ILUSTRAÇÃO: SHOUT
Poesia
Existe um curto espaço/de tempo um pequeno/buraco negro que engole/todas as grandes certezas
Laura Liuzzi | Edição Poesia,
O SALTO
Do alto do trampolim
o azul do azulejo
confunde-se
com o azul da água
incolor.
Do alto do trampolim
o salto é executado
para furar o azul
delicadamente
furar o azul.
A folha translúcida
da piscina
é atravessada
pelo corpo
o meu corpo
que ao mesmo tempo
que mergulha
observa
do trampolim
o próprio mergulho.
Corpo dobrado.
O azul é atravessado
silenciosamente.
Segundo salto:
segundos antes
o corpo
já não se vê
de fora.
O corpo é um
corpo só.
Os pés na beirada
do trampolim.
As pernas tremem.
Contagem regressiva.
O salto.
O corpo dentro
do corpo
fura o azul
furiosamente
fura o azul.
MEDITAÇÃO
São óculos para encaixar
a paisagem à paisagem
violentíssima
do pensamento.
Uma mínima mudança
de posição dos pés
ou da íris
uma mudança de grau
contamina o mundo
dentro do mundo próprio.
Pensamento
é uma forma
de deslize
uma patinação:
a haste metálica
fria firme feroz
correndo veloz
descreve
linhas angulosas
justapostas
linhas errantes.
A paisagem
pobre paisagem
rabiscada
pela frequência
frenética
das sinapses
está sempre
em outro lugar.
São dentes para mastigar
o pensamento
separar o que se pensou
do que já estava
colado no álbum
da memória.
Existem enzimas
para digerir
o que nem matéria
tem?, penso
enquanto os olhos
não perdoam
esta cidade.
GELADO
Tínhamos que encontrar
um modo de não pensar
no frio de não descascar
as frutas para não feri-las
de pregar os olhos apenas
na cor roxa dos teus lábios
de inverno, um modo de
morder o e não
estilhaçá-lo. Tínhamos mesmo
que encontrar a posição
própria para o sono.
Sob o nariz ventava
acinzentado corriam
velozes trens apitando
vibrando tremendo.
Sob o nariz um ar de metal
as botas insuficientes
sobre a trepidante plataforma
mal suportavam o peso
dos olhos fixos no roxo
de teus dentes trincados
mas tínhamos que encontrar
um método para não pensar.
O pescoço afundado nos ombros
a luta contra as evidências
do fracasso. Unhas quebradas
sorriso quebrado o corpo
anulado. Pensamentos
banidos do pensamento.
INSTANTE
Existe um curto espaço
de tempo um pequeno
buraco negro que engole
todas as grandes certezas.
Entre o dedo no gatilho
e uma bala disparada
abre-se uma imensa
fenda onde a entrada
da razão é terminantemente
proibida. Entre o último
pulso do coração e o seu
repouso, o tempo se dilata
milimetricamente
e mergulha as memórias
no fundo do mar lá
longe da terra lá onde
nunca dá pé. Nesses
curtos espaços nós não
pisamos porque não
cabemos. São tão curtos
que talvez nem existam.
—
Novembro de 2014