ILUSTRAÇÃO: XILOGRAVURAS DE ALBERTO MARTINS_2006
Poesia
Alberto Martins | Edição 117, Junho 2016
O QUE ME DISSE TOMEK
“Tomek, o polaco”
ou “Tomek, o último dos humanistas”
como também é conhecido
me disse:
1.
a questão crucial para todo exilado
é conciliar a delicadeza que ele precisa e merece
com a dureza que ele também precisa e merece.
2.
a única coisa que pode interromper o inevitável
processo de autodestruição causado pelo panorama
mais do que nunca desolador
é encontrar interlocutores à altura.
3.
a verdadeira interlocução não é de ordem subjetiva,
mas objetiva. Você não se torna interlocutor
porque deseja, mas porque foi convocado.
A interlocução não existe “por você” ou “pelo outro”,
mas porque uma terceira coisa se faz necessária.
4.
não é uma tarefa fácil. O telefone toca
no meio da noite e você não pode dizer
que está indisposta. É preciso atender.
Ou ele pode nunca mais tocar de novo.
5.
nem todos suportam.
OUTRA CONVERSA COM TOMEK
1.
“É muito simples”, ele me disse.
“Cada ângulo novo é uma descoberta.
Quando a folha de acanto ganhou um segundo plano
dobrando-se pela primeira vez sobre si mesma
o mundo tornou-se primavera
– estou falando desses capitéis de pedra
que floresceram na Grécia e
outra vez na Europa a partir dos séculos XI e XII;
depois foram copiados por quase um milênio
nas estampas dos tecidos, nas fachadas dos edifícios,
onde sobrevivem até hoje como detalhes
inofensivos, a que ninguém dá atenção.”
2.
Eu respondi a ele:
“Desde que o mundo virou uma primavera
minha vida é um trem desordenado
que para em estações imprevistas
no meio da noite e uiva em desespero
feito carneiro em pele de lobo.
A qualquer hora adentram bandos
de refugiados com panelas barulhentas
e uma ignorância e uma indigência
de comover até as rãs.
Acordo na plataforma deserta
com fomes tremendas e só me lembro
de juntar capim para matar a sede.
Tento não enlouquecer.
A qualquer minuto posso sumir
ou renascer no areal da Via Láctea.
Desde que o mundo virou uma primavera.”
TOMEK, UM MONÓLOGO
“A esse respeito
precisaríamos ter uma longa conversa
para a qual esta nossa vida de exilados
não tem deixado muito tempo.
Cada nova encomenda de trabalho
é bem-vinda, mas também desgastante
pois nos afasta das tarefas verdadeiras.
Entretanto, considere os capitéis.
Eles foram inventados para fazer a passagem
entre o leve e o pesado
– e a chuva de arabescos indomáveis
caindo sobre as colunas que um dia foram gregas
é simplesmente a prova
da força e da beleza necessárias.
‘Como isso se aplica ao nosso caso?’
Não tenho resposta.
Na verdade, nada se aplica a nada.
Faz tempo o mundo se tornou um pardieiro
de salas desconexas, cheias de múmias
e objetos de culto em que você tropeça
sem saber se vai emergir do outro lado.
A princesa egípcia, por exemplo.
Não há nada que você possa fazer por ela
nem ela por você. É melhor virar as costas
e esquecer as galerias e museus.
A partir de agora
aonde quer que você vá
haverá uma pedra à tua espera.
Nossa tarefa é entalhar essa pedra.”
MINHAS DIFERENÇAS COM TOMEK
1.
Tomek é um caga-regras.
Ele insiste em pôr ordem na minha vida.
Que eu acorde cedo e faça caminhadas.
Que eu seja didática como outros artistas.
“O ar do mar, a luz do céu! É disso que você precisa!”
Como se fosse escolha minha
viver atenta ao que se passa
nas cavernas submarinas.
2.
Tomek ama a natureza.
Qualquer casca de árvore
é uma arca de alegrias.
Eu não.
A natureza me deprime.
Ela é muda exatamente
quando não devia ser.
TOMEK ABRE SEU CORAÇÃO
Aqui reinaram os bisões.
Durante trezentos ou quatrocentos anos
pensando somente em copular e criar seus filhotes
eles se espalharam por planícies e florestas.
Como não conheciam predadores
(são necessários doze lobos para acuar um bisão)
estavam afeiçoados demais ao ar, à água, à pastagem
e se sentiam em casa naquele pedaço da Terra.
Quando chegaram as carabinas de repetição
entraram em pânico
e a única coisa que lhes ocorreu fazer
foi cavar o chão com suas patas e chifres.
Desde então na terra pisoteada
não cresce uma folha de grama.
A ÚLTIMA FALA DE TOMEK
Todas as coisas do mundo
carregam consigo uma ternura selvagem.
O primeiro passo é não temer o selvagem.
O segundo, remover a ganga de diamante e
gordura que a linguagem socou
em cada um de nós.
Agora vem a parte mais difícil.
É preciso sonhar tudo de novo.[1]
—
[1] Do livro em andamento Boris & Marina, que trata da correspondência amorosa entre Boris Pasternak (1890–1960) e Marina Tsvetáieva (1892–1941) no verão de 1926. Marina, então vivendo na França, conhece Tomek, outro exilado, e inicia um diálogo com ele.