Na eleição que terminou com a vitória de Bolsonaro, em 2018, pela primeira vez eu vi minha mãe se engajar numa campanha política: os mortos sempre a interessaram mais que os vivos CRÉDITO: LUCAS TONON_2022
Preparativos para o fim do mundo
Minha mãe e seu mergulho no mundo das teorias conspiratórias
Felipe Charbel | Edição 194, Novembro 2022
Primeiro viria o aguaceiro. Seria uma tempestade de proporções bíblicas, como ninguém jamais tinha visto. As ruas virariam rios, os carros boiariam como brinquedinhos de plástico na banheira das crianças, a água jorraria dos bueiros em gêiseres altos como os prédios. Depois escutaríamos um estrondo, e uma onda gigante lavaria as ruas, arrastando postes, casas, árvores, bichos, pessoas. Mas eu não tinha o que temer. Minha mãe – foi ela quem me deu a notícia – havia se inteirado de tudo nas viagens astrais que fazia durante o sono ou nas suas meditações do fim da tarde. Seus informantes “lá do outro lado” haviam sido categóricos: “O mundo como a gente conhece vai deixar de existir”, ela repetia com os olhos brilhando. “Alguns vão sobreviver, poucos, e nós estaremos entre eles. Vamos ficar aqui para repovoar o planeta e recomeçar a humanidade do zero.”
Era o comecinho dos anos 1990, eu tinha 12 ou 13 anos, e achei essa conversa de que estávamos às vésperas de uma hecatombe meio pesada. Eu mal tinha dado meu primeiro beijo, por que motivo os seres “do outro lado” iriam escolher logo a mim, alguém sem experiência no ramo, para repovoar a Terra? Eu desconfiava, e muito, dos arroubos apocalípticos da minha mãe, mas não chegava a duvidar completamente de tudo o que ela dizia. Por um tempo, consegui me manter indiferente às “boas-novas” que ela revelava a conta-gotas, como alguém que confessa um segredo dos mais íntimos. Mas depois de algumas semanas me vi fisgado pelo enredo que, com os recursos da sua imaginação fértil, ela vinha há anos concebendo. Acho que me encantei com o último ato, o desfecho da peça: a cena em que nos prepararíamos em família, como se fôssemos um time invencível, para esperar o fim do mundo.
Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz
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