Poesias
Oito poemas de Hans Magnus Enzensberger traduzidos por Vinicius Dantas
| Edição 2, Novembro 2006
A MERDA
como sempre ouço falarem dela
como se a culpa de tudo fosse sua.
vejam só, quão suave e modesta
ela toma seu lugarzinho embaixo de nós!
por que sujamos então
seu bom nome
e o concedemos
ao presidente dos estados unidos,
aos tiras, à guerra
e ao capitalismo ?
quão transitória ela é,
mas como dura
tudo aquilo que leva o seu nome!
ela, tão condescendente,
está na ponta da língua,
se o assunto é exploração.
ela, que esprememos,
ainda por cima deve exprimir
a nossa raiva ?
ela não nos aliviou ?
de consistência mole
e particularmente não-violenta
é de todas as obras do homem
provavelmente a mais pacífica.
o que foi então que ela nos fez ?
O NOVO HOMEM
Este novo homem
tem um jeito estranho.
Faz bem,
a cara que não tem.
“A cara do pai”.
Tomara que não.
Trabalha pesado,
barulhos produz.
Não adivinhamos
o que está querendo.
Respira, rumina,
rasteja, resmunga.
Hesitando, descobre
os dois lados da coisa.
Trepa nas palavras,
testando
gangorras, balanços,
ousadia, medo.
Um dia, mais esperto
que nós, nos espanta.
Então, enquanto aos poucos
morremos,
a sua cara vai ficando,
mais e mais, a nossa cara.
MÚSICA DO FUTURO
A que não agüentamos esperar
vai nos ensinar.
Brilha, é incerta, longe.
A que deixamos vir até nós,
não nos espera,
não vem até nós,
não volta a nós,
fica a caminho.
Não nos pertence,
não pergunta por nós,
nada quer saber de nós,
nada nos diz,
vem e não é para nós.
Não esteve,
não está nem aí para nós,
nunca esteve aí,
nunca está aí,
nunca está.
A ALEGRIA
ela não quer que eu fale dela
ela não pára no papel
ela não suporta profetas
ela põe abaixo tudo que é sólido
ela não mente
ela se amotina
ela só ela me justifica
ela é minha razão
ela não me pertence
ela é estranha e teimosa
eu a escondo
como uma vergonha
ela é fugaz
ninguém pode partilhá-la
ninguém pode guardá-la para si
eu nada guardo
eu partilho tudo com ela
ela parte para outra
um outro a esconderá
na sua fuga vitoriosa
através da mais longa noite.
CARCERI D’INVENZIONE
estas abóbodas
escuras claras escuras
relâmpagos sem céu
raios sem astro
nem dia nem noite
estas abóbodas
racionais e enigmáticas
estes alçapões e covis
nos acolhem
estas aberturas e galerias
nos acobertam
estes arcos e pontes
nos desnorteiam
ante estas armações
que nos sobrepujam
parecemos
mudos e diminutos
sonhadores insones
prisioneiros
não vencidos
estas masmorras
em que fervilha
em que impera o desamparo
estas abóbodas sonhadas
infinitamente escuras
infinitamente claras
infinitamente
impenetráveis
são
nossas cabeças cheias de sonho
O QUE FOI AÍ
Foi algo de bom,
passou,
por aí.
Pena,
que seja tão difícil
de lembrar
algo de bom.
Saber,
como realmente era.
Como foi real.
Foi, creio,
algo bastante comum,
fantástico.
Algo que
creio ter visto,
ou cheirado,
ou pegado.
Mas se era grande
ou pequeno,
novo ou velho,
claro ou escuro,
isso já não sei.
Só que era melhor
que o que aí está,
muito melhor,
isso ainda eu sei.
CARDÁPIO
numa tarde à toa, hoje
vejo em minha casa
pela porta aberta da cozinha
uma leiteira um ralador de cebola
o pires do gato.
sobre a mesa tem um telegrama.
que eu não li.
num museu em amsterdã
vi num quadro antigo
pela porta aberta da cozinha
uma leiteira uma cesta de pão
o pires do gato.
sobre a mesa tinha uma carta.
que eu não li.
numa datcha à margem do mosková
vi há algumas semanas
pela porta aberta da cozinha
uma cesta de pão um ralador de cebola
o pires do gato.
sobre a mesa tinha o jornal.
que eu não li.
pela porta aberta da cozinha
vejo leite derramado
guerras de trinta anos
lágrimas nos raladores de cebola
mísseis anti-mísseis
cestas de pão
lutas de classes.
embaixo à esquerda bem no canto
vejo o pires do gato.
A FORÇA DO HÁBITO
O hábito torna belo o erro.
christian fürchtegott gellert
I
Gente comum comumente não se importa
com gente comum.
E vice-versa.
Gente comum acha fora do comum
que a achem fora do comum.
É que já não é gente comum.
E vice-versa.
II
Que a tudo a gente se habitue,
a isso a gente se habitua.
É o que habitualmente se chama
um processo de aprendizagem.
III
É doloroso,
quando a dor de hábito não vem.
Como se cansa a mente esperta
Da própria esperteza!
O cara simples aí acha difícil por exemplo
ser um cara simples,
ao passo que aquela personalidade complexa
desfia suas dificuldades
como a beata o rosário.
Por toda parte esses eternos principiantes,
em estado terminal faz tempo.
Mesmo o ódio é um hábito do peito.
IV
Estamos habituados
ao que não tem precedentes.
Temos o usucapião
do que não tem precedentes.
Um escravo de seus hábitos
topa na esquina de hábito
com um criminoso habitual.
Uma ocorrência inaudita.
A merda de hábito.
Os clássicos pegaram o hábito
de romanceá-la.
V
Suavemente o hábito da força repousa
na força do hábito.