"Homens que têm preconceito contra mulher na mesa e jogam diferente pelo fato de ela ser mulher, vão cometer erros. Então eu deixo." FOTO: JAY WHOJEDI NEWMUN
Pôquer na veia
O jogo no mais alto nível exige muito da pessoa e da mente. Às vezes fico encharcada de suor de tanto esforço, mas sem mover um músculo
Maria Eduarda Mayrinck | Edição 68, Maio 2012
MARIA EDUARDA MAYRINCK é carioca. Cresceu despreocupada entre a casa, fincada nas encostas da Joatinga, e a Escola Americana, na Gávea. Aos 12 anos mudou-se com a família para Nova York e aos 16 perdeu o pai, o que alterou sua juventude dourada. Graduada em cinema pela Universidade da Califórnia/San Diego, formou-se em sociologia pela PUC-Rio e cogitou encarar a carreira de restauradora de arte. Acabou achando seu espaço no cinema e como roteirista de televisão no Brasil. “Até o pôquer aparecer na minha vida…”, diz ela.
Maridu, apelido pelo qual é conhecida no mundo do pôquer profissional, considera-se quase tão metódica numa mesa de jogo quanto o personagem interpretado por Jack Nicholson no filme Melhor É Impossível. Prepara-se como uma atleta olímpica para o Mundial que começa este mês, em Las Vegas. É capaz de entregar o ás que tem na mão, mas não revela a idade.
LAS VEGAS, 14 DE MARÇO DE 2012_Esta manhã chegou um amigo do Brasil. Ele não veio jogar em nenhum torneio específico. Veio porque os jogos estão aquecidos. Como ele aposta alto, está entre os que recebem telefonema personalizado dos chefes dos cassinos com convite de hospedagem gratuita e outras mordomias. Quem joga mais alto ainda costuma ter a viagem toda bancada, tudo de primeira classe – em alguns casos o jatinho particular do cassino vai te buscar onde você estiver. Acho que apenas um brasileiro, carioca, se encaixa nesse seleto grupo. Os demais são quase todos asiáticos, pois é da Ásia que vem o dinheiro mais pesado. Na outra ponta, basta sentar um russo ou um francês numa mesa de oito ou nove lugares que a lista de espera do jogo se torna imensa e os tubarões começam a nadar em volta (tubarão = jogador bom). Deve ser algo genético a determinar que os russos e franceses sejam, no geral, ruins/péssimos no pôquer. Ou, pelo menos, esse é o conceito. Fico quieta. Não sou de subestimar.
David, meu namorado – estamos juntos há três anos –, é um dos melhores jogadores de pôquer do mundo. Campeão mundial, famoso por jogar os jogos mais caros do planeta. Sou uma poodle perto dele. Ele me ensina muito, muito mesmo, mas o nível de jogo dele está muito além do meu. Conheço minhas limitações e até nos meus dias mais iluminados mantenho o pé no chão para nunca levar banda do jogo. O pôquer faz isso com qualquer um que levanta o nariz ou se acha “inteligentinho”: ele te dá um soco na cara e fica te socando até você aprender que não sabe nada e baixar a cabeça. Aprendi.
O jogo em si é fácil, as regras são simples. Com a ajuda de qualquer site na internet é possível aprendê-las em cinco minutos. Um par, dois pares, trinca, sequência, apostas cegas (blinds) etc. Simples mesmo. Dominar os aspectos ultracomplexos é que são elas, e costuma consumir o resto da sua vida.
Não existe sorte a longo prazo. Pôquer, como o mercado financeiro, é um jogo complexo onde você toma decisões altamente calculadas baseadas em informações imperfeitas.
A diferença entre um jogador top e aquele que joga “por diversão” ou mesmo um profissional de limites médios pode ser medida pelas camadas de conhecimento do oponente e de si mesmo exigidas no pôquer – o chamado “metagame”. E este só os grandes alcançam. Primeira camada: eu estou jogando contra você, e eu sei o quanto você sabe jogar. Segunda camada: eu também sei que você sabe que eu sei o quanto você sabe. Terceira: como eu sei que você sabe que eu sei o quanto você sabe, eu também sei que você sabe o quanto eu sei que você sabe que eu sei de você. E assim por diante… Isso é o metagame. Quanto mais camadas desse “eu sei que você sabe que eu sei que você sabe” você conseguir atravessar, melhor você será. Parece fácil, mas garanto que não é.
O pôquer no mais alto nível exige muito da pessoa e da mente. Quando você desvenda essas camadas do metagame – as suas e as dos seus oponentes –, você passa a andar na ponta da faca mais afiada o tempo inteiro. É muito intenso. E tenso. Tem dias que fico encharcada de suor de tanto esforço, mesmo sem mover um músculo. Desvendar o que te coloca na frente dos seus oponentes a ponto de você saber o que ele vai fazer antes mesmo de ele saber, e como você vai induzi-lo a fazer exatamente o que você quer que ele faça… isso é uma arte para poucos e leva a vida inteira para aprender. Em dias muito iluminados, eu sinto essa “musa cantando em mim” e levo o meu metagame para níveis bastante profundos, mas eu volto rápido para a superfície – preciso de ar. Como já senti essa “iluminação”, vivo correndo atrás da sensação novamente.
15 DE MARÇO_Começou a esquentar em Las Vegas, vai chegar o verão. Eu adoro. Para quem nunca sentiu o calor do deserto, a experiência é humilhante. A gente chega do Brasil crente que conhece calor e o deserto ri da nossa cara. É uma secura que você não acredita. E o sol fica a pino até as oito e meia da noite, um contraste enorme com o Brasil, especialmente o Rio, onde faz aquele calor de África, mas é úmido e fica todo mundo com cabelo de Gal Costa e bigodinho de suor. Nosso calor carioca é preguiçoso, você evita se mexer para não suar. Aqui pode escaldar os fogos do diabo que tudo continua seco, o cabelo continua bom, liso, escorrido e você não sua uma gota. Calor de Primeiro Mundo. Adoro!
Acordei e a calça jeans apertou. Parar de fumar tem seu preço. Parei há dez dias e está sendo uma experiência detestável. Pelo menos serviu para eu descobrir algo novo dos meus amigos aqui em Vegas. Tenho começado minhas conversas com um “Você por acaso toma remédio para ansiedade ou depressão? Se toma, pode me dar alguns? É que parei de fumar, ando muito ansiosa e mal-humorada, ontem chorei durante um comercial de carro, tá foda…”. A resposta tem sido afirmativa e assim consegui acumular uma quantidade boa de remédios tarja preta. Estou impressionada com o fato de todos tomarem algo. Melhor não puxar esse fio…
16 DE MARÇO_Ando com uma ética de trabalho péssima, logo eu, que considero a disciplina uma liberdade. Não joguei sequer dez horas de pôquer esta semana, e com o Mundial se aproximando preciso meter a cara logo. Preciso fazer listas. E ter horários. Adoro uma lista – considero lei o que botei por escrito. Amanhã vou correr 6 quilômetros, vou fazer ioga e vou jogar online seis mesas ao mesmo tempo por pelo menos cinco horas. Míseras cinco horas… que patético. Antigamente jogava vinte horas seguidas e ria, queria mais. Hoje em dia exige esforço. Desde que parei de fumar não ando com meu nível de foco habitual. Mas minha mania de ordem não foi alterada. Sou ultraorganizada, na minha casa não tem um alfinete fora do lugar, sempre tem comida. Gosto das coisas regradas.
Esta semana voltei a sentar numa feature table – a mesa filmada de todos os ângulos pelas câmeras da ESPN. Tudo, ali, é mostrado: as cartas, as apostas, as expressões, o que falam os jogadores na mesa. O pessoal ama me colocar na mesa de filmagem porque sou palhaça, converso com todo mundo. Teve um lance famoso que armei no Mundial do ano retrasado numa mesa dessas. No meio de um blefe meu bastante arrojado, um jogador me deu um encaradão. Eu olhei fundo nos olhos dele e falei: “Pode olhar à vontade, estou cheia de botox, você não tira expressão alguma da minha cara.” A galera amou, morreu de rir e é óbvio que ganhei a mão… Agora, sempre que jogo me colocam na feature table – o que tem o inconveniente de todos verem como eu jogo, então tive que me adaptar.
Jogador de pôquer usa a roupa que quiser – pode estar de chinelo, moletom, não importa. Muitos sequer tomam banho – eca. Todos jogam superagasalhados porque faz um frio polar nas salas de pôquer. Eu só uso óculos escuros quando tem tubarão muito forte na minha mesa, daqueles que conseguem ver minha alma pelos meus olhos. De resto, não uso. Tampouco uso iPod, como muitos fazem.
Em matéria de etiqueta só é malvisto você trazer comida gordurosa para a mesa e comer com as mãos. Você acabaria lambuzando as cartas, que por sinal são trocadas a cada sessenta minutos. Em compensação, barras de cereais e qualquer outra guloseima fazem parte da rotina de quem fica sentado sem arredar o pé por horas.
17 DE MARÇO_O carinha que cuida da sala de pôquer do Aria, o novo cassino daqui, telefonou avisando que o jogo que eu gosto está começando. Damos gorjeta o ano inteiro para esses funcionários nos manterem informados. Subo na minha Vespa e em cinco minutos estou sentada na mesa, rindo com os outros jogadores e me preparando para um longo dia de pôquer. Se você não chega rápido, não consegue mais sentar e pode demorar umas vinte horas para conseguir vaga numa mesa boa – mas até lá os jogadores mais fracos já cansaram e foram embora.
Volto para casa catorze horas depois, exausta. Minha cabeça parece que vai explodir. Mas a sessão foi boa. Terminei 6 buy ins para a frente [buy in é o valor pago para sentar numa mesa]. Cada mesa tem o seu valor e meu buy in, hoje em dia, oscila entre 2 e 5 mil dólares. Portanto, “6 buy ins para a frente” significa levantar da mesa com um ganho seis vezes maior do que o investido. Só que avaliar o seu jogo pelo resultado de uma única sessão é coisa de amador. A vida do jogador profissional é a soma de todas as sessões de um ano ou de uma carreira. Saber administrar o seu bankroll de forma a não quebrar. Bankroll (BR) é a soma que você destina para o seu pôquer. Isso não inclui o quanto você dispõe para pagar contas, ir ao cinema, viver. É preciso ser bastante organizado para não atravessar fronteiras e o melhor jeito de fazer isso é nunca arriscar em uma só sessão mais de 10% do seu BR. Nada simples.
Eu, por exemplo, separo 30% para o pôquer. De nada me serviria ter uma fortuna presa em investimentos que não podem ser sacados amanhã. Liquidez é o nome do jogo.
No fundo, uma mesa de pôquer funciona um pouco como o ciclo natural das espécies. Os tubarões rondam os peixes porque sem o peixe o jogo não forma, e tubarão esperto sabe que sempre deve tratar bem os peixes: ser simpático, educado, rir das piadas, tudo para manter o cara voltando sempre. Ao longo do caminho, alguns tubarões terminam se mordendo. Natureza do jogo. Tem que ter dente afiado.
18 DE MARÇO_Hoje viajo para a Inglaterra. Vou passar duas semanas com meu irmão mais velho, recém-divorciado, banqueiro, que mora lá e só sai com mulher que preenche um de dois critérios: ser golpista ou totalmente maluca.
19 DE MARÇO_Cheguei em Londres e saí correndo do avião para não pegar fila na imigração. Sou rata de viagem. Por causa do pôquer viajei um total de 112 mil milhas só em 2010. Meu irmão me recebe com um caloroso “Cacete, você engordou hein?”. Respondo “Também senti saudades” e subo para o apartamento pós-divórcio dele, que é uma graça. Chelsea, bairro bom. O fuso horário me pega e vou assistir ao seriado Grey’s Anatomy. Assisto a todos os seriados, sem exceção, mesmo os ruins. Julgue à vontade.
Londres é linda… amo, adoro. Será que a rainha está em Buckingham? Amo a rainha… fã mesmo, com os terninhos amarelos e o cabelinho azul. Quando algum inglês fala mal da monarquia tomo como ofensa pessoal. Essa rainha recebeu treinamento de mecânica para atuar como motorista de caminhão na Segunda Guerra Mundial, sobreviveu a doze primeiros-ministros e agora casou o neto com uma das mulheres mais simpáticas e prontas para o cargo. A rainha é minha ídola. Fofa.
21 DE MARÇO_Ontem, primeiro dia da primavera e o tempo em Londres foi de sol. Friozinho ameno, gostoso. No dia em que parti de Vegas chovia. E chuva no deserto é algo raro. E agora aqui em Londres só faz sol, um sol que, para ser sincera, começo a achar um pouco irritante. Gosto de Londres quando está de roupagem cinza. Como passo boa parte do ano no deserto, sonho com dias seguidos de chuva honesta.
Marquei encontro em Notting Hill com amigos que adoro. Uma é a americana Vanessa, recém-formada por Yale, primeira mentora e professora de pôquer do David. Miranda é sua namorada há dois anos – professora do ensino médio em Nova York, largou tudo para correr o mundo com Vanessa, que ganhou, literalmente, todos os torneios mais importantes do circuito de pôquer internacional em 2009 e 2010. Ela chegou aos 24 anos de idade tendo ganho uns 3 milhões de dólares.
O outro amigo é o Joe, metade coreano, metade californiano, que mora no mesmo prédio que eu em Las Vegas. O Joe é do meu tamanho, 1,63 metro em dias bons, mais magro que eu, tenta apostar comigo sobre tudo – “Cem dólares que o sinal fica vermelho em quatro segundos, quer?” – e fez um dos blefes mais famosos e mais caros do pôquer, valendo 2 milhões de dólares.
Pois é, galera da pesada e das mais queridas, esses meus amigos. Quando andamos juntos, formamos um quarteto deliciosamente desconexo. E essa é uma das coisas de que mais gosto no pôquer: as pessoas. Elas não julgam. Julgam só no pano, na mesa. De resto, querem é paz e sossego, a maioria se recusa a usar qualquer coisa além de chinelo. É uma galera sem estresse, sem drama. Querem debater par de valetes, ou ás e rei, querem rir e querem apostar… apostar alto. Adoro.
É importante eu esclarecer que não jogo nenhum jogo de cassino – nem roleta, nem dados, nem blackjack. Não gosto de nenhum jogo no qual eu não tenha uma vantagem matemática calculada. No pôquer você não joga contra o cassino, e sim contra oponentes. Até os espaços físicos são separados: nos cassinos, as salas reservadas ao pôquer são independentes dos salões principais da casa. O máximo que faço em matéria de jogos de azar é uma “roleta de cartão de crédito” com os amigos. Funciona assim: saímos para jantar, não importa se duas pessoas ou vinte, e no final todos colocam o cartão de crédito na mão do garçom. Ele embaralha os cartões escondidos atrás das costas, e vamos em ordem falando “Para de embaralhar; o terceiro cartão de cima pra baixo está salvo” etc. etc. até sobrarem dois cartões na mão do garçom. A última pessoa a escolher fala “mão esquerda está salva” ou “mão esquerda paga” e a pessoa paga o jantar inteiro.
23 DE MARÇO_Fui jantar com um amigo brasileiro que abriu um SPA em Londres e massageia um bando de famosos. Quero saber de todos os babados. Adoro esse tipo de coisa besta sem pretensão, tipo fofoca de famosos ou reality shows bem bagaceiros. De super-heroína eu não tenho nada.
Fui roteirista na TV Globo, fazia cinema e publicidade e tocava minha vida quando, numa tarde de 2003, machuquei o joelho. Estava de cama em casa e um amigo com quem eu costumava jogar gamão veio me visitar. Foi dele a dica: “Você precisa jogar esse pôquer online, vai amar, olha só.” Baixei o programa, comecei a jogar e foi literalmente amor à primeira vista. Passei noites tentando aprender o ofício. Esqueci da minha recuperação, fiz um documentário sobre dois bambas brasileiros e assim comecei a entrar no mundo do pôquer de gente grande. Em pouco tempo, larguei a Globo e me tornei a brasileira com maiores resultados tanto no circuito online como ao vivo no circuito internacional. Fui a primeira brasileira a ter patrocínio do maior site de pôquer do mundo. Foi tudo perfeito e na hora certa.
Hoje moro entre o Rio e Las Vegas e vivo disso. Minha família no início detestou, mas quando fiz uma apresentação para eles mostrando gráficos, dando explicações da diferença entre pôquer e jogos de cassino, eles começaram a entender e a me apoiar. Hoje são meus maiores fãs.
Comecei a jogar nove anos atrás, fazendo um depósito inicial de mil dólares. Desde então, já ganhei mais de 1 milhão de dólares, mas isso não significa que eu tenha 1 milhão de dólares – eu sempre reinvisto tudo em mim, nos amigos, nos meus negócios de pôquer, no meu site, pago todos os meus impostos certinho e acabo só andando com uns trocados no bolso. Meu namorado, que começou na carreira com um depósito de 200 dólares, já ganhou mais de 6 milhões. Mas ele também já perdeu perto de 100 mil dólares numa noite. E ganhou o dobro em outra ocasião.
Eu mesma terminei o mês passado com um passivo de 1,9 mil dólares, o que não me assusta, porque está dentro dos meus limites.
A vida toda é uma longa sessão – então pode haver meses em que o saldo é negativo. Importante é que o saldo seja positivo ano a ano, senão você quebra e não joga mais. No meu dia a dia sou impulsiva, derramada, penso pouco antes de agir. No pôquer, sou calculista e racional.
2 DE ABRIL_De volta a Vegas. Impus que esta semana vou estudar e treinar seis horas por dia (mínimo), e fazer ginástica umas quatro horas pelo menos. É uma volta à disciplina que sempre tive no trabalho – em qualquer trabalho. Talento, estrela, sorte, inspiração… nada disso existe sem o esforço. Hoje comecei. Como se treina para jogar pôquer? Tem mil maneiras. Primeiro e mais importante, é preciso jogar. Jogo horas infinitas no computador, pelo menos seis mesas ao mesmo tempo, às vezes chegando a 24. Meu máximo foram 32 mesas simultaneamente. Mas não valeu. Joguei feito robô, não pensava, só agia.
É um ritmo insano. Tenho dois monitores ligados no micro, além da tela do próprio computador. As mesas de pôquer ficam expostas nos monitores, enquanto reservo a tela do micro para vídeos do YouTube, músicas do iTunes e o papo aberto com meu estábulo de onze “cavalos” no Skype.
Chamamos de “cavalo” o jogador que joga para outro jogador. Os meus jogam para mim online, com o meu dinheiro. O risco é todo meu. Se eles lucram, ficam com 35% do que ganham e eu embolso o resto. Alguns “cavalos” já estão comigo há tanto tempo que faturam 45% ou mais, mas cada caso é um caso. Também tenho um sócio no negócio, além de duas pessoas da minha absoluta confiança que administram os valores movimentados. Isso porque eu não quero gerenciar o que cada um faz, joga, ganha, perde. Tampouco tenho tempo para cuidar de cada um pessoalmente.
Nunca tive a intenção de ter um estábulo tão grande – mas foi crescendo, crescendo e cá estamos. Este mês estou testando dois “cavalos” novos. Todos sabem que é proibido ter ego no estábulo, ninguém deve reclamar comigo sobre nada. Se estão com problemas, procuram meus administradores. Só apareço de vez em quando, para dar uma força e um gás no time, mas no geral deixo correr solto. Apenas faço questão que me mandem mãos interessantes para analisarmos juntos, ou para que eu estude sozinha.
Voltando à preparação para o Mundial: estou tentando jogar entre mil a 2 mil mãos por dia. Para chegar a esse número, basta jogar entre dez e catorze mesas ao mesmo tempo. Em cada mesa você opera uma média de 55 mãos por hora, o que equivale a um dia de trabalho normal como todo mundo (seis a oito horas de trabalho diário). A meta sempre é ganhar, mas o que me interessa no momento é me testar em diversas situações para, depois, analisar o conjunto com a ajuda de um simulador de mãos. Qual a melhor forma de induzir o adversário a fazer apostas do tamanho que eu quero e como levar meu oponente ao erro são coisas que eu treino sem parar, e o único jeito de treinar é jogando.
6 DE ABRIL_Ontem completei um mês sem acender um cigarro e estou com mais vontade de fumar agora do que estava no começo, então tudo vira ansiedade. Fiquei pastando o dia todo, sem gás para trabalhar nem para treinar no simulador; tampouco fui fazer ginástica ou natação. E a quadra de squash tinha fila. David foi assistir a um torneio de StarCraft [jogo de computador de estratégia, em tempo real] com um bando de amigos, e hoje não tem jogo de pôquer no cassino porque é Sexta-Feira Santa. Mais: um e-mail que eu estava esperando não entrou. Ansiedade pura. Então eu pedi um sushi, abri o computador e comecei a jogar World of Warcraft. Tem isso também, eu sou uma nerd completa. Jogo videogames. Melhor que fumar…
7 DE ABRIL_Dia bom. Acordei e fui nadar um pouco. Depois joguei squash, corri 5 quilômetros e fui estudar pôquer. Joguei 1 277 mãos hoje, simulei dezoito situações e ganhei dez buy ins. Depois fui ao cinema ver Jogos Vorazes, jantei um balde de pipoca, são onze da noite e estou indo dormir.
Adoro quando homens têm preconceito com mulheres na mesa de pôquer (a proporção continua sendo de nove por um), porque isso automaticamente os coloca em desvantagem. Quem joga diferente contra uma mulher pelo fato de ela ser mulher vai cometer erros, então eu deixo. Nunca fiz o papel de gostosa na mesa, porque isso não tem nada a ver comigo; tampouco tentei fazer o tipo inteligente, para não dar bandeira do quanto de fato sei ou não sei. Quanto mais eu deixar a pessoa confusa, melhor será o meu dia.
Converso estratégia de pôquer com não mais de dez pessoas no planeta, e basta. Você nunca sabe quando vai jogar contra a pessoa com quem você falou de estratégia, então melhor é ficar quieto.
8 DE ABRIL_Hoje é domingo de Páscoa, o que não faz a menor diferença para mim. Estou em plena fase de preparação para o World Series of Poker, nome oficial do Mundial de Las Vegas, cujo epicentro é o Rio Casino. Nunca acontece nos salões da jogatina de azar, mas no centro de convenções do hotel do cassinão, cujas maçanetas têm a forma de papagaios e as salas atendem por nomes como Amazônia e Araguaia. Serão disputados 61 eventos, numa média de doze horas de jogo por dia. A coisa toda começa no dia 27 de maio e vai até o dia 16 de julho, ou seja, 50 dias seguidos de pôquer na veia. Não precisa já ter jogado alguma vez na vida para se inscrever. Você simplesmente entra numa fila, como se estivesse na Disney ou num cinema, e compra a sua entrada – tem eventos de mil a 50 mil dólares –, se registra e joga até sobrar um só jogador com todas as fichas da mesa. Se você tiver sido eliminado (é proibido fazer recompra dentro de um mesmo evento), cai fora e vai jogar em outra mesa, essa não te pertence mais.
Como o pôquer tem um fator sorte a curto prazo, ele permite a qualquer um se tornar campeão mundial “acidental” numa das modalidades da competição. Essa é, a meu ver, a maior beleza do jogo. Literalmente, qualquer um pode ganhar, basta o vento estar a favor. Se você tiver um par de damas na mão pode muito bem quebrar meu par de reis se eu bater uma dama e você fizer trinca. Embora, matematicamente, eu tenha 81% de chances de te derrotar.
Todos os 61 eventos dão o título e uma pulseira de campeão mundial ao vencedor. A cerimônia de premiação ocorre sempre no dia seguinte a cada vitória, no salão apinhado de jogadores – mais de 3 mil, em média –, durante o intervalo de quinze minutos obrigatório a cada duas horas de jogo. Tocam o hino nacional do seu país com direito a bandeira nacional e tudo. Você é inundada de pedidos de entrevistas, fotos, seu nome vai para o Wall of Champions, o mural dos campeões, e você pode se considerar “celebridade” do pôquer. O evento mais cintilante deste ano será o de número 61, o último, para o qual são esperadas perto de 8 mil pessoas. Quem vencer embolsa em torno de 8 milhões de dólares.
11 DE ABRIL_Um bom preparo físico é crucial para a maratona, porque você vê muito jogador bom derretendo a partir da segunda semana do Mundial. O corpo não aguenta. Você começa a ficar doente por causa das longas horas, o choque entre o calor desesperador do deserto e o ar-condicionado ártico dos salões (nas salas chega a fazer 9 graus e já cheguei a usar cachecol e luva). Se você está sarado, come só comida orgânica sem açúcar, não bebe álcool, tem um bom preparo físico e se depara numa mão às onze da noite com alguém fora de forma, que há dias janta cachorro-quente e batata frita, quem vai tomar as melhores decisões? O outro começa a duvidar das jogadas que faz, perde a autoconfiança, cai num buraco negro.
Me mantenho afiada. Treino com um personal, todas as manhãs, cedinho, não saio à noite durante o campeonato, não bebo, vivo uma vida de caserna. Nem telefone atendo para não me distrair. Já cheguei perto várias vezes, mas nunca ganhei um título. Ainda. Neste Mundial vou investir cerca de 70 mil dólares (em torneios meus, dos meus “cavalos” e de jogadores de quem compro alguma porcentagem). David deve jogar em torno de 200 mil dólares. Mas o que todo mundo quer, no fundo, é ostentar a cobiçada pulseira de campeão mundial. Chorei quando o David ganhou a dele no ano passado.
12 DE ABRIL_Estou exausta. Entrei no ritmo pesado de treino. Hoje pedalei 22 quilômetros, corri 6, fiz uma hora de ioga e joguei 900 mãos de pôquer. São onze da noite, comi menos de 1 590 calorias e estou indo dormir. Amanhã vou correr 12 quilômetros, nadar sessenta piscinas de 25 metros e pedalar 10 quilômetros. Cigarro, nunca mais! E como não bebo, não cheiro, não tomo remédio e não como açúcar, meu próximo passo é virar vegetariana. Amém.
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