ILUSTRAÇÃO: LIVIA ARNAUT
Por aí a passeio
Ana Martins Marques | Edição 74, Novembro 2012
O GUARDA-CHUVA
Atravessamos
no mesmo ritmo
a avenida larga
meu guarda-chuva
e eu
se nos vissem de cima
poderiam pensar
que ele se move sozinho
círculo negro
entre outros círculos
negros, mas também um vermelho
e um xadrez de vermelho
e mesmo um exemplar irônico
estampado de céu azul com nuvens
e vistos de outro ângulo
passaríamos por uma espécie boa
de centauro
um daqueles tipos cujas partes
se ajustam razoavelmente bem
chove, andamos no mesmo passo
parecemos de acordo sobre para que lado ir
ele me presta um serviço não desprezível
dando-me a ilusão de que a natureza
é não muito mais do que um ligeiro incômodo
no meu caminho entre a casa e o trabalho
de que as forças elementares
são perfeitamente administráveis
de que conhecemos
a língua desconhecida da água
como se tivéssemos
tempo para isso
e a ele também talvez não seja desagradável
que eu o leve por aí a passeio
com suas hastes abertas
o que deve ser uma espécie de alegria
vamos relativamente bem
até que eu o esqueço num café
MINAS
Se eu encostasse
meu ouvido
no seu peito
ouviria o tumulto
do mar
o alarido estridente
dos banhistas
cegos de sol
o baque
das ondas
quando despencam
na praia
Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais
O QUE EU LEVO NOS BOLSOS
Um isqueiro
amarelo
um pouco
de areia
moedas brilhantes
teu nome
anotado
num papel dobrado
minha praia
de bolso
um isqueiro
amarelo
um pouco
de areia
moedas brilhantes
teu nome
anotado
num papel dobrado
meu deserto
de bolso
FRENTE A FRENTE
Acredite
um dia seremos felizes
como casas geminadas
como um jardim que leva
a outro jardim
como selos repetidos
de uma mesma coleção
Poderemos enfim ficar
frente a frente
como duas janelas
simétricas ou
como duas pessoas
que se preparam
para dançar
O BARCO
Escrever poemas é pôr-se a navegar
enquanto se constrói o barco
com o qual se navega
não é muito seguro
construir um barco em alto-mar
Escrever poemas metalinguísticos então
é pôr-se a navegar
enquanto se fala sobre a construção do barco
com o qual se navega
não é seguro
usar palavras para enfrentar o mar
No coração da viagem está o barco
no coração do barco
está o mar
ritmado
batendo
DAS VANTAGENS DE ESCREVER POEMAS
Poemas podem ser escritos de pé
mas ninguém nunca escreveu
um romance de pé
e isso de estar sempre sentado
certamente acaba
por interferir nos romances
e não será de se estranhar
se tiver arruinado
um bom número deles