Antes que Mao Tsé-Tung demonstrasse vigor atravessando lagos gelados, Mussolini já havia exibido seu torso nu, alternando sua imagem entre a de super-homem e a de homem comum FOTO: ROGER VIOLLET_GETTY IMAGES
Pontífice de uma religião leiga
Os últimos dias e o legado de Mussolini
Boris Fausto | Edição 78, Março 2013
Nenhum ditador, dentre os que proliferaram no século XX, teve um fim tão rocambolesco quanto Mussolini. Seus últimos dias foram cercados de mistério, de muitas indagações e controvérsias, e atraíram o interesse de um importante historiador do fascismo, o francês Pierre Milza, autor de um livro que se lê como uma novela: Os Últimos Dias de Mussolini, que a editora Zahar lançará em junho.
Milza revela o nome de quem realmente comandou os partigiani – Luigi Longo, futuro secretário-geral do Partido Comunista Italiano, o PCI – e levanta questões até hoje sem resposta. Onde foi parar o tesouro em joias e dinheiro que os familiares de Mussolini, em fuga, pretendiam levar para o exterior? Nas mãos de alguns espertos milicianos antifascistas? Nas caixas do PCI? Mais ainda: onde teria ido parar o incômodo arquivo secreto que Mussolini carregava consigo, contendo supostamente uma longa correspondência entre o Duce e Churchill, por muito tempo simpatizante do líder do fascismo, a quem considerava um homem ideal para enquadrar o “temperamento caótico” dos peninsulares.
Nascido em 1883, em Predappio, uma pequena cidade da Emilia Romagna, no nordeste da península, o nome completo de Mussolini, à maneira italiana, era plural: Benito Amilcare Andrea Mussolini. Sua opção inicial pelo socialismo teve a ver com a região em que nasceu e viveu quando menino e adolescente, pois a Emilia Romagna já era considerada uma zona “vermelha” nos últimos anos do século XIX. Mais ainda, o pai do futuro Duce, Alessandro Mussolini, foi por um tempo ferreiro de profissão e, pela vida afora, ativo militante socialista.
Mussolini tinha pouco mais de 20 anos quando ingressou no Partido Socialista Italiano, o PSI. Sua ascensão na política foi rápida: tinha talento como orador e jornalista, além de boas relações com nomes importantes no campo da esquerda, como Giacinto Serrati e sua amiga Angelica Balabanova, que viria a ser dirigente da IIIa Internacional Comunista. Ele os conhecera na Suíça, para onde emigrara no início do século XX. Nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, Mussolini se ligou ao setor mais radical do PSI, que condenava as guerras, adotava uma agressiva postura anticlerical e, em nome da revolução, combatia o reformismo.
Antes de completar 30 anos, mudou-se da provinciana Forli para Milão, a brilhante capital do norte da Itália. Ali, o futuro Duce deu um passo decisivo na carreira política. Alcançou maior projeção e se tornou diretor do Avanti!, o jornal do partido. Mas logo sua carreira teve outra guinada. O detonador da mudança de curso foi a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Diante do conflito, os partidos socialistas europeus dividiram-se entre as correntes internacionalistas, contrárias à guerra, e as que adotaram a linha de união nacional, em apoio aos governos de seus respectivos países. No âmbito do PSI, Mussolini, que vinha assumindo posições nacionalistas, passou a defender uma política de “neutralidade ativa”, oposta à condenação frontal da guerra.
As desavenças com a direção partidária cresceram em poucos meses, a ponto de resultarem na sua expulsão do partido, em novembro de 1914, quando a Itália ainda se declarava neutra. A partir daí, ele tomou o rumo da direita, acentuou o patriotismo e a visão antiparlamentar, sustentando a necessidade de se implantar uma “ditadura democrática”, baseada na mobilização popular, oposta às “ditaduras reacionárias”. O que mais lhe custou foi abandonar o anticlericalismo de outros tempos, substituindo-o por relações pragmáticas e acomodatícias com a Igreja Católica.
Em maio de 1915, a Itália entrou na guerra, ao lado da França e da Inglaterra. O país esteve entre os vencedores do conflito, mas não conseguiu obter o atendimento de suas reivindicações territoriais. Os anos de pós-guerra foram marcados não só pelas decepções no plano internacional, mas também pelas greves operárias, pela ocupação de fábricas e pelas mobilizações de camponeses, que levaram a direita e a esquerda a acreditar na iminência de uma revolução social.
Nessa conjuntura carregada de excitação e temores, os fascistas ganharam terreno ao defenderem a manutenção da ordem a qualquer preço, bem como a ascensão ao poder de um homem providencial, destinado a restaurar a estabilidade do país e a conter o pericolo rosso. A violência se tornou um recurso político cotidiano e a tropa de choque fascista (os fasci di combattimento) desencadeou ataques terroristas em toda a Itália.
A mítica Marcha sobre Roma – mítica porque, no poder, o fascismo a transformou numa heroica ação revolucionária – levou Mussolini, em outubro de 1922, ao cargo de primeiro-ministro. O rei Vittorio Emanuele III e o Exército apoiaram a nomeação, enquanto o Vaticano, convenientemente, lavou as mãos. Um passo mais e Mussolini passou de primeiro-ministro a ditador. Era ele o “homem providencial”.
Nos anos que se seguiram à conquista do poder, o regime fascista atravessou momentos incertos, como os que resultaram no sequestro e morte do deputado socialista Giacomo Matteotti, figura de prestígio nos círculos da esquerda europeia. Mas a coação exercida pela polícia política, o apoio – ou pelo menos a passividade – da maioria da população, o beneplácito institucional do rei e da Igreja Católica garantiram a continuidade do regime.
No caso da Igreja, o Tratado de Latrão, firmado entre o Estado e o Vaticano em 1929, garantiu as boas relações entre as partes, a ponto de o papa Pio XI referir-se a Mussolini como “um enviado da Providência”. Mas é bom lembrar que os desentendimentos perduraram e, em anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, o papa criticou o nacionalismo exaltado, as teorias racistas e o antissemitismo do regime.
A partir dos anos 30, Mussolini voltou-se para o front externo, na tentativa de projetar-se como árbitro da Europa. Interveio em grande escala na Guerra Civil Espanhola (1936-39), e contribuiu significativamente para a implantação da ditadura de Franco. Ao mesmo tempo, desfechou uma operação de conquista colonial: a guerra da Abissínia (hoje Etiópia), que durou de 1935 a 1936. Ele contava com uma vitória fácil diante do que considerava um bando de sub-homens mal adestrados. Apesar da grande disparidade de forças, porém, o rei Hailé-Selassié e seus “sub-homens” resistiram por vários meses aos ataques e às atrocidades das tropas italianas, até capitular.
A aliança entre a Itália e a Alemanha nazista não se deu com facilidade. Mussolini temia o expansionismo de Hitler e estava longe de ser simpático a ele. Em certa ocasião, como lembrou Renzo de Felice – o maior biógrafo de Mussolini –, o Duce confiou a um intelectual fascista: “Os alemães são amigos difíceis, mas inimigos terríveis. Eu escolhi tê-los como amigos.” A aliança desigual dos amigos de conveniência concretizou-se formalmente com o chamado Pacto de Aço, celebrado em Berlim em maio de 1939.
A opção abalou a popularidade de Mussolini. Talvez tenha sido essa a principal razão de ele manter uma atitude de “não beligerância”, quando a guerra explodiu, em setembro de 1939, com a invasão da Polônia. A “não beligerância” durou até junho de 1940, quando o Duce anunciou a uma multidão entusiasta, aglomerada na Piazza Venezia, em Roma, a entrada na guerra contra “as democracias plutocráticas e reacionárias do Ocidente”. Naquela altura, as restrições da população à entrada no conflito tinham praticamente desaparecido devido à instauração de um clima guerreiro, alentado por uma sistemática propaganda e pelas vitórias alemãs.
O entusiasmo iria transformar-se em tragédia. Cerca de 400 mil italianos encontraram a morte na guerra – a cota maior, nas terras geladas da União Soviética. Além disso, as tropas italianas foram humilhadas nas frentes de combate. Hitler considerava um estorvo a presença de tropas peninsulares na União Soviética e, a pedido do próprio Mussolini, os alemães substituíram os italianos, que vinham sendo derrotados no norte da África.
No início de 1943, tendo como marco a vitória soviética em Stalingrado, os sinais de derrota do Eixo se multiplicaram e o descontentamento do povo italiano cresceu. Ele foi impulsionado pelos rumos da guerra e pelas restrições impostas ao consumo cotidiano. Greves de grandes proporções, organizadas pelos comunistas infiltrados nos sindicatos oficiais, explodiram em Turim e Milão, espraiando-se por outras cidades.
Nessa conjuntura, a destituição de Mussolini foi tramada por trás das cortinas. Ele acabou sendo derrubado do poder numa tempestuosa reunião do Grande Conselho – órgão máximo do Partido Nacional Fascista – em julho de 1943. Entre os que votaram pela destituição estava o conde Ciano, marido de sua filha Edda, cuja antiga admiração pelo nazismo dera lugar ao ódio de Hitler.
A pretexto de lhe ser dada proteção, o Duce foi conduzido preso a um hotel de difícil acesso, ao pé de um pico da cadeia montanhosa dos Abruzzi. Menos de dois meses depois, numa operação espetacular, paraquedistas alemães o resgataram. Ele se converteu então num títere manipulado por Hitler: um Mussolini alquebrado cedeu às pressões do Führer para que se pusesseà frente de um arremedo de regime – a República Social Italiana, mais conhecida como República de Saló, referência a uma pequena cidade às margens do lago de Garda, onde o precário governo foi instalado.
Os Últimos Dias de Mussolini começa quando a República de Saló já não existia e uma caravana de fugitivos partira de Milão para o norte da Itália. Era abril de 1945, a Segunda Guerra Mundial estava em seus últimos dias. Na frente italiana, as tropas anglo-americanas tinham avançado pela península, após o desembarque na Sicília e no continente. Em blindados, automóveis e caminhões, escoltada pelos soldados da SS, a caravana tentava encontrar um refúgio nos Alpes para Mussolini, sua amante Clara Petacci e os principais dirigentes fascistas.
A marcha envolvia riscos: os ataques dos partigiani tinham se tornado cada vez mais frequentes. Quando percorria uma estrada ao longo do lago de Como, o comboio foi barrado pelos guerrilheiros de uma brigada – comandada pelo conde Pier Luigi Bellini delle Stelle, um aristocrático advogado florentino – composta de vários estrangeiros que haviam integrado as Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola.
Quando se fazia uma inspeção dos veículos detidos, um dos partigiani deu com um militar embrulhado num capote cinzento do Exército alemão. Ele parecia mergulhado em sono etílico. Depois de muita insistência, ao ser chamado de “cavaliere Benito Mussolini”, o Duce finalmente se rendeu e entregou a seus captores uma metralhadora fornecida pelos alemães.
Começou uma discussão sobre seu destino. Um setor dos partigiani optava por um julgamento pelo recém-formado governo italiano, ou pelos países vencedores da guerra, como viria a ocorrer com os nazistas no Tribunal de Nüremberg. Majoritários entre os resistentes, os comunistas insistiram no fuzilamento sumário do Duce, opção que acabou por prevalecer.
Mussolini e Clara foram fuzilados na manhã do dia 28 de abril de 1945, nas proximidades de Dongo, pequena cidade junto ao lago de Como. De frente para os executores, Mussolini morreu com vários tiros no tórax, como revelou a autópsia do cadáver, realizada em Milão. Provavelmente, aconteceu o mesmo com Clara, mas seu corpo não foi autopsiado, ao que se sabe por influência familiar.
A manhã de 29 de abril apenas se esboçava em Milão quando os primeiros transeuntes que passavam pela Piazzale Loreto deram com os corpos de Mussolini, de Clara e de dezesseis dirigentes fascistas estendidos no chão. Sob a guarda de alguns sonolentos partigiani, os cadáveres haviam sido depositados à noite na praça. A escolha do local não fora fortuita. No ano anterior, tinham sido executados ali quinze presos políticos, em represália ao ataque contra uma viatura alemã.
A surpresa inicial dos passantes transformou-se em fúria. Sem encontrar obstáculos, uma pequena multidão pisoteou longamente os corpos de Mussolini e Clara, a ponto de se tornarem quase irreconhecíveis. Por fim, jatos de água dispersaram a multidão. Os partigiani recolheram os corpos do casal, do irmão de Clara e de mais quatro dirigentes fascistas, que foram pendurados de cabeça para baixo nas traves de um posto de gasolina. Horas depois, as cordas que sustentavam os corpos foram cortadas e eles se estatelaram no chão.
Os biógrafos do Duce costumam separar o homem público do indivíduo Mussolini. A divisão é explicável, com a ressalva de que a vida privada do líder fascista tem dimensões que incidem na esfera pública. Nessa esfera, o jornalista e orador talentoso tornou-se não apenas um personagem supostamente infalível, comandante supremo do povo italiano, como o pontífice de uma religião leiga que tinha um mito de origem, um culto e uma liturgia. O mito de origem era a Roma dos imperadores, que fizera do Mediterrâneo o mare nostrum, alvo dos planos expansionistas de Mussolini. A águia dos césares, a saudação imperial com o braço estendido, a cabeça do Duce – uma “cabeça romana” – integraram a simbologia do fascismo.
A própria denominação do movimento derivou de um símbolo romano, o fascio littorio – o feixe de tiras de vime no qual se encaixava uma machadinha representativa do poder do litor, alto magistrado de Roma. Após ser utilizado por vários movimentos sociais desde a Revolução Francesa, o fascio foi apropriado pelos fascistas e escolhido como símbolo oficial do seu partido.
A retórica do Duce seduzia a multidão que se aglomerava para vê-lo quando pronunciava seus discursos do alto do balcão do Palácio Venezia. A fala impositiva, o tom estridente da voz, as perguntas à multidão cuja resposta era previsível, as frases bruscamente interrompidas, enquanto ele colocava as mãos na cintura com ar de desafio, compunham uma figura ridícula aos olhos de hoje, mas magnetizante na Itália da época.
O ferimento de Mussolini na Primeira Guerra Mundial facilitou sua apresentação como combatente heroico, como o valoroso soldado italiano que nada tinha a ver com a imagem negativa que lhe atribuíam as nações inimigas (e as amigas também). Ao mesmo tempo, Mussolini surgia nas telas de cinema e nos jornais com imagens alternadas: ora aparecia como um homem comum, realizando tarefas corriqueiras no campo, ora como um super-homem, de torso nu, protagonizando extraordinárias proezas esportivas. Mao Tsé-Tung seguiria seus passos, muitos anos depois, ao supostamente atravessar lagos gelados na China, em pleno inverno.
Na vida privada, a figura doméstica de Mussolini, traçada pela propaganda, tinha algo de verdadeiro. O Duce seria o chefe de família tradicional, o pater familias provedor, afetuoso e infiel. Em 1915, ele se casou com Rachele Guidi, jovem de origem camponesa, nascida como ele em Predappio. Tiveram cinco filhos e, bem ou mal, mantiveram-se unidos até a morte de Mussolini. Dentre os membros da família, ele dedicava grande afeto a Arnaldo, seu irmão mais novo, cuja morte súbita, em 1931, o levou a uma profunda depressão.
Já a filha mais velha despertava sentimentos contraditórios. Edda era uma mulher de costumes avançados, além de viciada no jogo e na bebida. Mussolini teve altos e baixos nas relações com a filha até que o conde Ciano, marido de Edda e membro do Grande Conselho, votou pela destituição de Mussolini. Ele foi preso em outubro de 1943, acusado de alta traição, e submetido a julgamento. Os apelos de Edda ao pai para que salvasse o marido da morte certa não foram atendidos. Após um julgamento pro forma em Verona, Ciano e outros acusados foram condenados como traidores e fuzilados pelas costas por um pelotão de milicianos. Pai e filha romperam de vez.
Em paralelo à vida familiar, além de relações fugazes com uma coleção de mulheres, Mussolini teve pelo menos duas amantes: Margherita Sarfatti e Clara Petacci. A primeira era uma talentosa jornalista judia, casada com um advogado sionista, promotora da arte e da literatura de vanguarda. Mussolini se encantou por ela quando veio da província para Milão, onde Margherita o aproximou de escritores de vanguarda e redigiu muitos de seus discursos. Passados os anos, o amor arrefeceu. Margherita foi morar em Nova York, mas os contatos se mantiveram até por volta de 1942, quando a perseguição aos judeus tornou impossível o relacionamento entre os dois.
Clara era bem diferente de Margherita. Jovem romana, ela pertencia a uma família conservadora de classe média. Seu pai tinha boas relações nas altas esferas, a ponto de ter sido médico do papa. Aparentemente, era uma moça frívola, ociosa, cheia de luxo. Entretanto, alentou o Duce, já na meia-idade, com o sopro de sua juventude, e exerceu considerável influência sobre ele até a morte de ambos.
Psicologicamente instável, Mussolini alternou fases de euforia e de depressão. Sofria de vários males e cólicas estomacais o atormentavam desde a juventude. Quando nos primeiros anos da ditadura teve uma forte crise, médicos lhe diagnosticaram uma úlcera. Nunca se livrou dela, apesar de seguir uma dieta rígida que excluía vinhos, pratos condimentados e o fumo. Após sua morte, os legistas constataram a inexistência da “úlcera” e diagnosticaram um quadro psicossomático.
A emergência do fascismo desnorteou seus adversários políticos e deu margem a interpretações conflitantes. O historiador australiano R.J.B. Bosworth, também ele biógrafo de Mussolini, lembra uma afirmação de Antonio Giolitti, líder dos liberais italianos: “Os fascistas não passam de fogos de artifício: farão muito ruído, mas não deixarão atrás de si mais do que fumaça.” A ascensão de Mussolini ao cargo de primeiro-ministro foi facilitada por essa miragem. Figuras liberais, entre elas o próprio Giolitti, que se odiavam entre si, preferiram que Mussolini assumisse “transitoriamente” o poder a vê-lo entregue a um de seus rivais.
A desorientação ocorreu também no campo da esquerda. Antonio Gramsci, a vítima mais famosa do fascismo, preso por mais de dez anos nos cárceres de Mussolini até encontrar a morte, desdenhara do movimento fascista quando de sua formação, pois ele seria composto por “gente ridícula, do tipo que faz as notícias, mas não faz a história”.
Ao se tornar evidente que o fascismo era um fenômeno trágico e duradouro, a IIIª Internacional partiu para uma reconfortante interpretação de classe. O fascismo foi explicado como uma expressão espúria do grande capital, assentado socialmente na pequena burguesia e nas massas desorganizadas. A explicação tinha aspectos de verdade. Os fasci di combattimento, de fato, foram financiados pelos grandes proprietários rurais e pela burguesia urbana. Após a conquista do poder, estabeleceram-se relações relativamente harmônicas entre Mussolini e as grandes corporações. Para o mundo empresarial, a “paz social” assegurada pelo fascismo era um trunfo de muita valia, depois de anos de incerteza e de caos.
Mas, por seu grau de autonomia em relação às classes sociais, por seu estilo revolucionário, bem diverso do estilo da dominação burguesa tradicional, o fascismo se diferenciava da classe dominante. Grandes empresários foram reticentes à aventura da Abissínia, assim como à entrada da Itália na Segunda Guerra Mundial. De sua parte, Mussolini não hesitou em utilizar como recurso retórico a campanha antiburguesa, que ganhou força na década de 30. Assim, num discurso de 1934, lembrado por Renzo de Felice, no qual criticava os fascistas “aburguesados”, o Duce proclamou: “Não nego a existência de temperamentos burgueses, mas excluo que eles possam ser fascistas. O credo do fascista é o heroísmo; o do burguês, o egoísmo. Contra esse perigo só há um remédio: o princípio da revolução permanente.”
A maioria dos quadros do regime, por sua vez, tal como ocorreu na Alemanha nazista, tinha origem na classe média, e alguns de seus setores se beneficiaram com a ampliação dos grupos burocráticos de governo e do aparelho partidário. Houve mesmo uma renovação parcial da classe dirigente, provocada pela ascensão de “novos notáveis”, provenientes da pequena burguesia. Mas não é possível concluir que a ascensão do fascismo representou a tomada do poder pela classe média. Se a origem social tem de ser levada em conta, um fascista era antes de tudo um “homem novo”, um soldado da causa que tinha em Mussolini seu chefe e ídolo.
O ímpeto da classe operária organizada e de seus dirigentes foi quebrado com o impasse das greves. Quando o fascismo chegou ao poder, o que restava de organização independente nos sindicatos e partidos foi destruído. Mussolini empregou um misto de repressão e de cooptação para atrair os trabalhadores, como bem expressa o Codice del Lavoro, de 1927 – copiado, aliás, pelo Estado Novo no Brasil –, ao estabelecer o controle dos sindicatos e a proibição das greves e prever, ao mesmo tempo, várias garantias sociais. O Codice del Lavoro decorreu de um princípio maior do fascismo: a instituição de um Estado corporativo, em que a representação de patrões e empregados nas corporações asseguraria a colaboração, e não a luta entre as classes.
A interpretação liberal do fascismo seguiu um caminho diverso da versão classista, ao tomar como base a noção de totalitarismo, desenvolvida por Hannah Arendt e colegas. Estados totalitários seriam tanto o fascismo e o nazismo como o comunismo soviético, por buscarem intervir em todos os aspectos da vida social, e construir um “homem novo”, oposto ao indivíduo burguês. Dentre as virtudes desse “homem novo” estariam a obediência cega ao líder supremo e à sua capacidade de decisão, além do culto e da estética da violência, cuja estrela de primeira grandeza foi o poeta futurista Marinetti – um admirador de Mussolini que nunca abandonou as tendências anarquizantes do primeiro fascismo.
Essa interpretação sofreu críticas violentas do pensamento de esquerda, por colocar no mesmo balaio o nazismo, o fascismo e o regime soviético. De Felice, que estava bem longe das posições de esquerda, criticou também a noção de totalitarismo, pois ela seria incapaz de dar conta de regimes intrinsecamente diferentes, aos quais se aplicava o mesmo rótulo.
Seja como for, um dos méritos da noção de Estados totalitários consistiu na percepção de que esses estados tinham algumas características em comum, indo além dos traços gerais dos regimes autoritários, como é o caso do controle dos meios de comunicação, do aniquilamento dos divergentes e da utilização da violência como recurso político. Mas, para além de elementos comuns, a noção de totalitarismo não dá conta das distinções entre os Estados definidos como totalitários.
Mesmo entre a Itália fascista e a Alemanha de Hitler, as diferenças não são poucas. O regime nazista foi um furacão arrasador que em doze anos destruiu as instituições da República de Weimar e ergueu das cinzas um Estado policial, que levou o mundo à guerra. No âmbito externo, ao contrário da Alemanha nazista, Mussolini teve de se limitar à expansão no Mediterrâneo e ao sonho de construir um império na África, mesmo porque não poderia ir mais longe, pois a Itália era, no contexto europeu, uma potência de segunda classe.
O antissemitismo teve na península um papel ideológico e político pouco relevante até 1938, embora houvesse antijudeus raivosos nos círculos do poder, do gênero de Roberto Farinacci, um ex-ferroviário admirador estridente do nazismo, ou de Aquiles Starace, um simples contador que se tornou secretário do Partido Nacional Fascista.
Mussolini adotou, quase sempre, uma atitude de benevolência com relação aos judeus e, afinal de contas, tinha junto de si Margherita Sarfatti, de origem judia. Judeus fascistas participaram da Marcha sobre Roma, ocuparam vários postos de governo e lutaram na guerra da Abissínia, a ponto de o governo ter instituído, em terras africanas, um rabinato militar.
A reviravolta ocorreu logo após o fim da guerra colonial, quando os judeus – tidos como personagens execráveis do capitalismo financeiro – deixaram oficialmente de pertencer à “raça italiana”. Muitos deles foram jogados nos campos de concentração de Hitler, com o destino conhecido.
No plano das instituições, o fascismo italiano subordinou o partido único ao Estado, ao contrário do que sucedeu na Alemanha nazista. Era uma subordinação relativa: exibir a carteira de membro do partido era condição necessária para se assumir um cargo público. A preeminência do Estado como encarnação da nacionalidade teve no filósofo Giovanni Gentile seu nome mais expressivo e sintetizou-se numa frase que se tornou célebre: Tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato. Em tradução livre: “Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada absolutamente contra o Estado.”
A emergência do fascismo teve muito a ver com as circunstâncias da Itália do pós-guerra, na qual se entrecruzaram fatores como a descrença na democracia; a irrupção de um movimento operário vigoroso, mas que chegou a um impasse; as decepções sofridas pela Itália – nação proletária, como dizia Mussolini – nas negociações de paz posteriores à Segunda Guerra Mundial. De Felice, que se opunha às “interpretações demonológicas” do fascismo, tratou de inseri-lo num quadro histórico mais amplo. A ideologia fascista representaria o ponto de chegada de uma tradição política e cultural que deitava raízes no nacional-jacobinismo do Risorgimento (período de luta pela unificação da Itália), e se ligava aos “intervencionistas de esquerda” dos anos 1914-15.
A história de Mussolini não terminou na Piazzale Loretto. A partir das cenas macabras na praça, seu corpo ganhou outras dimensões de personagem principal. Enterrado discretamente num cemitério de Milão, ele foi dali “sequestrado” por um pequeno grupo de fascistas e percorreu um périplo secreto até ser entregue à sua família. Esta construiu um mausoléu em Predappio para onde acorrem, nas datas solenes do fascio, fascistas remanescentes e neofascistas vestidos de camisas negras, braços erguidos na saudação fascista, aos gritos de “Duce! Duce! Duce!”.
O mausoléu de Predappio é um lugar de memória. Mas não se pode afirmar que o fascismo esteja ali enterrado. Afinal de contas, menos de dois anos da morte de Mussolini, os remanescentes do Partido Nacional Fascista criaram uma nova agremiação partidária, o Movimento Social Italiano, MSI, numa referência à República Social Italiana dos últimos anos do Duce. É certo que o MSI regrediu e desapareceu, após ter alcançado vitórias eleitorais significativas nos anos 70 do século XX.
Mas a “lembrança inspiradora” de Mussolini não se extinguiu. Ela surge aqui e ali, nos discursos de Berlusconi e na vaga esperança de que um homem providencial venha salvar a Itália atual da crise econômica e da desordem.