Joshua Bell chega à estação L'Enfant Plaza, em Washington, onde executou seis peças clássicas de extraordinária beleza para uma numerosa platéia, que cruzou por ele sem se dar conta do que via e ouvia FOTO: MICHAEL WILLIAMSON_2007_THE WASHINGTON POST
Pérolas aos poucos
Uma experiência extraordinária para testar a nossa capacidade de reação ao belo: botar um virtuose para tocar no metrô
Gene Weingarten | Edição 10, Julho 2007
Ele desceu do metrô na estação L’Enfant Plaza e encostou-se numa parede ao lado de uma cesta de lixo. Por quase todos os critérios, era um sujeito que não chamava a atenção: um homem branco, mais ou menos jovem, vestindo jeans, camiseta de manga comprida e boné do time de beisebol Washington Nationals. De uma caixa, ele tirou o violino. Deixando a caixa aberta no chão, na frente dos pés, teve o cuidado de plantar ali algumas notas de 1 dólar, e várias moedas, para atrair mais dinheiro. Girou o corpo, para ficar de frente para o fluxo dos pedestres e começou a tocar.
Eram 7h51 da manhã, da sexta-feira, 12 de janeiro, hora do rush matinal. Ao longo dos 43 minutos seguintes, enquanto o violinista executava seis peças clássicas, 1.097 pessoas passaram à sua frente. Quase todos estavam a caminho do trabalho que, no caso da grande maioria, era um emprego público. A L’Enfant Plaza fica no núcleo da área de Washington ocupada pela administração federal, e ali transitam burocratas de nível médio, com os seus títulos um tanto indeterminados e estranhamente intercambiáveis: analista de projeto, gerente de iniciativa, programador de orçamento, especialista, consultor, supervisor.
Cada um dos passantes precisava fazer uma escolha rápida, uma escolha habitual para os usuários do transporte coletivo em qualquer área urbana, onde artistas de rua fazem parte da paisagem: parar e escutar? Acelerar o passo com uma mistura de culpa e irritação, incomodado com a inesperada demanda feita ao seu tempo e dinheiro? Jogar 1 dólar na caixa aberta, só por educação? E a sua decisão muda, se o músico for muito ruim? E se for muito bom? Temos tempo para a beleza? Não devíamos ter? Qual é a matemática moral desse momento?
Naquela sexta-feira de janeiro, essas questões particulares seriam respondidas de maneira incomumente pública. Ninguém sabia, mas aquele tocador de violino, de pé junto à parede nua, na galeria subterrânea de acesso à estação do metrô, perto do alto da escada rolante, era um dos melhores instrumentistas eruditos do mundo, executando algumas das mais elegantes peças musicais jamais escritas, num dos violinos mais valiosos jamais fabricados por mãos humanas. A apresentação foi encomendada pelo Washington Post como uma experiência em matéria de contexto, percepção e prioridade – além de servir para uma avaliação inapelável do gosto do público: num cenário banal e numa hora inconveniente, a beleza conseguiria transcender?
O instrumentista não executou melodias populares cuja familiaridade, por si mesma, bastasse para atrair o interesse dos passantes. O teste era outro. Apresentou obras-primas que resistiram aos séculos apenas pelo seu brilho, música sublime condizente com a imponência das catedrais e das grandes salas de concerto.
A acústica se mostrou surpreendentemente favorável. Embora a galeria tenha sido construída com fins utilitários, para servir como área de passagem entre a escada rolante do metrô e as calçadas do lado de fora, de alguma forma ela conseguia capturar o som do violino, para espalhá-lo redondo, rico em ressonâncias. Muito já se disse sobre a semelhança entre o violino e a voz humana. Nas mãos de mestre daquele instrumentista, ele soluçava, ria e cantava – sublime, lamentoso, importuno, adorador, volúvel, implacável, brincalhão, apaixonado, alegre, triunfal, suntuoso.
E então, o que vocês acham que aconteceu?
Fizemos esta pergunta a Leonard Slatkin, diretor musical da National Symphony Orchestra. O que ele achava que ocorreria, hipoteticamente, se um dos maiores violinistas do mundo começasse a tocar incógnito para uma platéia de mais ou menos mil passantes, na hora do rush?
“Vamos supor”, respondeu Slatkin, “que ele não seja reconhecido, e que todo mundo ache que ele é mesmo só um músico de rua… Ainda assim, se ele for realmente muito bom, não vai passar despercebido. Juntaria um público maior na Europa, é verdade, mas… está bem, das mil pessoas, o meu palpite é de que umas 35 ou 40 reconheceriam a qualidade do que estavam escutando. E que, talvez, de 75 a 100 parassem para passar mais algum tempo ouvindo.”
Quer dizer que iria juntar gente?
“Ah, claro.”
E quanto dinheiro ele conseguiria recolher?
“Uns 150 dólares.”
Obrigado, maestro. Mas na verdade não estamos falando de um caso hipotético. Aconteceu realmente.
“E os meus palpites, passaram perto? E quem era o músico?”
Joshua Bell.
“Não!!!”
Ex-menino prodígio, aos 39 anos Joshua Bell é um virtuose internacionalmente consagrado. Três dias antes de se apresentar na estação do metrô, Bell enchera o majestoso Symphony Hall de Boston, onde assentos apenas razoáveis foram vendidos por 100 dólares. Duas semanas mais tarde, no Music Center de Strathmore, em North Bethesda, ele tocaria para uma platéia lotada e dominada por tamanho respeito pela sua arte que sufocava a tosse até nas pausas entre os movimentos. Mas naquela sexta-feira de janeiro, Joshua Bell era apenas mais um pedinte, competindo pela atenção de passantes apressados, a caminho do trabalho.
A idéia tinha sido apresentada a Bell pela primeira vez pouco antes do Natal, em torno de um café numa lanchonete da área do Capitólio. Natural de Nova York, ele estava em Washington para se apresentar na Biblioteca do Congresso e visitar os cofres da biblioteca, a fim de examinar um tesouro fora do comum: um violino do século XVIII que pertencera ao virtuose e compositor austríaco Fritz Kreisler. Os curadores convidaram Bell a tocar aquele violino; e o som ainda estava ótimo.
“Eu acho o seguinte”, disse Bell, tomando um gole do seu café. “Acho que eu podia fazer uma turnê, tocando a música de Kreisler…”
Sorriu.
“… no próprio violino dele.”
Uma idéia brilhante, extraordinária – parte inspiração e parte truque publicitário –, típica de Bell, que nunca se furtou ao desempenho de showman ao mesmo tempo em que a sua carreira de concertista ia se tornando mais e mais soberba. Tocou como solista à frente das melhores orquestras americanas e estrangeiras, mas também fez aparições em Vila Sésamo, em talk-shows de fim de noite e em filmes de longa-metragem. Era Bell quem tocava na trilha sonora do filme O Violino Vermelho, de 1998. (E também aparecia em pessoa, tocando para uma Greta Scacchi nua.) Quando o compositor John Corigliano recebeu o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original para o filme, agradeceu a Bell que, disse ele, “toca como um deus”.
Quando perguntamos a Bell se ele aceitava tocar na hora do rush, vestindo roupas comuns, ele perguntou: “Como um dublê?”. Bem, sim. Um dublê.
“Uma idéia divertida”, disse ele.
Bell é alto e bonito, tem uma bela estampa e, no palco, a estampa pega fogo. Quando se apresenta, geralmente é o único homem debaixo das luzes que não está de gravata branca nem de casaca – ele vem até a boca de cena para receber a ovação em pé da platéia com roupas que lembram o Zorro, calças pretas e uma camisa, também preta, para fora das calças. Seu belo penteado, ao estilo descuidado dos Beatles, também é um dos seus fortes. Por ter uma técnica cheia de corpo – atlética e passional – ele quase dança com o instrumento, o que faz voar seus cabelos.
Ele é solteiro e heterossexual, um fato que não passa despercebido por parte das suas fãs. Em Boston, enquanto Bell executava o duríssimo Concerto para Violino em Sol Menor de Max Bruch, as poucas jovens presentes na platéia quase desapareciam, em meio a um mar de cabeças prateadas. Mas aparentemente todas elas – uma especial seleção de jovens bonitas – aglomeravam-se junto à porta de saída dos artistas depois do espetáculo, esperando por um autógrafo. E é sempre assim.
Bell vem recebendo os elogios mais exagerados desde a puberdade: a revista Interview publicou, certa vez, que a maneira como ele toca “consegue comunicar aos seres humanos nada menos do que a razão por que eles se dão ao trabalho de estar vivos”. E aprendeu a aceitar essas homenagens com elegância, uma reverência tímida, e bufando de leve.
Para participar da sua apresentação anônima, Bell só impôs uma condição. O evento lhe foi descrito como um teste para descobrir se, num contexto incongruente, as pessoas comuns seriam capazes de reconhecer a genialidade. Sua condição: “Não me sinto bem de ver vocês falando em gênio e genialidade”. Para Bell, ‘gênio’ é uma palavra usada em excesso; pode ser aplicada a alguns dos compositores cuja música ele toca, mas não a ele próprio. Seu talento é amplamente interpretativo, disse ele, e dar a entender coisa diferente seria impróprio e impreciso.
Não será um desrespeito às regras, porém, lembrar que o termo em questão, especialmente da maneira como é aplicado no campo da música, sempre se refere a um certo brilho congênito – um talento inato, acima do normal, que numa fração da humanidade se manifesta cedo e, muitas vezes, de maneira dramática.
Um fato biográfico intrigante acerca de Bell é que ele recebeu as suas primeiras aulas de música aos 4 anos de idade, em Bloomington, Indiana. Seus pais, ambos psicólogos, decidiram que algum aprendizado formal podia ser uma boa idéia depois de verem que a criança tinha prendido elásticos de borracha aos puxadores das gavetas da cômoda e vinha replicando melodias clássicas de ouvido, empurrando e puxando as gavetas para mudar as notas.
Para ir do seu hotel ao metrô, uma distância de três quarteirões, Bell tomou um táxi. Não que seja preguiçoso ou tenha alguma dificuldade de locomoção. Foi pelo seu violino.
Bell sempre se apresenta com o mesmo instrumento, e desistiu de usar algum outro na ocasião. Chamado de Gibson ex-Huberman, foi feito à mão, em 1713, por Antonio Stradivari, durante o “período de ouro” do mestre italiano, perto do final da sua carreira. Foi, quando Stradivari teve acesso aos melhores cortes de madeira de espruce, bordo e salgueiro, e quando sua técnica fora refinada à perfeição.
“O nosso conhecimento da acústica ainda é incompleto”, disse Bell, “mas ele, de alguma forma, sabia tudo.”
Bell nunca menciona Stradivari pelo nome. Só como “ele”. Quando mostra seu instrumento a alguém, segura-o com grande cuidado pelo braço, apoiando-o num dos joelhos. “Ele fabricou cada parte deste instrumento com a espessura perfeita”, diz Bell, fazendo o violino girar. “Se você retirasse com a plaina mais 1 milímetro de madeira em qualquer ponto, o som ficaria totalmente desequilibrado.” Ainda hoje, não existem violinos que soem melhor que os de Stradivari feitos na década de 1710.
A frente do violino de Bell está em condição quase perfeita, com uma cor e um brilho profundos e ricos. As costas estão maltratadas, com o acabamento vermelho-escuro manchado de um tom mais claro, numa certa área, deixando a madeira exposta.
“O acabamento deste violino nunca foi refeito”, diz Bell. “Ainda está com o verniz original. Muita gente atribui certos aspectos do som ao verniz. Cada fabricante tinha a sua fórmula secreta.” Dizem que Stradivari fabricava o seu com um coquetel, cuidadosamente balanceado, de mel, clara de ovo e goma arábica extraída de árvores subsaarianas.
Como o instrumento do filme O Violino Vermelho, o de Bell tem um passado de mistério e peripécias. Foi roubado duas vezes do seu ilustre proprietário anterior, o virtuose polonês Bronislaw Huberman. A primeira vez, em 1919, desapareceu do quarto de hotel de Huberman, em Viena, mas foi devolvido pouco depois. Da segunda vez, quase vinte anos depois, foi furtado do seu camarim no Carnegie Hall. E ele nunca tornou a ver o violino. Foi só em 1985 que o ladrão – um violinista menor de Nova York – confessou o roubo à mulher no leito de morte, e apresentou o instrumento.
Bell comprou o violino poucos anos atrás. Precisou vender o Stradivari que já possuía e obter boa parte do resto do dinheiro por meio de um empréstimo.Dizem que o preço foi 3,5 milhões de dólares.
Foi esse o motivo pelo qual, no frio do começo da manhã daquele dia de janeiro, Joshua Bell tomou um táxi para percorrer três quarteirões até a Linha Laranja do metrô de Washington, e de lá andar uma estação até a L’Enfant.
Em matéria de estações de metrô, a L’Enfant é das mais plebéias. Antes mesmo de chegar a ela, já se vê que não é muito respeitada. Os condutores do metrô nunca conseguem pronunciar seu nome direito ao microfone. “Leifã”, “Lafã”, “Elefante”…
No alto da escada rolante ficam uma banca de engraxate e um quiosque muito movimentado, que vende jornais, bilhetes de loteria e tem uma parede inteira de revistas. As revistas de mulher pelada têm muita saída, mas quem mais recebe gente é o ponto-de-venda de bilhetes de loteria, e os fregueses formam fila para a Loto diária de seis números. Bem ao lado fica uma máquina para conferir os resultados, pela qual você pode passar o seu bilhete depois do sorteio para ver se foi sorteado. Aos pés do aparelho, uma triste pilha de papéis amassados.
Naquela sexta-feira, as pessoas que faziam fila na loteria para tentar ganhar alguma coisa iam tirar a sorte grande – uma entrada gratuita e de primeira fila para o concerto de um dos músicos mais famosos do mundo. Mas só se eles tivessem condições de se dar conta disso.
Bell decidiu começar a apresentação com a Chaconne da Partita No. 2 em Ré Menor de Johann Sebastian Bach. Para ele, a Chaconne não é só “umas das músicas mais lindas jamais escritas, mas uma das maiores obras humanas. É uma peça de grande força espiritual, poderosa do ponto de vista emocional e estruturalmente perfeita. Além disso, foi escrita para violino solo, de maneira que não vou apelar com alguma transcrição feita nas coxas”.
E Bell não disse, mas a Chaconne de Bach também é tida como uma das peças para violino mais difíceis de dominar. Muitos tentam; poucos conseguem. É exaustivamente longa – catorze minutos – e consiste inteiramente de uma única progressão musical sucinta, repetida em dezenas de variações, de maneira a criar uma arquitetura sonora de complexidade assustadora. Composta em torno de 1720, às vésperas do Iluminismo europeu, é considerada uma celebração do alcance das possibilidades humanas.
Pois foi com a Chaconne que Bell começou.
E sem dúvida estava falando sério quando prometeu não sacrificar em nada o seu desempenho. Tocou com entusiasmo acrobático, inclinando o corpo para acompanhar a música e erguendo-se nas pontas dos pés nas notas mais altas. O som era quase sinfônico, espalhando-se por todas os cantos da feia galeria enquanto os pedestres não paravam de transitar.
Três minutos transcorreram antes que alguma coisa acontecesse. Sessenta e três pessoas já tinham passado quando, finalmente, registrou-se a primeira reação. Um homem de meia-idade alterou suas passadas por uma fração de segundo, virando a cabeça para dar-se conta de que parecia haver ali um sujeito tocando música. É verdade que não parou de andar, mas já foi alguma coisa.
Meio minuto mais tarde, Bell recebeu sua primeira doação. Uma mulher jogou 1 dólar na caixa e seguiu seu caminho, apressada. A apresentação já durava seis minutos quando alguém realmente parou e encostou na parede, para ouvir.
Mas as coisas nunca chegaram a ficar muito melhores. Nos quase três quartos de hora que Joshua Bell tocou, sete pessoas pararam o que estavam fazendo para ficar por perto e acompanhar a música por, pelo menos, um minuto. Vinte e sete deram dinheiro,– totalizando 32 dólares e trocados. O que nos deixa com 1 070 pessoas que passaram por ali às pressas, sem perceber nada, muitas a apenas 1 metro do músico, poucas nem sequer virando o rosto para olhar.
Toda a experiência foi gravada em vídeo, por uma câmera oculta. Acelerada, a fita se transforma num desses filmes mudos de atualidade da época da I Guerra Mundial. As pessoas passam correndo aos saltos ou aos arrancos, com copos de café nas mãos, telefones celulares no ouvido, crachás sacudindo na barriga, uma sinistra dança macabra em honra da indiferença, da inércia e da pressa cinzenta e enlouquecida da modernidade.
Mesmo nesse ritmo acelerado, porém, os movimentos do violinista continuam fluidos e graciosos, e ele parece tão diferente do seu público – invisível, inaudível, sobrenatural – que você se surpreende pensando que na verdade ele não estava lá. Era um fantasma. E é só então que você percebe. Era ele o único real. Os outros é que eram os fantasmas.
Se um músico extraordinário toca músicas extraordinárias mas ninguém escuta… será que ele é mesmo extraordinário?
Eis um debate epistemológico bem antigo – mais antigo, na verdade, que o koan sobre a queda da árvore na floresta (se uma árvore cai na floresta e não há ninguém para ouvir, ela produz algum som?). Platão já falava dele, assim como filósofos de dois milênios depois. O que é a beleza? Será um fato mensurável (Gottfried Leibniz), meramente uma opinião (David Hume) ou um pouco de ambos, matizado pelo estado de espírito imediato do observador (Immanuel Kant)?
Vamos ficar com Kant, porque ele está obviamente certo, e porque ele nos leva quase diretamente a Joshua Bell, sentado num restaurante de hotel, tomando seu café-da-manhã, tentando descobrir, com um seco senso de humor, que diabos tinha acontecido naquela saída do metrô.
“No começo”, diz Bell, “eu estava só concentrado em tocar. Não enxergava direito o que acontecia à minha volta…”
Tocar violino parece uma atividade absorvente, tanto do ponto de vista físico quanto mental, mas Bell diz que para ele a mecânica da execução já se tornou em parte espontânea, consolidada pela prática e pela memória muscular. É como um malabarista, diz ele, capaz de manter as bolas no ar enquanto interage com a platéia. O que mais lhe passa pela cabeça enquanto toca, diz Bell, é capturar a emoção como uma narrativa. “Quando você toca uma peça de violino, você se transforma num narrador, alguém que conta uma história.”
No caso da Chaconne, a abertura é carregada de uma sensação de reverência cada vez mais intensa. O que o manteve ocupado por algum tempo. Mais adiante, porém, ele começou a espiar com o canto dos olhos…
“E era uma sensação estranha, de que as pessoas na verdade estavam… ahn…”
A palavra não vem com facilidade.
“… me ignorando.”
Bell ri. De si mesmo.
“Numa sala de concerto, fico perturbado quando alguém tosse ou um celular começa a tocar. Mas ali, as minhas expectativas baixaram muito depressa. E comecei a receber com alegria o mínimo sinal de reconhecimento, até mesmo um olhar de passagem. E me sentia estranhamente agradecido quando alguém jogava 1 dólar na caixa, em vez simples moedas.” Isto dito por um homem cujos talentos podem ser pagos à base de 1 000 dólares por minuto.
Antes de ter começado, Bell não sabia o que esperar. Só sabe que, por algum motivo, estava nervoso. “Não era exatamente medo do público, mas uma certa palpitação”, diz ele. “Eu estava um pouco tenso.” Bell já tocou, literalmente, para as cabeças coroadas da Europa. Por que aquela ansiedade no metrô de Washington?
“Quando você toca para um público pagante”, explica Bell, “você já foi validado. E nem me passa pela cabeça que eu precise ser aceito. Eu já fui aceito. Mas ali, o que me passava pela cabeça era: “E se eles não gostarem de mim? E se ficarem irritados com a minha presença?“.
Em suma, Bell era uma obra de arte sem moldura. O que, conforme veremos, pode ter muito a ver com o que aconteceu – ou, mais precisamente, deixou de acontecer – nesse dia 12 de janeiro.
Pelas mãos de Mark Leithauser já passaram mais obras-primas de arte do que pelas mãos de qualquer rei, papa ou membro da família Medici. Curador-chefe da National Gallery, é ele quem supervisiona o emolduramento dos quadros. Leithauser acha que tem alguma idéia do que aconteceu naquela estação de metrô.
“Digamos que eu pegasse uma das nossas obras-primas mais abstratas, por exemplo, um Ellsworth Kelly, tirasse da moldura, descesse com ele os 52 degraus que as pessoas costumam subir para chegar à National Gallery, e o levasse até um restaurante. É um quadro que vale 5 milhões de dólares. E o restaurante é um desses onde se encontram obras de arte originais à venda, pintadas por algum jovem muito produtivo da Escola de Corcoran. E digamos que eu pendurasse o Kelly na parede e pedisse 150 dólares por ele. Ninguém iria reparar. Um curador de arte, talvez, poderia bater com os olhos no quadro e dizer: ‘Olhe só, aquele quadro parece um pouco com as coisas de Ellsworth Kelly. Passe o sal, por favor'”.
O que Leithauser quer dizer é que não devemos nos apressar em rotular os passantes do metrô de insensíveis sem sofisticação. O contexto é sempre importante.
Kant diz a mesma coisa. Ele levava a beleza a sério. Na Crítica da Faculdade do Juízo, Kant afirma que a capacidade de apreciar a beleza está relacionada à nossa capacidade de formular juízos morais. Ele fazia uma advertência. Paul Guyer, da Universidade da Pensilvânia, um dos mais proeminentes estudiosos de Kant dos Estados Unidos, afirma que o filósofo alemão do século XVIII sentia que, para apreciar devidamente a beleza, as condições em que ela era vista precisavam ser as melhores possíveis.
“E as melhores condições possíveis”, observa Guyer, “não ocorrem a caminho do trabalho, pensando no relatório que precisa ser apresentado ao chefe, talvez com os sapatos apertados.”
Para entender o que aconteceu, precisamos voltar a fita e assisti-la de novo. Desde o começo, desde o primeiro momento em que o arco de Bell encostou nas cordas.
Um sujeito branco, calças cáqui, casaco de couro, pasta. Trinta e poucos anos. John David Mortensen está na última etapa da sua viagem diária de ônibus-e-metrô para o trabalho. Está subindo a escada rolante. É uma subida demorada – um minuto e quinze segundos se você ficar parado no mesmo degrau. Assim, como a maioria das outras pessoas que passa por Bell nesse dia, Mortensen já ouvira um bom trecho de música antes de vislumbrar o instrumentista pela primeira vez. Como a maioria deles, percebe que a música soa muito bem. Mas como muito poucos deles, quando chega ao alto, não passa às pressas como se Bell fosse um obstáculo incômodo a evitar. Mortensen é a primeira pessoa a parar – o sujeito da marca dos seis minutos.
E não que não tivesse mais nada a fazer. Mortensen é diretor de projeto de um programa internacional do Departamento de Energia e, naquele dia, precisava participar de um exercício mensal de orçamento, que não é a parte mais estimulante do seu trabalho. “Você passa em revista as despesas do mês anterior”, diz ele, “prevê os gastos do mês seguinte.”
No vídeo, dá para ver Mortensen saindo da escada rolante e olhando em volta. Ele localiza o violinista, pára, começa a se afastar, mas é atraído de volta. Verifica a hora no celular – está três minutos adiantado para o trabalho – e se encosta numa parede para escutar.
Mortensen não conhece nada de música clássica; o máximo a que chega é rock clássico. Mas o que ouviu tem alguma coisa de que gosta muito.
Na verdade, ele chega ao alto da escada no momento em que Bell começa a segunda parte da Chaconne. (“É o ponto”, diz Bell, “em que ela passa de um tom menor, mais triste, para um tom maior. O que transmite um sentimento religioso, de exaltação.”) O arco do violinista começa a dançar; a música fica acelerada, alegre, teatral, grandiosa.
Mortensen não entende nada de tons menores ou maiores: “Não sei o que era”, diz ele, “mas eu me senti em paz.”
E assim, pela primeira vez na sua vida, Mortensen pára para ouvir um músico de rua. Fica ali os três minutos de que dispunha, enquanto 94 pessoas passam apressadas. Pela primeira vez na vida, sem saber direito o que tinha acontecido, mas sentindo que tinha sido especial, John David Mortensen dá dinheiro a um músico de rua.
Há seis momentos no vídeo que Bell acha especialmente dolorosos de reviver. “A hora do embaraço”, como ele os chama. É o que acontece quando ele acaba cada uma das peças: nada. A música pára. As mesmas pessoas que não reparavam nele enquanto tocava também não reparam que acabou. Nenhum aplauso, nenhum sinal de reconhecimento. De maneira que Bell se limita a emitir um acorde breve e nervoso – o equivalente, para o músico constrangido, a dizer “Ahn, bom, então vamos ao próximo número…” – e ataca a peça seguinte.
Depois da Chaconne, é a Ave Maria de Schubert, que surpreendeu alguns críticos quando estreou em 1825: Schubert raramente manifestava algum sentimento religioso nas suas composições, mas ainda assim a Ave Maria é uma admirável obra de adoração à Virgem Maria. Esta prece musical tornou-se uma das peças religiosas mais conhecidas e duradouras de toda a história.
Poucos minutos depois de começada, ocorre um fato revelador. Uma mulher emerge da escada rolante junto com seu filho em idade pré-escolar. A mulher caminha apressada e, portanto, o menino também. Ela o puxa pela mão.
“Eu estava muito atrasada”, lembra Sheron Parker, diretora de informática de uma repartição federal. “Tinha uma aula de treinamento às oito e meia, e antes precisava entregar Evvie para a professora, depois correr de volta para o trabalho.”
Evvie é seu filho, Evan. Evan tem 3 anos.
Evan aparece claramente no vídeo. É o lindo menino negro de parka que fica virando a cabeça tentando olhar para Joshua Bell enquanto é puxado na direção da porta.
“Havia um músico”, lembra Sheron Parker, “e o meu filho ficou intrigado. Ele queria parar para ouvir, mas eu estava sem tempo.”
E assim, ela faz o que precisa. Interpõe seu corpo entre Evan e Bell, cortando a visão do seu filho. Quando estão saindo da galeria, ainda dá para ver Evan torcendo o pescoço para tentar enxergar.
O poeta Billy Collins certa vez observou com humor que todos os bebês nascem conhecendo poesia, porque a batida do coração da mãe forma um iambo. E então, disse Collins, a vida começa a sufocar aos poucos a poesia que havia em nós. O que também pode se aplicar à música.
Não há um padrão étnico ou demográfico que possa diferenciar as pessoas que ficaram para ouvir Bell, ou as que deram dinheiro, da vasta maioria que seguiu o seu caminho apressado, sem tomar conhecimento do músico. Há brancos, negros e asiáticos, jovens e velhos, homens e mulheres, representados nos três grupos. Só existe um grupo demográfico cujo comportamento foi sempre consistente. Toda vez que uma criança passava, tentava parar para assistir. E, toda vez, o pai ou a mãe não deixava.
Se havia naquele dia uma pessoa ocupada demais para prestar atenção ao violinista, era George Tindley. Tindley não estava correndo para chegar ao trabalho. Ele já estava no trabalho.
As portas de vidro pelas quais a maioria das pessoas sai da estação L’Enfant dão num pequeno centro comercial coberto do qual saem portas para a rua e elevadores para os prédios de escritórios. A primeira loja do centro comercial é uma Au Bon Pain, da rede de casas de café e croissants, em que Tindley, de quarenta e poucos anos, trabalha de uniforme branco limpando as mesas, renovando os estoques de pacotinhos de sal e pimenta, removendo o lixo. Tindley trabalha sob o olho vigilante dos seus chefes, precisa estar sempre ativo, e estava.
Mas a cada minuto mais ou menos, como que atraído por alguma coisa que de alguma forma escapasse do seu controle, Tindley caminhava até o limite do território do Au Bon Pain, sem atravessar a divisa e deixar o local de trabalho. E então se inclinava para diante, o máximo que podia, na direção da galeria, a fim de ver o violinista do outro lado das portas de vidro. O tráfego de pedestres era constante, de maneira que as portas ficavam abertas quase o tempo todo, e o som chegava a ele bastante bem.
“Dava para dizer de cara que o sujeito era bom, que só podia ser um profissional”, diz Tindley. George toca violão, adora o som de cordas, e não tem o menor respeito por um certo tipo de músico.
“A maioria dos músicos toca, mas sem sentir”, diz Tindley. “Já aquele cara estava sentindo. E dançando. Dançando no som.”
Bell termina a Ave Maria em meio a mais um silêncio ensurdecedor, toca a sentimental Estrelita, de Manuel Ponce, depois uma peça de Jules Massenet antes de começar uma gavota de Bach, alegre, buliçosa e lírica. Tem uma delicadeza própria do Velho Mundo: dá para imaginar que tenha inspirado dançarinos de peruca branca em algum baile de Versalhes ou – numa versão para alaúde, rabeca e pífano – os camponeses que levantam as botas num quadro de Pieter Bruegel.
Havia também Calvin Myint. Myint trabalha para a Administração de Serviços Gerais. Chegou ao alto da escada rolante, virou à direita e enveredou direto por uma porta que dava na rua. Algumas horas mais tarde, não tinha a menor lembrança de que houvesse um músico tocando em qualquer lugar por onde passou.
“Onde ele estava, em relação a mim?”
“Pouco mais de 1 metro de distância.”
“Ah.”
Myint não tem qualquer problema de audição. Mas estava com fones enfiados nas orelhas. Ouvindo o seu iPod.
Para muitos de nós, a explosão da tecnologia, em vez de expandir, limitou de forma perversa nossa exposição a novas experiências. Cada vez mais, quem nos dá as notícias são fontes que pensam como já pensávamos. Com os iPods, ouvimos o que já conhecíamos; somos nós que programamos a lista do que vamos ouvir.
A canção que Calvin Myint estava ouvindo era Just Like Heaven, do conjunto de rock inglês The Cure. A canção, na verdade, é maravilhosa. Seu significado é um pouco opaco, e podem-se encontrar na internet muitíssimas tentativas esforçadas de desconstruí-la. Algumas são bem exageradas, mas outras são pertinentes. A canção fala de uma trágica desconexão emocional. Um homem encontrou a mulher dos seus sonhos mas não consegue exprimir a profundidade dos seus sentimentos antes de ela ir embora. A canção fala da incapacidade de vermos a beleza claramente exposta diante dos nossos olhos.
Os melhores lugares para ouvir Bell naquele dia eram as cadeiras de engraxate, postadas na galeria. Uma única pessoa ocupou um desses assentos, por 5 dólares, enquanto Bell tocava. Terence Holmes é consultor para o Departamento de Transportes, e gostou muito da música, mas na verdade estava interessado mesmo era em engraxar os sapatos. “Meu pai me ensinou a nunca usar terno com os sapatos sujos ou sem brilho.”
Holmes usa terno com freqüência, de maneira que toda hora está empoleirado naquelas cadeiras, e tem uma boa relação com a engraxate de plantão no local. Holmes dá boas gorjetas e é bom de conversa, um talento que naquele dia veio a calhar. A engraxate estava aborrecida com alguma coisa, e a música só fez deixá-la mais perturbada. Ela se queixou, lembra Holmes, de que a música estava alta demais, e ele fez o possível para acalmá-la.
Edna Souza é brasileira. Faz seis anos que engraxa sapatos na L’Enfant Plaza, e já viu centenas de músicos de rua fazendo ponto naquele local; quando eles começam a tocar, ela não consegue ouvir os fregueses, o que é ruim para o seu negócio. E ela reage à altura.
Edna aponta para a divisória entre a área controlada pelo metrô, no alto da escada rolante, e a galeria, que é de responsabilidade da empresa que administra o centro comercial. Às vezes, diz ela, os músicos se postam na área do metrô, às vezes no território da galeria. De qualquer maneira, ela quase sempre dá um jeito. Nas teclas de discagem rápida do seu celular, ela tem os números tanto da segurança do metrô quanto da segurança do centro comercial. Dificilmente o músico fica ali muito tempo.
E no caso de Joshua Bell?
Também tocava alto demais, responde Edna. Então ela baixa os olhos para o trapo que tem nas mãos, e funga. Detesta se ver obrigada a admitir alguma coisa positiva sobre esses malditos músicos, mas: “Esse tocava mesmo muito bem. Foi a primeira vez que não chamei a polícia”.
Edna Souza fica surpresa ao saber que era um músico famoso, mas não que as pessoas passassem por ele sem vê-lo sequer. Isso, diz ela, era previsível. “Se uma coisa assim acontecesse no Brasil, todo mundo iria parar para assistir. Mas aqui não.”
Edna aponta com um gesto amargo de cabeça para um ponto perto do alto da escada rolante. “Uns anos atrás, um sem-teto morreu bem ali. Simplesmente se deitou no chão e morreu. A polícia veio, uma ambulância veio, e ninguém parou para se inteirar, nem diminuiu o passo para ver o que estava acontecendo.”
“Que é essa vida se, com tanto a fazer, Não temos tempo para parar e ver?” – do poema Leisure, de W. H. Davies
Se não podemos tirar algum tempo das nossas vidas para parar um momento e escutar um dos melhores músicos do planeta tocando algumas das mais belas peças musicais que já foram escritas; se o impulso da vida moderna nos domina a tal ponto que ficamos cegos e surdos para uma coisa dessas – o que mais não estaremos perdendo?
Eis o que quis dizer o poeta galês W. H. Davies em 1911, quando publicou os versos acima, que o tornaram famoso. A idéia era simples, até mesmo primitiva, mas de algum modo ninguém nunca a formulara antes com a mesma clareza. Claro, Davies tinha uma vantagem – uma vantagem perceptiva. Ele não era comerciante nem trabalhador braçal nem burocrata nem consultor nem analista de sistemas nem advogado trabalhista nem gerente de programa. Ele era um vagabundo.
Digamos que Kant tenha razão. Vamos aceitar que, depois de olhar o que aconteceu em 12 de janeiro, não possamos emitir qualquer juízo quanto à sofisticação das pessoas ou à sua capacidade de apreciar a beleza. Mas e a sua capacidade de apreciar a vida?
Somos ocupados. Os americanos em geral vivem ocupados desde pelo menos 1831, quando um jovem sociólogo francês chamado Alexis de Tocqueville visitou os Estados Unidos e ficou impressionado, espantado e um tanto desanimado por saber o quanto as pessoas daqui eram movidas pelo trabalho duro e a acumulação de riqueza.
E as coisas não mudaram muito. Assista ao DVD de Koyaanisqatsi, o filme vanguardista sem palavras de 1982, brilhante e assustador, sobre a velocidade frenética da vida moderna. Com o apoio da música minimalista de Philip Glass, o diretor Godfrey Reggio usa trechos de filme em que mostra os americanos cuidando dos seus afazeres diários, mas acelera a ação até o ponto em que eles passam a lembrar máquinas de linha de montagem, robôs marchando com passos marcados rumo a lugar nenhum. E agora assista ao vídeo da L’Enfant Plaza, em fast forward. A trilha sonora de Philip Glass se encaixa perfeitamente.
“Koyaanisqatsi” é uma palavra hopi, e significa “vida desequilibrada”.
O herói cultural do dia chegou a L’Enfant Plaza com bastante atraso, na figura nada impressionante de um certo John Picarello, um homem baixo de cabeça calva.
Picarello chegou ao alto da escada rolante logo depois que Bell começara seu número final, uma reprise da Chaconne. No vídeo, pode-se ver Picarello parar completamente, localizar a fonte da música e então se dirigir para o lado oposto da galeria. Ele assume posição ao lado da banca de engraxate, em frente à fila da loteria, e não moverá um músculo pelos nove minutos seguintes.
Como todos os passantes entrevistados para este artigo, Picarello foi abordado por um repórter logo depois de deixar a estação, e lhe pediram o número do seu telefone. Como em todos os casos, disseram-lhe que era para um artigo sobre os transportes coletivos. Quando lhe telefonamos mais tarde naquele mesmo dia, a primeira pergunta que fizemos foi se alguma coisa fora do comum tinha lhe acontecido a caminho do trabalho. Das mais de quarenta pessoas contatadas, Picarello foi o único a mencionar de imediato o violinista.
“Havia um músico tocando no alto da escada rolante na L’Enfant Plaza.”
“E o senhor nunca tinha visto um músico ali?”
“Não como este.”
“Como assim?”
“Era um violinista soberbo. Nunca ouvi ninguém daquele calibre. Era tecnicamente perfeito, com um fraseado muito bom. E também estava tocando um bom violino, com um som cheio e rico. Eu me afastei um pouco para ficar ouvindo. Não quis invadir o espaço dele.”
“É mesmo?”
“É. Foi uma experiência fora do comum. Foi um presente, um modo maravilhoso, incrível, de começar o dia.”
Picarello conhece música clássica. É admirador de Joshua Bell, mas não o reconheceu. Não tinha visto nenhuma foto recente do músico e, além disso, ficou quase o tempo todo bem longe. Mas sabia que quem estava tocando não era um músico qualquer. No vídeo, dá para ver Picarello olhando em volta de vez em quando, totalmente desconcertado.
Quando Picarello era jovem, em Nova York, estudou seriamente violino, com a intenção de tornar-se concertista. Mas acabou desistindo aos 18 anos, quando concluiu que nunca chegaria a ser bom o bastante para valer o esforço. Às vezes você precisa fazer a escolha mais prudente. E ele escolheu outra linha de trabalho. É supervisor nos Correios. E não toca mais muito violino.
Quando foi embora, conta Picarello, “deixei humildemente 5 dólares”. E foi mesmo humilde, o que dá para ver claramente no vídeo. Picarello se aproxima, mal olhando para Bell, e deixa cair a nota na caixa. Depois, como que encabulado, afasta-se a passo rápido do homem que no passado desejara ser.
Na opinião de Bell, ele tocou melhor nos últimos minutos da apresentação, na reprise da Chaconne. E foi também a primeira vez em que havia mais de uma pessoa ouvindo ao mesmo tempo. Enquanto Picarello escutava ao fundo, Janice Olu chegou e se postou a alguns passos de distância de Bell. Olu, administradora de um fundo de investimentos no Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano, também tocou violino quando criança. Não sabia o nome da peça que estava ouvindo, mas sabia que o homem que tocava era muito talentoso.
Olu estava num momento de folga, e ficou por ali o quanto ousou. Quando se virou para ir embora, murmurou “na verdade eu não queria ir embora” para o desconhecido ao seu lado. O desconhecido ao lado dela, por acaso, trabalhava para o Washington Post.
Enquanto se preparavam para esse evento, os editores da Post Magazine discutiram como deveriam lidar com prováveis desdobramentos do evento. A suposição mais amplamente cultivada era de que poderia surgir algum problema em matéria de controle de massas: num lugar de população tão sofisticada quanto Washington, era a idéia geral, muitas pessoas haveriam de reconhecer Bell. E abundavam visões nervosas do que poderia acontecer. À medida que as pessoas começassem a parar, e se outros também fossem parando só para ver qual era a atração? A notícia correria pela multidão. Câmeras começariam a espocar. E mais gente acorreria para o local; o tráfego pedestre da hora do rush ficaria obstruído; os ânimos se exaltariam; a Guarda Nacional seria chamada; gás lacrimogêneo, balas de borracha etc.
No fim das contas, uma única pessoa reconheceu Bell, e só chegou quase no final. Para Stacy Furukawa, demógrafa empregada no Departamento de Comércio, não havia dúvida. Ela não entende muito de música clássica, mas três semanas antes estivera na platéia do concerto gratuito de Bell na Biblioteca do Congresso. E ali estava ele, o virtuose de fama internacional, tocando no metrô e com a caixa aberta pedindo dinheiro. Ela não tinha idéia de que diabo podia estar acontecendo, mas fosse o que fosse, não iria perder.
Stacy Furukawa postou-se a uns três metros de Bell, primeira fila, no centro. Tinha um grande sorriso no rosto. O sorriso e Stacy permaneceram no mesmo lugar até o fim.
“Foi a coisa mais espantosa que eu já vi em Washington”, diz ela. “Joshua Bell estava ali tocando na hora do rush, e as pessoas não paravam, nem mesmo olhavam, e havia gente que jogava moedas de 25 cents na caixa! Coisa que eu não faria com ninguém. E eu ali, pensando, Meu Deus, que cidade é esta onde eu vivo, em que uma coisa assim pode acontecer?”
Quando a música acabou, Stacy Furukawa apresentou-se a Joshua Bell e jogou uma nota de vinte na caixa do violino. Descontando essa doação – invalidada pelo reconhecimento –, o montante acumulado em 43 minutos de música foi de 32 dólares e 17 centavos.
“Na verdade”, diz Bell com uma risada, “nem é tão mau assim, no fim das contas. São 40 dólares por hora. Dava para ganhar uma vida razoável com isso, e eu nem precisaria pagar um agente.”
A venda de bilhetes de loteria continua animada como sempre na L’Enfant Plaza. Músicos de rua ainda aparecem de tempos em tempos, sempre despertando a mesma reação de Edna Souza. O disco mais recente de Joshua Bell, The Voice of the Violin (“A Voz do Violino”), recebeu a costumeira aclamação da crítica. (“Uma urgência delicada.” “Uma intimidade de mestre.” “Invariavelmente extraordinário.” “Um apogeu musical.” “… fará seu coração disparar e chorar ao mesmo tempo.”). No mês de abril, Bell recebeu o prêmio Avery Fisher, consagrando o pedinte da L’Enfant Plaza como o melhor instrumentista de música clássica dos Estados Unidos.