A política na enxurrada
Uma rixa entre os governos federal e estadual emerge da tragédia gaúcha
Ana Clara Costa | Edição 213, Junho 2024
Na noite de 7 de maio, o coronel da Polícia Militar do Rio Grande do Sul, Euclides da Silva Neto, acionou a comitiva da primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, para fazer um pedido de ordem pessoal em nome de seu chefe, o governador Eduardo Leite (PSDB). O coronel perguntou se o avião presidencial que levaria Janja e outros integrantes do governo federal a Porto Alegre no dia seguinte poderia dar uma carona ao médico capixaba Thalis Bolzan, companheiro do governador.
Janja autorizou a carona, e Bolzan embarcou em São Paulo, onde o avião presidencial tinha uma escala já prevista. O médico, que faz mestrado na capital paulista, tentava havia dias ir para Porto Alegre, mas a maioria das estradas que dão acesso à cidade estava interditada, e o Aeroporto Salgado Filho, submerso.
Junto com a primeira-dama, viajavam os ministros Paulo Pimenta e Simone Tebet, e o prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT). O avião presidencial estava carregado de doações embarcadas pelo Exército na base aérea em Brasília, além de purificadores de água obtidos por Felipe Neto e Edinho Silva para os abrigos com as vítimas das enchentes.
Quando a comitiva chegou à Base Aérea de Canoas, que, àquela altura, era o único lugar apto a receber pousos, um carro oficial do governo estadual esperava Bolzan para levá-lo ao Palácio Piratini, onde vive o governador. Janja e os demais seguiram para o sindicato dos metalúrgicos de Canoas e depois, de helicóptero, para o Regimento Osorio, em Porto Alegre, área do Exército que escapou da enchente e onde estão agrupadas as forças militares e da Defesa Civil.
O coronel Silva Neto, que é chefe de gabinete de Leite, estava em contato com a comitiva e foi avisado de que o grupo voava a caminho do regimento. Mandou saudações a todos, agradeceu pela carona dada a Bolzan e disse que o governador não poderia recebê-los pessoalmente. Quem recebeu a primeira-dama em Porto Alegre foi o prefeito da capital, Sebastião Melo (MDB).
Embora se soubesse que Leite estava ocupado com as consequências da catástrofe climática que atingiu o estado, sua ausência provocou desconforto. Janja achou que o governador fizera pouco caso da sua visita. O fato de Leite não se comunicar diretamente com os ministros e fazê-lo somente por meio de seu chefe de gabinete, também causou azedume. O governador havia recebido Lula nas duas vezes que o presidente estivera no Rio Grande do Sul depois da tragédia, mas isso não foi suficiente para atenuar o mal-estar.
Um episódio anterior à visita da primeira-dama já havia provocado certa animosidade no Planalto, porque envolveu uma dupla de antigos colaboradores de Jair Bolsonaro e o empresário Elon Musk, que mantém certo contato com o ex-presidente e tem demonstrado grande interesse em se aproximar da extrema direita brasileira.
Musk é dono da Starlink, que comercializa internet via satélite, entre outras empresas. Leite resolveu recorrer à ajuda do empresário para obter antenas gratuitas de internet que facilitem a comunicação nas cidades inundadas. O governador então pediu que seu secretário de Parcerias e Concessões, Pedro Capeluppi – ex-funcionário do governo Bolsonaro no Ministério da Fazenda – entrasse em contato com Fábio Faria, que foi ministro da Comunicação de Bolsonaro.
Faria – que até abril deste ano era sócio da empresa que distribuía as antenas de Musk no Brasil, segundo reportagem da Agência Pública – enviou uma mensagem ao empresário. Incluiu um vídeo em que a modelo Gisele Bündchen mostrava imagens das enchentes e pedia que o mundo socorresse seu estado natal. O vídeo chamou a atenção de Musk, que o compartilhou no X, sua rede social, junto com um texto em que anunciava a doação de mil antenas ao Rio Grande do Sul. Nas redes sociais, Leite agradeceu a Musk.
Nos bastidores do Planalto, a antipatia só aumentava. O ministro da Casa Civil, Rui Costa, engrossou o coro de críticos, dizendo que o governador vinha cobrando publicamente uma ação do governo federal sem que ele próprio tivesse apresentado um plano de recuperação para o estado.
Em 17 de maio, quando Leite finalmente anunciou um plano de ação, bem como a criação da Secretaria da Reconstrução Gaúcha, o governo federal já havia tornado pública a suspensão do pagamento da dívida do estado por três anos e anunciado o auxílio de 5,1 mil reais a cada família atingida, entre outras medidas. Lula também já havia nomeado o então ministro da Secretaria de Comunicação, o gaúcho Paulo Pimenta, para o cargo recém-criado de secretário extraordinário da Presidência no Rio Grande do Sul.
Como Pimenta é cotado para concorrer ao governo do estado em 2026, o presidente foi acusado de fazer uso político da tragédia. Pimenta defendeu a própria nomeação: “Vocês queriam o quê? Que o presidente Lula colocasse para coordenar isso alguém que não conhece o Rio Grande do Sul? Alguém que não tem trânsito dentro do governo?”, disse, em entrevista ao Canal do Barão, no YouTube.
O Planalto argumenta que o objetivo da Secretaria Extraordinária é ajudar no diálogo do Executivo federal com o local, sobretudo quando grupos ligados à oposição tentam difundir desinformações, como a narrativa de que a União fechou os olhos à tragédia.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 19 de maio, Leite tentou traçar uma linha divisória entre o trabalho do Piratini e o do Planalto. Disse que o governo estadual “tem um protagonismo que não é por vaidade ou interesse pessoal do governador, é pelo que o voto popular conferiu”. Também equiparou o apoio do governo federal na reconstrução ao da sociedade civil, embora o grosso do dinheiro venha mesmo do Tesouro Nacional.
Lula anunciou a criação da Secretaria Extraordinária em 15 de maio, durante sua visita a São Leopoldo, acompanhado de todo o ministério, sem avisar antecipadamente o governo gaúcho sobre a nova pasta. Pego de surpresa, Leite não gostou de ser desprestigiado. No mesmo dia, o presidente anunciou os 5,1 mil reais para as famílias atingidas. Na ocasião, o governador, ao tomar a palavra, não agradeceu diretamente a Lula, detalhe que foi notado pela comitiva vinda de Brasília. Dois dias depois, quando Leite apresentou o projeto de cidades transitórias para realocar as famílias que haviam perdido tudo, Pimenta disse que o governo tinha “outra ideia sobre isso”.
No momento em que a Secretaria Extraordinária foi anunciada, Pimenta não tinha nem mesmo de onde despachar em Porto Alegre. O centro administrativo do governo estadual estava inundado, com os secretários alojados em diferentes locais. Designar uma sala do Palácio Piratini para Pimenta seria avançar um pouco além do que Leite estava disposto a ir. O governador não julgava ser sua atribuição providenciar uma estrutura de trabalho para o ministro petista.
As opções eram as sedes da Advocacia-Geral da União, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal na capital gaúcha. Mas a confusão administrativa por causa da tragédia climática era tanta que Pimenta acabou retornando a Brasília para trabalhar em seu antigo gabinete, na Secretaria de Comunicação. Só voltou a Porto Alegre no dia 22 de maio, para se instalar no Banco do Brasil.
Desavenças à parte, tanto o governador – que é de Pelotas –, quanto o secretário extraordinário – nascido em Santa Maria –, e seus familiares mais próximos compartilham de um privilégio muito raro entre os gaúchos hoje em dia: o de não terem sofrido maiores transtornos com as enchentes. Estão a salvo.
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