ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2011
Plano a plano
A fita métrica cinematográfica
Clara Meirelles | Edição 56, Maio 2011
Yuri Tsivian, professor de cinema da Universidade de Chicago, nunca levou a sério a crença romântica de que arte e ciência não combinam. Por isso, em vez de interpretar os filmes com os instrumentos usuais, provenientes da estética, da sociologia, da semiologia etc., Tsivian passou a fazer contas e medições.
“Nos estudos de poesia, se contam sílabas; nos de cinema, se contam planos”, disse. Ele estudou primeiro as técnicas usadas por Lev Kuleshov e Dziga Vertov, dois diretores da vanguarda russa que em meados dos anos 20 já faziam diagramas de edição e contagens de planos. Queria mais detalhes, mais rigor, objetividade. Queria ter os fundamentos para desenvolver uma métrica do cinema.
A ideia foi posta em prática manualmente, pelo próprio professor, em estudos do início dos anos 90. Havia um problema, porém, um problema subjetivo: a contagem da duração dos planos era uma tarefa tediosa, repetitiva, burocrática. Talvez porque estagiários estivessem em falta em Chicago, ou talvez porque não fossem suficientemente cordatos e embotados, foi necessário desenvolver um dispositivo sem subjetividade para fazer a contagem.
Já existiam programas de edição que permitiam ao editor de cinema medir os planos de um filme em andamento, durante o processo de montagem. Mas era preciso ter uma mesa de edição, uma aparelhagem cara. Cinco anos depois, sob os auspícios de Tsivian, nasceu o Cinemetrics, um software que permite saber a duração dos planos de um filme em tempo real. A novidade do Cinemetrics é que ele pode ser usado por internautas, sem nenhuma especialização, em qualquer filme que se queira xeretar.
O programa foi criado pelo estatístico e programador Gunars Civjans, a partir das pesquisas de Tsivian sobre Intolerância, do americano D. W. Griffith. Uma vez aberto o programa, o procedimento é simples: iniciar o contador de tempo ao mesmo tempo em que se dá partida no filme a ser analisado, e clicar no botão a cada mudança de plano. (Um plano, relembre-se, começa num corte e acaba no corte seguinte. Festim Diabólico, de Hitchcock, por exemplo, tem apenas um corte: o que encerra o filme.)
Ao final da projeção – e, provavelmente, na iminência de uma tendinite – o Cinemetrics fornece algumas estatísticas básicas: a duração do filme, o número de planos e a média de duração de cada plano. Se o pesquisador quiser explorar ainda mais os dados obtidos, para, por exemplo, ver a curva de velocidade de corte do filme, ele pode acessar o site do Cinemetrics, e lá gerar os gráficos e compartilhar com outros pesquisadores as informações de sua pesquisa. É um projeto colaborativo.
A técnica agregou estudiosos do mundo todo, surpreendendo o próprio professor, que não imaginava que existiria tanta gente disposta a contar planos de um filme. Tsivian deu o pontapé inicial e mediu dois filmes. Um ano depois, já havia quase 300 obras medidas. Hoje, com o aumento dos adeptos, a base de dados já conta com cerca de 7 mil filmes, devidamente metrados e tabelados.
Com isso, é possível ficar sabendo, por exemplo, que no filme Dez, do iraniano Abbas Kiarostami, cada plano dura em média 13,9 segundos. Já em Kill Bill 1, de Quentin Tarantino, um plano se estende em média por 1,4 segundo. Ou seja, o filme de Tarantino é muito mais acelerado e entrecortado que o de Kiarostami. Toda pessoa que viu ao menos um filme de um e outro sabe disso. Mas não com essa precisão.
Há 25 filmes brasileiros no banco de dados do Cinemetrics. Entre eles, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (9,2 segundos de média de duração de planos), Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho (7,5s), O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco (4,8s), e até realizações mais recentes, como A Mulher Invisível, de Cláudio Torres (2,7s).
Seria possível imaginar que, com dados como esse, o crítico cinematográfico se aproximaria dos comentaristas esportivos, que trabalham com planilhas, tabelas e gráficos? Não, de jeito nenhum, diz Tsivian. “A história do cinema não é a história do esporte”, escreveu o professor. “Mas não dá para não reparar que os filmes se tornaram mais rápidos.”
Alguns críticos tradicionais acham que a onda da contagem não trouxe nada de novo, em matéria de análise e interpretação de filmes. Outros estudiosos, mais pragmáticos, observam que, depois de passar um filme inteiro clicando para contar os planos, é fatal o aparecimento de bolhas ou calos nos dedos.
Tsivian não se importa com as observações jocosas. Ele acha que o Cinemetrics terá impacto em outras áreas de estudo, extrapolando a do cinema. Dá como exemplo o artigo de um psicólogo que relaciona a duração dos planos com a atividade cerebral do espectador. “Eisenstein amaria esse tipo de estudo”, disse.