Poemas por Laura Liuzzi
Laura Liuzzi | Edição 47, Agosto 2010
AUTORRETRATO
Como pode água nascer
de pedra
como pode, posso eu
também ter matéria
grave e intransponível
conjugada a esta outra
transparente, irrepresável.
Basta um olhar à fotografia –
o bebê no colo
o papel envelhecido.
Ao mesmo tempo que um avança
somando anos
o outro recua, mais antigo.
Quando as tardes pareciam
maiores
quando o fim do dia
era o fim do dia
quando tatuagens não eram
para sempre.
O tapete da sala era branco
e peludo, parecia um bicho
depois da ração diária.
O sol entrava geométrico
e, espremendo-se entre as grades
desenhava escarpas
onde eu me deitava
junto ao bicho.
Eu fechava os olhos
para ver as cores no escuro.
Só o que morria era inseto.
Sorrir nunca foi fácil.
Cresço com a boca miúda
e ainda não gosto de piadas.
Conservo a interrogação
quando de frente ao espelho:
como pode ser tão diferente
o frontal do perfil?
E me pergunto, desde lá
se todos enxergamos as mesmas coisas
se a língua não é tão só
um mesmo código para coisas distintas
se entre mim e você
não há um abismo sem solução.
O que sei é o que não sei
sobre projetos de futuro.
E mesmo assim escrevo cartas
(funcionam melhor que espelhos)
para meu próprio endereço.
Me respondo como se já tivesse
arquivado toda a memória
e pudesse confortar
confrontar o porvir.
Quando escrevo me passo a limpo
sem riscar as imperfeições.
A infância ainda gravita
em mim. Não só
a minha, mas outras
que vêm com músicas
sub-reptícias, por um atalho
por onde atravessam
com a velocidade
incalculável
do tempo.
Dar nome às coisas:
primeiro passo torto
até que se deseje
as coisas puras
sem auxílio de som —
a rosa única
a pedra que se sabe pedra.
Segundo passo, falho:
inominar.
Nos retratos guardamos nos olhos
o vidro dos olhos do gato
a cama ainda desfeita
a última tempestade
e o escuro do que virá.
[Colher nas mãos o que
das mesmas mãos se extinguiu:
pedra papel tesoura.]
SOBRE UM LIVRO
Ler à noite
nesse quarto
à meia voz
metade som
metade sopro –
emprestar vida
ao livro
antes morno
sem rumor
deixá-lo que use
minha voz
me surpreenda
a cada linha
de língua inglesa
até que desalinhe:
ondula, angula-se
dobra a curva
e desaparece.
ARQUITETURA
com o pensamento em Franz
Kafka
Encapsular o inferno
numa tarde sem mais
de Praga. No entanto
era ele quem deslocava
a cidade para a parede
incalculável de seus olhos.
Auscultar o pântano
de sua razão intranquila
até que nenhuma ponte
se arme para nossa passagem.
Inventar entradas falsas
(entrar sem sequer ter saído)
traços pontilhados, estradas.
Procurar praças estações catedrais
como um cão sem faro.
Como um cão fora de si.
Alcançar o fio cego do horizonte
por algum túnel longíquo
incomunicável; abastecer
o teto mais que o chão.
OUTRO
Perdi meu senso de urgência.
Não sei se foi antes ou depois
daquela lambida, seus anticorpos
e o meu corpo no que ia
submergindo, derrubando as traves.
Qual o meu interesse
qual o quê eu não sabia
essa casa está doente
e o tamanho da minha mordida
até que todo o mar congele
não será maior que qualquer estrada.
Aqui dentro não há mais vaga.
Aqui dentro não há mais nenhuma vaga.
Perdi mais objetos que encontrei
e agora a maior parte deles
existe sem os nomes que lhes dei.
Volto à sua língua, sua lambida:
corta, abre, costura e fecha.
ORQUESTRA
Não há cortina
para esconder os músicos
nem mesmo a música
se esconde nos instrumentos.
Está tudo aos olhos da platéia
porque a sinfonia não se pode ver
senão nos gestos do maestro.
À minha frente, antes do primeiro
comando, pode estar o violoncelista
em terno preto, como muitos ouvintes.
Quando se sentam os músicos
cada um em seu tempo afina
seu instrumento e acerta a folha
da primeira sinfonia: confusa algaravia.
Então vem o regente
sob uma saraivada de palmas
com sua vara de condão.
Os músicos ajeitam a coluna
alisam os traços do rosto
e encaram o maestro
que, com dois olhos apenas
cruza com todos que têm nele a mira
buscando a confirmação
de que pode começar.
Tão logo soerga
a batuta e soe
o primeiro acorde
ouve-se, milagrosamente, o silêncio.