da atuação da minha irmã, mas aterrorizado porque cada uma das suas réplicas, das suas atitudes, da sua maneira de se movimentar, das caretas de má-fé tipicamente sartrianas da infanticida que busca conviver com a verdade, selava o inelutável, em vias de se consumar. À medida que a evidência se impunha a mim, eu apertava, com a mão, o joelho de Castor, como lhe dizendo: “Vai ser um desastre!”, o que ela entendia perfeitamente, pois em outros momentos era a mão dela que apertava o meu joelho, significando “estamos perdidos”, como se nós dois fôssemos um só conde Mosca.
A ceia, num restaurante não longe do teatro, foi à luz de velas, e ideal de todos os pontos de vista. Minha irmã estava radiante, linda de tirar o fôlego, e Sartre se fazia de sedutor didático, explicando com sua voz metálica que ela era a melhor Estelle que já vira. Sartre tinha tudo o que era preciso para seduzir Évelyne, ele a elogiava com razões articuladas, encaixadas, aferrolhadas umas nas outras. Ver em ação essa formidável máquina de pensar, aquelas bielas e pistões fabulosamente lubrificados, aumentando de potência até o regime máximo, deixava você pasmo de admiração, ainda mais se o objetivo dessa lógica irrefutável e apaixonada era elogiar.
Os inimigos de Sartre caçoaram da sua feiura, do seu estrabismo, caricaturaram-no como sapo, gnomo, criatura imunda e maléfica, sei lá que mais… Eu via nele uma beleza, um encanto poderoso, gostava da energia extrema da sua atitude, da sua coragem física e, acima de tudo, daquela voz de aço temperado, encarnação de uma inteligência sem réplica. Não me espantei, portanto, quando minhas previsões se confirmaram e minha irmã começou a amá-lo. Ele, por sua vez, amou-a loucamente. Quando Castor e eu viajamos com ele, vi Sartre bater o pé de impaciência, como uma criança, esperando que Évelyne lhe telefonasse, com raiva se ela demorava a ligar, e amaldiçoá-la com insultos e imprecações quando ela não o fazia. Nesses casos, era a mim, aliás, que ele lançava olhares carregados, primitivismo justificado porque Évelyne e eu éramos do mesmo sangue.
Ele era um ciumento sem nenhuma sublimação, e tão natural que nem procurava dar o troco. Quando o ciúme o remoía, seu humor ficava execrável, a paixão triste transformava a soberana voz metálica em voz raivosa de grande inquisidor. Se as respostas lhe satisfaziam, ele sossegava e não poupava elogios àquela que lhe alimentara as mais graves desconfianças. Passava horas ao telefone com ela, falando das peças que ela interpretava, interrogando-a sobre os atores, dissecando a direção até o cerne. Isso não o impedia de escrever a ela, no dia seguinte, longas cartas, nas quais retomava e desenvolvia os argumentos expostos oralmente. Eram, sobretudo e indissociavelmente, magníficas cartas de amor e de literatura.
Ainda o vejo, sob o caramanchão de um jardim de hotel em Albi, escrever a ela sem cessar, duas tardes seguidas, um inesquecível trecho de prosa sobre Albi, a vermelha, e sua catedral, que ele nos lia, à noite, a Simone de Beauvoir e a mim. Tínhamos assim primícias das declarações de amor à minha irmã e dos pensamentos de Sartre sobre Albi. Para nós, era natural, e para ela também. Onde foi parar essa carta de Albi? Quem se apoderou dela, quem a guardou ou vendeu depois da morte de Évelyne? Nunca saberei.
Como Deleuze, Sartre tinha instalado minha irmã a dois passos dele, no nº 26 da rue Jacob, um palacete de charme aristocrático, no qual ele alugava o apartamento do 1º andar, que dava para o pátio frontal, enquanto os fundos do prédio se abriam para um jardim melancólico, com um canteiro de grandes árvores de troncos esguios.
Descobri que aquele apartamento foi causa de um grande escândalo, pois um dos seus ocupantes foi mais tarde Alain Juppé, primeiro-ministro da República, acusado de pagar um aluguel bem mais baixo do que o preço de mercado. O palacete da rue Jacob era, na verdade, propriedade da prefeitura de Paris, e a concessão de moradia dependia da administração municipal. Eu me pergunto quais eram os vínculos de Sartre com esta, e também me digo – e fico feliz com isso – que o custo do aluguel não devia ser exorbitante para ele.
Os 180 metros quadrados desse ninho de amor eram maravilhosamente acolhedores. Como minha irmã tinha o senso da hospitalidade, era um prazer passar por lá, jantar ali em sua companhia e na de Sartre, no imenso salão que era ao mesmo tempo quarto de dormir, ou na cozinha, peça calorosa e equipada com o que havia de mais moderno.
A diferença em relação a Deleuze é que Saint-Germain-des-Prés era mais atraente do que a planície monótona, as artérias monótonas do 17º arrondissement. E que Sartre, embora continuasse a trabalhar a 300 metros dali, no minúsculo apartamento da rue Bonaparte, vivia praticamente com Évelyne, pelo menos no início, no fogo da relação. Ele a admirava sem reservas, mas ela nunca foi dominada, como com Deleuze. As crises infantis de ciúmes de Sartre não impediam que, filósofo da liberdade, ele houvesse posto a união deles, logo de saída, sob esse signo, o que possibilitou que minha irmã tivesse em relação a ele uma distância crítica, íntima e sarcástica, uma maneira de suportar e se defender daquilo que lhe era imposto.
Sendo Michelle Vian a amante oficial, a clandestinidade foi a lei de bronze para a recém-chegada, por mais que a chama do sultão da rue Bonaparte ardesse por ela. Évelyne não devia ocupar a ribalta, desfrutar do estatuto de favorita; teria de se satisfazer com a sombra e com a ideia de que o segredo dessa relação, ciumentamente guardado e compartilhado apenas pelos familiares do primeiro círculo – Castor e eu, por exemplo –, a dotava e aureolava de uma qualidade essencial, e preciosíssima, que a luz plena de uma ligação oficial não seria capaz de alcançar.
O que está mais vivo para mim quando penso nesses primeiros anos na rue Jacob é a grande alegria deles. Com Sartre, como com Castor, o único tema de conversa, inesgotável na verdade, era o mundo. O mundo era o que se havia lido nos jornais, nos livros, era a política, ou as pessoas que a gente conhecia, encontrava, os amigos, os inimigos, uma espécie de bisbilhotice infinita, safada, divertida, parcial, nem um pouco “enculturada”, para retomar um termo de Sartre, um fuxico interminável que a gente entretinha, retomava depois do trabalho.
Évelyne notabilizava-se nisso, com seu espírito agudo, cáustico, seu olhar penetrante, seu linguajar jocoso. As pessoas eram sensíveis a essa rara aliança, que nela havia, de beleza com inteligência. Sartre pagava o apartamento e lhe dava dinheiro, como a todas as outras, quando ela ficava sem ganhá-lo. “Aqui vão uns trocados”, era a fórmula consagrada quando ele lhe mandava um cheque.
Durante esses anos, minha irmã foi feliz, trabalhava no teatro, tinha Sartre, a quem se manteve fiel até decidir deixá-lo. Isso aconteceu porque a clandestinidade, fácil no começo, tornou-se insuportável com o correr do tempo. As férias de Sartre eram estatutariamente reservadas a Castor e a Michelle Vian. Évelyne decidiu parar quando compreendeu o caráter inalterável desse dispositivo. Ao fim de dois anos, ou três, não tenho certeza.
Mas ambos tinham apego à relação privilegiada que os ligava, e ela ficou no apartamento da rue Jacob, onde Sartre a visitava várias vezes por semana, ele a aconselhava em tudo e era o seu confidente mais próximo e mais ouvido. Como era ao mesmo tempo uma mudança e uma permanência, o termo ruptura é inadequado, se entendido em seu sentido corrente.
Em suas Memórias, Simone de Beauvoir se submeteu à omertà, calou-se sobre a relação amorosa entre Évelyne e Sartre, sei que ela sofreu com isso, um momento importante da sua história estava aniquilado. Contaram-me recentemente que Michelle Vian só depois da morte de Sartre ficou sabendo da sua ligação com minha irmã: tem gente que sabe ficar cega!
A delicadeza de Évelyne se assinalou também no seguinte: apesar de ter à sua volta uma verdadeira corte de homens bonitos e atraentes, atores, diretores ou intelectuais, o sucessor de Sartre não era nem mais bonito nem maior do que ele, e nada tinha de nababo. Era Robert Dupuy, para o qual ela havia inventado um diminutivo, “Rorrô”, um advogado caloroso e de inteligência viva. Sartre, que foi várias vezes convidado a jantar com o casal, gostava muito dele.
Creio que minha irmã se sentia bem com os homens feios, eles a tranquilizavam, por ser o amor, a seu ver, algo bem diferente da miragem das belas aparências. Ela vivia contraditoriamente sua própria beleza, evidente ao olhar dos outros, problemática para ela: não se sentia sua dona, nunca se considerou uma “bela de estirpe”, e isso era fonte constante de incerteza, de uma interrogação inquieta para a qual nunca haveria resposta. Uma mulher bonita nada mais é que uma feia disfarçada, escreveu o próprio Sartre em algum lugar. E não é por acaso que ela lia e relia sem parar Bela do Senhor, de Albert Cohen, cujo materialismo feroz a encantava.
Todo esse período da vida de Évelyne, com Sartre e depois dele, coincide com a guerra da Argélia. Como todos nós, ela havia tomado partido pela independência e militou, à sua maneira, ardorosamente. Participou de todas as manifestações, apanhou várias vezes da polícia. Aconteceu de sermos detidos juntos e passarmos uma noite inteira numa cela da delegacia da praça Saint-Sulpice, recitando um para o outro dísticos de tragédia ou estrofes alternadas de A Lenda dos Séculos.
Vários argelinos procurados pela polícia foram abrigados na rue Jacob quando ela ensaiava Os Sequestrados de Altona, magnífica peça de Sartre sobre o ódio do homem pelo homem, que transpõe para a Alemanha pós-hitlerista a denúncia dos crimes e torturas que cometíamos do outro lado do Mediterrâneo. A estreia foi no Théâtre de la Renaissance, em setembro de 1959, e o papel de Johanna, de Évelyne, fora efetivamente escrito para ela. Todas as peças de Sartre, como se sabe, foram escritas para mulheres. Mas Os Sequestrados foi a única peça que ele concebeu para Évelyne, com a qual não tinha mais relação amorosa havia vários anos.
Os Sequestrados teve problemas desde os ensaios. Sartre teve de cortar e de tornar a cortar a peça, comprida demais, e assumir ele próprio uma parte da direção, a tal ponto que se acumulavam os mal-entendidos com François Darbon. Tudo se passou numa tensão crescente, o espetáculo não foi compreendido, Poirot-Delpech, o crítico pontifical do Le Monde, falou tolamente de “defesa ilustrada de tese” e, com exceção de Serge Reggiani, que permanecia em cena três horas, os outros atores, inclusive minha irmã, foram perdoados por não terem conseguido dar vida a uma obra tão “glacial e desencarnada”. Sartre não escrevera nada para o teatro há quatro anos, e faziam-no pagar por suas tomadas de posição políticas num clima de pré-guerra civil.
Na tarde do dia 18 de novembro de 1966, Pierre Lazareff, diretor do France-Soir, da revista Elle e de todas as publicações do grupo mais importante da imprensa francesa – eu escrevia então uma grande reportagem por mês para Elle, dirigida por sua mulher Hélène –, me chamou a sua sala, no 2º andar do prédio da rue de Réaumur: “Claude, venha me ver, é urgente”, sua voz estava cheia de angústia porque ele era um homem bom. Ele me disse: “Vá imediatamente à rue Jacob. Aconteceu uma desgraça.”
Foi Norbert Bensaïd quem abriu a porta, o rosto decomposto, ele havia descoberto uma hora antes o corpo da minha irmã. Corri para a sua cama, ela estava deitada de lado, com um rosto lindo, doce, calmo; afastei cobertas e lençóis, seu corpo ardia, era impossível me conformar com a ideia de que o sopro da vida a tinha deixado para sempre. Incrédulo, perguntei a Norbert se havia algo a fazer, se podíamos reanimá-la. Ele respondeu que ela estava morta havia horas; seu corpo estava quente porque o apartamento estava excessivamente aquecido. Ela havia absorvido não só barbitúricos, mas também um veneno que agia irreversivelmente. Évelyne não tinha se dado nenhuma chance de escapar, tanto que proibira a faxineira de vir, e avisou Norbert, que se preocupava muito com ela e lhe telefonava quase todos os dias, de que não estaria em Paris. Ela havia feito as coisas de tal modo que só poderiam descobri-la morta.
Havia deixado três cartas, bem em evidência, cada uma com seu envelope e endereço, escritas a lápis, para Sartre, para sua amiga Dolores Ruspoli, para mim. As cartas eram breves, mas foi a Dolores que deve ter escrito por último, porque de repente, no meio de uma linha, a caligrafia mergulha, cai, passando da horizontal à vertical, sinal de que o veneno age e lhe tira a força de continuar. Ela havia feito provavelmente o gesto fatal no meio da noite, por volta das quatro da manhã.
As cartas provam que o fez com plena lucidez, elas não têm páthos, ela põe rapidamente em ordem suas coisas, sabe que está morrendo. A mim: “Meu Claudie, estão aqui os textos de todo o programa, quero que diga a Éliane que ela acompanhe bem a montagem do filme, que os textos essenciais sejam ditos; se você puder ir vê-la, para que eu tenha feito pelo menos alguma coisa boa. Claude, meu irmão, meu irmãozinho, um beijo, É.” A Dolores: “Minha Dodo, não deixem que batam muito em mim, só isso. Não me acerto mais comigo mesma, apesar de exteriormente tudo ir muito bem. Pelo menos nisto terei tido sucesso. Eu te amo. Quero que você fique com o apartamento. Robert vai te falar sobre isso.”
Não sei mais se li essas cartas logo depois de tê-la visto em sua cama, ou mais tarde. Não tenho sua carta a Sartre, mas lembro que era carinhosa. Como todos os dias àquela hora, Castor e ele trabalhavam juntos em seu novo apartamentinho, no boulevard Raspail. Norbert e eu nos abraçamos em prantos, era insuportável. Norbert foi embora, fiquei ao lado dela, não iria deixá-la sozinha e, naquele tête-à-tête com minha irmã morta, um remorso começou a me invadir, e nunca mais me abandonou: se ela tivesse me ligado antes de se envenenar, eu teria acudido e talvez impedido aquilo. Mas ela não o fez, ela sabia que Judith, que vivia comigo, não gostava dela, não teria ousado, não havia ousado.
Eu me dizia que era preciso avisar todo o mundo, meu irmão, Paulette, Monny, meu pai, Castor e Sartre, mas fiquei um bom tempo incapaz de agir, tanto me custava ser o anunciador da tragédia, tanto isso me machucava. Liguei para Castor, que se desfez em lágrimas, disse a ela: “Vocês têm de vir”, e ouvi-a falando com Sartre. Ela me disse: “Eu vou, Sartre não quer ir.” Insisti: “Ele não pode não vir, não tem esse direito.” Ele veio. A primeira palavra do meu irmão, ao chegar – ele era então um ocupadíssimo astro da mídia –, foi espantosa. Pegou-me pelos ombros e disse: “Claudie, jure que você não vai fazer a mesma coisa!”
Toda Paris veio, todo Saint-Germain-des-Prés, todos os atores com quem ela trabalhou, todos os namorados, todos os amantes, os antigos, os recentes, com a notória exceção de Deleuze e Serge Rezvani, vinham de dia ou de noite, num velório ininterrupto e caloroso. Sartre e Castor passavam lá várias horas todas as noites, bebericando seu Chivas, os incontáveis amigos de Évelyne ficavam felizes em vê-los ali, em falar com eles na simplicidade, cada um evocando suas lembranças pessoais da viva. De vez em quando, um ou outro se afastava do grupo e ia sentar na cama de Évelyne, acariciando-lhe os cabelos ou beijando sua testa fria.
Paulette, arrasada tanto pela maneira como sua filha morreu quanto por sua morte mesma, dava vazão a seus dons detetivescos, a seus talentos de investigadora, não largando sua presa, e cobrava publicamente razões e satisfações. Ela descontava em mim, em Sartre, e eu era obrigado a inventar mil artimanhas para o confronto não ocorrer. Mas todo suicídio tem de ter um culpado, um bode expiatório. O mais evidente era Claude Roy: eu havia descoberto suas cartas no apartamento, a ideia de ele comparecer ao enterro era insuportável para todos nós, e Sartre lhe mandou uma carta dura, cujos termos esqueci, dizendo que sua presença não era desejada. Claude não foi, mas guardei na memória as primeiras palavras da sua resposta a Sartre: “Sartre, sua dor devia ser atroz, sua carta era.” Reconhecemos que ele sabia escrever.
Retivemos Évelyne tempo demais em sua casa, perto de dez dias, o cheiro adocicado do seu cadáver pairava pelo cômodo, o enterro, não podendo ser realizado em fim de semana, foi retardado para o início da semana seguinte e a funerária teve de armar seu corpo com uma couraça de gelo. O pátio das árvores grandes, o pátio de entrada do 26, a própria rue Jacob transbordavam de uma multidão silenciosa, consternada, recolhida, quando descemos seu caixão para levá-la ao cemitério de Montparnasse. Todos os que a acompanharam haviam vivido a morte de Évelyne Rey como um terremoto.
A cada ano eu achava mais injusto que Claude Roy fosse considerado o bode expiatório. Se houve um erro, ele foi coletivo, e somos muitos os que carregam a responsabilidade. Não convém jogar esse jogo. Encontrei Claude um dia no Festival d’Avignon, disse-lhe que lamentava tudo e lhe propus a paz. Fizemos as pazes.
O suicídio da minha irmã tinha me arrasado, eu pensava que teria de viver agora permanentemente sob a sombra da sua morte. Seria a única forma de fidelidade. Uma amiga de Sartre, Claude Day, que eu conhecia pouco, a quem tinha me confessado, e que também havia passado por grandes desgraças, me respondeu: “Está enganado, você vai esquecer, a vida sempre leva a melhor.” Ela tinha razão. E não tinha. Não esqueci nada, vivi.
Simone de Beauvoir relatou nosso encontro amoroso. Ela o fez a seu modo, eu o farei ao meu. Não temos, é normal, as mesmas lembranças. Em julho de 1952, depois da publicação do meu segundo artigo no Temps Modernes, resolvi ir a Israel, passar um tempo lá e fazer uma reportagem como fizera na Alemanha Oriental.
Depois de uma festa, tive de manhã a coragem, ou a audácia, de ligar para Simone de Beauvoir e convidá-la para ir ao cinema à noite. Na manhã seguinte, eu partiria de Paris para Marselha, onde embarcaria com destino a Israel. Séria, aparentemente nem um pouco disposta a perder tempo, ela perguntou: “Para ver qual filme?” Respondi: “Qualquer um”, o que era uma maneira de dar a entender que o cinematógrafo não era em absoluto a finalidade da minha proposta. Ela entendeu.
Não vimos filme nenhum, mas a noite toda, do cômodo único, inteiramente forrado de vermelho, que ela ocupava no último andar do nº 11 da rue de la Bûcherie, contemplamos Notre-Dame noturna e irreal. Não lembro mais se jantamos – o que aconteceu depois ocultou o resto.
Tomei-a nos braços, estávamos ambos igualmente emocionados e intimidados. Ficamos muito tempo enlaçados depois de fazer amor. Ela encostou a cabeça em meu peito e disse: “Oh, como bate o seu coração!” Aquilo me perturbou. E de repente, com precipitação, como se ela me devesse absolutamente e sem demora esta verdade, quando eu não pedia nada: “Preciso te dizer, tive cinco homens na minha vida”, e nomeou-os. Acrescentou, novamente sem eu ter pedido nada, que não tinha mais, havia tempo, relação amorosa e sexual com Sartre. Minha perturbação dobrou: não seria uma aventura de uma noite; ela instaurava entre nós outra relação, infinitamente mais grave. Eu seria o sexto homem, ela havia decidido assim, o orgulho e o medo lutavam dentro de mim.
Ela foi ao encontro de Sartre na Itália, ao volante de um Simca Aronde, seu primeiro carro, que ela dirigia pela primeira vez. Fui pegar o trem para Marselha.
Tradução de Eduardo Brandão e Dorothée de Bruchard
[1] Apelido de Simone de Beauvoir: trocadilho com a palavra inglesa beaver, “castor”.