Stardust
Problemático
As inquietudes de um matemático
Bernardo Esteves | Edição fields, Agosto 2014
Em 1960, antes que o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada se tornasse um centro conhecido no exterior, o Brasil inscreveu seu nome na história de modo indireto. Aqui se desenvolveram trabalhos fundamentais para dois campos diferentes da matemática, ambos em menos de seis meses e frutos de um mesmo pesquisador. Se o cenário era brasileiro, o protagonista era o americano Stephen Smale, no Rio para uma temporada como pós-doutorando no Impa. A Medalha Fields que lhe coube em 1966 deveu-se em parte aos resultados obtidos aqui.
Smale era então um jovem prodígio da topologia, ramo da matemática que se preocupa com as formas e suas propriedades no espaço. Três anos antes, o pesquisador assombrara os colegas ao mostrar que uma esfera podia ser virada pelo avesso, um pouco como se faz com uma luva. A prova veio numa demonstração matemática audaz e intricada, sob a forma de um artigo de dez páginas desprovido de qualquer figura. Smale mal acabara o doutorado na Universidade de Michigan.
Em 1956, aos 26 anos de idade, o americano participou de um congresso internacional de topologia na Cidade do México, onde conheceu o matemático alagoano Elon Lages Lima, que teve a ideia de apresentá-lo ao cearense Mauricio Peixoto. Peixoto chamou a atenção de Smale para seu campo de estudo, os sistemas dinâmicos – uma área que investiga a evolução no tempo de uma série de fenômenos. De volta ao Brasil, Peixoto, um dos fundadores do Impa, convidou o colega para uma temporada no Rio.
Smale tinha uma bolsa do governo de seu país e veio com a mulher e os dois filhos, o mais velho com 2 anos e meio, a caçula com 9 meses. Alugaram o apartamento de um oficial da Aeronáutica que se refugiara na Argentina depois de uma tentativa frustrada de golpe contra Juscelino Kubitschek. Era um apartamento de onze cômodos num prédio de luxo com vista para o morro da Babilônia, a poucas quadras da praia do Leme, conforme ele descreveu num memorial escrito anos depois. “Também contratamos as duas empregadas dele. O dólar rendia bem naquele tempo.”
No Impa, Smale encontrou interlocutores com quem discutir os problemas que estava atacando nas duas áreas que lhe interessavam. “Eu podia falar sobre topologia com o Elon Lima e sobre sistemas dinâmicos com o Mauricio Peixoto”, contou o americano.
Um dos resultados notáveis que obteve no Rio foi a resolução parcial da conjectura de Poincaré, problema formulado no começo do século XX e considerado dos mais difíceis da topologia. O matemático francês propunha que seria uma esfera todo objeto que obedecesse a determinadas condições. Matemáticos se perguntaram se tais condições valeriam para dimensões mais altas. Smale provou que sim para dimensões superiores a 4.
O outro resultado importante obtido na temporada carioca foi na área de sistemas dinâmicos e nasceu de um erro de raciocínio. Inspirado por Mauricio Peixoto, Smale começou a estudar as condições para a existência de um certo padrão no caos. Mesmo num sistema caótico, sobre o qual falta informação que permita fazer prognósticos sobre seu estado futuro – pense na previsão do tempo para daqui a uma semana –, há réstias de ordem. O americano propôs uma conjectura sobre a questão, mas um colega lhe escreveu uma carta apontando uma falha em seu raciocínio. Ao se debruçar sobre a objeção, chegou a um resultado que foi um divisor de águas no estudo dos sistemas dinâmicos.
O estalo foi a descoberta de uma função matemática indicando que a evolução de um sistema podia se tornar imprevisível dependendo de suas condições iniciais. Uma borboleta bate as asas na Ásia (condição inicial) e provoca imprevisíveis maremotos no Ocidente, na famosa imagem que ressalta a sensibilidade do sistema a alterações sutis no ponto de partida. A descoberta de Smale se tornou uma ferramenta indispensável para o estudo do comportamento caótico (embora o termo “caos” só viesse a ser introduzido na academia quinze anos depois).
Uma foto de Smale da época exibe os mesmos traços que ainda o distinguem: o rosto oblongo, as sobrancelhas arqueadas e o lábio inferior um pouco caído. O matemático se beneficiou da proximidade com o mar. “Eu passava as manhãs naquela praia de areia larga e bonita” – o Leme –, “nadando ou pegando jacaré, dependendo da altura das ondas”, escreveu ele. “Levava também uma caneta e um bloco de papel para fazer matemática.” À tarde, ia para o Impa.
Anos mais tarde, Smale diria que o resultado mais conhecido de sua carreira foi obtido nas praias do Rio em 1960, uma frase que ficou famosa entre seus colegas. Jacob Palis, que fez doutorado com Smale, riu ao evocar a declaração, meio século depois. “Esse é o Steve… Ele estava frequentando o Impa, pô!” Numa entrevista ao próprio Palis em 1990, Smale contou que sua prova da conjectura de Poincaré provavelmente foi desenvolvida também no instituto, mas insistiu que o resultado de sistemas dinâmicos fora feito só no Leme. Mas pouco importa o lugar. “Smale pôs o Rio e o Impa no mapa da matemática mundial”, disse César Camacho, também ex-aluno do americano e atual diretor do instituto.
Smale deixou 676 descendentes acadêmicos. Gerações de pesquisadores brasileiros atacaram problemas trilhando os caminhos abertos por ele. Sua influência é sentida mesmo entre os mais jovens, que nem eram nascidos quando o americano obteve seus resultados mais importantes em dinâmica. “É uma figura mítica”, disse Artur Avila, que não chegou a discutir seus problemas com o mito. Smale, por sua vez, tem notícia dos trabalhos do seu bisneto acadêmico, mas disse não conhecê-los a fundo para avaliar.
Os trabalhos feitos no Rio elevaram o valor de mercado de Smale e seu passe foi disputado por instituições de renome. Ele esnobou um convite de Princeton, onde estava o mais prestigioso departamento de matemática da época, e foi para a Universidade da Califórnia em Berkeley. Dentre os alunos de doutorado que recebeu, havia alguns estudantes vindos do Brasil, que mais tarde ajudariam a consolidar no Impa uma escola forte no estudo dos sistemas dinâmicos. Primeiro, o mineiro Jacob Palis, depois o peruano César Camacho, que fizera mestrado no Impa orientado por Elon Lages Lima. Camacho se lembra do ambiente de ebulição e criatividade criado em torno de Smale, e dele guarda a imagem de um semeador de questões surgidas a partir da sua abordagem inovadora. “Era como se ele estivesse jogando uma série de problemas importantes para uma turma de alunos famintos.”
Smale também chamava a atenção por sua militância política. Durante a graduação, envolveu-se com organizações estudantis comunistas; professor consagrado, ajudou a articular eventos de protesto contra a Guerra do Vietnã. A encrenca maior que arrumou veio com uma entrevista que deu em Moscou durante o congresso de 1966, quando ganhou a Medalha Fields. A coletiva começou com a leitura de uma declaração que condenava não só a presença americana no Vietnã, como também a intervenção de tropas soviéticas na Hungria. A fala desastrosa constrangeu os anfitriões, que trataram de afastar o orador impertinente dos holofotes. Na volta aos Estados Unidos, o governo cancelou parte de seu financiamento.
A trajetória acadêmica de Stephen Smale é marcada por uma capacidade reiterada de se fascinar por objetos de pesquisa totalmente novos. O matemático muda de campo com a facilidade com que um menino deixa um brinquedo de lado para se divertir com outro que lhe parece mais interessante. Foi assim com a topologia, que largou depois de resolver um problema de magnitude maior – trabalho que já bastaria para inscrever seu nome entre os grandes da matemática.
Não foi muito diferente com os sistemas dinâmicos, campo que ele transformou e do qual se afastou gradualmente para se dedicar à matemática econômica. Não seria sua última metamorfose. O pesquisador se aventurou por áreas tão díspares quanto mecânica celeste ou ciência da computação. Mais recentemente, voltou-se para as ciências da vida, investigando fundamentos matemáticos de fenômenos como a resposta imunológica do organismo ou a estrutura tridimensional de proteínas.
Aos 84 anos, Smale continua na ativa, vinculado a Berkeley e à City University de Hong Kong. Numa entrevista telefônica que ele marcou para as cinco da manhã, horário da Califórnia, o pesquisador designou o que tem feito ultimamente de biologia computacional, ou bioinformática. Por que as constantes mudanças de campo? Seria tédio? Smale riu e desconversou. “Sabe como é, o mundo está mudando, a matemática está mudando e eu também.”
Smale explora novos terrenos de forma intuitiva, abrindo caminho sem saber onde vai dar, às vezes de forma meio estabanada. Está sempre atrás de grandes problemas. Na cerimônia de entrega da sua Fields, o francês René Thom disse dele o seguinte: “Se as obras de Smale talvez não possuam a perfeição formal do trabalho definitivo, é porque ele é um pioneiro que corre riscos com coragem e serenidade.”
Desafios de outras esferas da vida do professor eram enfrentados com o mesmo ímpeto que ele aplicava à matemática. Foi assim quando Smale se entusiasmou por barcos nos anos 80, por influência de Charles Pugh, seu colega em Berkeley, dono de um pequeno veleiro. Decidido a navegar até um destino incomum – as ilhas Marquesas, no meio do Pacífico Sul, a 5,5 mil quilômetros de São Francisco –, comprou um veleiro de 13 metros de comprimento, o , e começou a planejar a viagem com dois anos de antecedência. Recrutou dois colegas para a empreitada: Pugh e o mineiro Welington de Melo, seu amigo desde 1972, quando esteve em Berkeley para um pós-doutorado.
A viagem ocorreu no verão de 1987. O trio navegou por 7 mil milhas náuticas, ou 13 mil quilômetros, ao longo de três meses. Enfrentaram vários percalços, incluindo temporal, fim do combustível, motor quebrado, vazamento no casco, pane na bomba d’água e derretimento do estoque de gelo. Cumprido o objetivo estipulado, navegar perdeu a graça e Smale vendeu o .
O interesse mais duradouro de sua vida é a coleção de minerais e pedras preciosas que ele formou com a mulher a partir do fim dos anos 60. Depois que seu pai lhe deu um espécime de presente, o matemático passou a frequentar museus, feiras e salões. Não admitiria o papel de figurante nesse mundo, e em pouco tempo reuniu uma das mais notáveis coleções particulares dos Estados Unidos, premiada num salão importante em 1976.
O acervo se renovava constantemente, à medida que o colecionador vendia e comprava novas pedras. Com a mesma intuição com que enfrentava os problemas matemáticos, ele dava lances que causavam espécie no meio. Foi acusado de pagar preços irreais e inflacionar o mercado, como quando, em 1980, ofereceu 40 mil dólares por uma turmalina (270 mil reais em dinheiro de hoje). As conexões de Smale com o Brasil eram úteis a sua obsessão. Sempre que vinha ao país, o matemático dava um jeito de arranjar viagens a Governador Valadares ou Teófilo Otoni, no interior mineiro, onde negociava diretamente com fornecedores locais. “As turmalinas de Minas estão entre as minhas prediletas”, contou. Smale diz ter cerca de 2 mil pedras, num conjunto avaliado em dezenas de milhões de dólares.
Nos anos 80, seu amor pelas pedras ficou mais refinado quando decidiu fotografar o acervo. Não lhe bastaria um padrão de qualidade amador, e ele comprou câmeras, montou um estúdio em casa e mergulhou de cabeça. Chegou a investir de quarenta a cinquenta horas semanais na tarefa, organizou exposições individuais e lançou um livro de mesa com fotos de sua coleção. Espanto dos espantos, declarou que sua maior ambição era ser reconhecido como um grande fotógrafo. Continua a ser apenas um matemático monumental.