Porventura
Que não se engane ninguém: ser um poeta é uma África
Antonio Cicero | Edição 67, Abril 2012
O POETA LÍRICO
Não sei contar histórias. Minha prima,
Corina, que sabe fazê-lo, disse
ser esse defeito a causa ostensiva
do que, em falso tom de corriqueirice,
ela se deleita em qualificar
de “o óbvio malogro” das minhas lides
poéticas. Tive que concordar
pois, por não sei que artes de berliques
e berloques, ela me criticava
com um argumento do próprio Filósofo
– para ela anacrônico e monótono –
em cuja obra-prima eu mergulhara
há tanto tempo – e a fundo – e ela nada.
Eu morreria se tivesse um óbolo.
NIHIL
nada sustenta no nada esta terra
nada este ser que sou eu
nada a beleza que o dia descerra
nada a que a noite acendeu
nada esse sol que ilumina enquanto erra
pelas estradas do breu
nada o poema que breve se encerra
e que do nada nasceu
3:47 H
Bem que Horácio dizia
preferir dormir bem
a escrever poesia.
NA PRAIA
Na praia – parece que foi ontem –
ficávamos dentro d’água eu,
Roberto, Ibinho, Roberto Fontes
e Vinícius, a água era um céu,
e voávamos nas ondas transparentes,
deslizantes, do azul
mais profundo do fundo ciã
do oceano Atlântico do sul.
Mas era outro século: Roberto
morreu, morreu Vinícius, Roberto
Fontes nunca mais vi, e Ibinho
casou e mudou. Já não procuro
o azul. Os mares em que mergulho
são os homéricos, cor de vinho.
AS FLORES DA CIDADE
Há flores pelo caminho através
da cidade à cidade: naturais,
em canteiros e em árvores, talvez,
mas quase todas artificiais
nos cabelos dos bebês, em cachorros
mimados, em vitrines e revistas
femininas, em cartazes e outdoors,
e – de novo naturais – em floristas,
camelôs na calçada e, sobretudo,
nas mãos do entregador de flores, cujo
olhar esverdeado sobre as rosas
é puro absinto e tudo nos deslembra,
lançando-nos dúvidas hiperbólicas
sobre o próprio destino a uma hora dessas.
PRESENTE
Por que não me deitar sobre este
gramado, se o consente o tempo,
e há um cheiro de flores e verde
e um céu azul por firmamento
e a brisa displicentemente
acaricia-me os cabelos?
E por que não, por um momento,
nem me lembrar que há sofrimento
de um lado e de outro e atrás e à frente
e, ouvindo os pássaros ao vento
sem mais nem menos, de repente,
antes que a idade breve leve
cabelos sonhos devaneios,
dar a mim mesmo este presente?
O POETA MARGINAL
Em meio às ondas da hora
e às tempestades urbanas
conectarei as palavras
que trovarão novas trovas.
Lerei poemas na esquina,
darei presentes de grego;
a cochilar com Homero,
farei negócios da China.
Exporei tudo na rede
sem ganhar nem um vintém:
a vaidade, a fome, a sede,
certo truque, rara mágica.
Que não se engane ninguém:
ser um poeta é uma África.