ILUSTRAÇÃO: GONZALO CÁRCAMO_2012
Progresso à moda brasileira
Roberto Schwarz reencontra hoje, na contramão do oba-oba que embala os ponteiros do relógio nacional, o futuro estático que já vislumbrava após 1964 nas criações do tropicalismo
Milton Ohata | Edição 69, Junho 2012
Martinha Versus Lucrécia orbita em torno de 1968, que já passou dos quarenta e caminha para o cinquentenário. À primeira vista, poderia ser lido como um original livro de memórias do crítico Roberto Schwarz. A impressão aumenta quando se percebe que a maior parte dos artistas e intelectuais aos quais o autor dedica sua atenção despontou ou amadureceu na década de 60 – dos músicos Caetano Veloso e Chico Buarque ao poeta Francisco Alvim, passando pelo filósofo Bento Prado Jr. e o arquiteto Sérgio Ferro. Mas tudo muda de figura quando, pelo retrovisor, nos damos conta da extraordinária inventividade de suas trajetórias, avessas ao comodismo que com o passar do tempo costuma impregnar tantos figurões da cultura. Há ainda algo que vai além dos ingredientes pessoais, pois os percursos contados nesse livro também contrastam com a pasmaceira dos ritmos brasileiros, articulando de maneira aguda o período de maior aceleração de nossa história com todas as tensões geopolíticas da Guerra Fria. Entre 1950 e 1970, o Brasil pareceu enterrar quatrocentos anos de agrarismo e escravidão num processo sem precedentes de industrialização urbana e assimilação de suas formas de viver. Foi um tempo de promessas, ousadias e apostas altas, mas também de realinhamentos decepcionantes. Deles, partiram as linhas de força do presente que vivemos, sendo que Schwarz foi um dos primeiros – talvez o primeiro – a mapear o caminho.
A precocidade tomou forma num texto que correu mundo, mas até hoje não foi bem lido, “Cultura e política, 1964-1969”, escrito na França durante o exílio do crítico e depois incluído em O Pai de Família e Outros Estudos (1978). Da experiência contada de modo tão vivo nesse relato – nunca li nada tão bom sobre o período –, Roberto Schwarz armou todo o seu projeto intelectual, em cujo nervo os impasses brasileiros cifram esteticamente os impasses do capitalismo contemporâneo, um iluminando o outro e vice-versa. Assim, a opção da burguesia brasileira no golpe de 1964, que preferiu a tutela de Washington como sócia minoritária do capital internacional em vez de promover uma modernização socialmente integradora, confirmou aos olhos do crítico a desfaçatez do elegante narrador nos romances da maturidade de Machado de Assis.
Na mesma linha, o avanço econômico promovido pela ditadura, combinado à regressão social, questionou na raiz a noção de progresso, dando ao crítico uma caução brasileira ao diagnóstico feito no imediato pós-guerra por T.W. Adorno em A Dialética do Esclarecimento (1947). No que foi ajudado pela clarividência de um companheiro de geração sobre a defasagem entre projeto, capacidade construtiva e canteiro de obras na arquitetura moderna brasileira – os dois primeiros atualizadíssimos com as tendências internacionais de ponta, enquanto no último a regra eram condições de trabalho pré-industriais. A coerência político-intelectual de Sérgio Ferro, além de prisão e tortura, custou-lhe o exercício da profissão, e essa parábola é descrita no livro em “Saudação a Sérgio Ferro” e “Um jovem arquiteto se explica”.
Não à toa, os textos que abrem Martinha Versus Lucrécia falam do pessimismo histórico de Machado e Adorno. O primeiro reaparece num ensaio denso a propósito das razões desencontradas pelas quais sua obra é valorizada no Brasil e no exterior, prefiguradas em uma crônica em que Martinha, uma obscura heroína de Cachoeira, na Bahia, contracena com a Lucrécia da Roma antiga. O segundo, apresentado em linhas tão breves quanto cavadas, possíveis apenas depois de uma assimilação judiciosa de quem não apenas quer compreender, mas sobretudo tirar consequências. E tirar consequências, aqui, passa longe da aplicação de modelos pré-fabricados. Requer mesmo um alto grau de invenção, pois precisa dar conta de particularidades não previstas pela teoria social dos países centrais.
Mas, se o ponto de fuga desse livro é o presente e não o passado, qual a sua atualidade? Ou, lembrando um título do próprio crítico – Que horas são? Para responder, é necessário combinar os fusos de dois relógios, o mundial e o nacional. Neste último, antes de tudo, colocar em perspectiva os vinte anos recentes e lembrar que, a despeito do resultado da estabilização monetária, a fratura social preservada pelos anos de ditadura não foi alterada em substância – dados do IBGE mostram que 65% da força de trabalho no Brasil ainda ganha até dois salários mínimos. Embora o governo Lula tenha tirado 26 milhões de brasileiros da miséria (Conjuntural ou estruturalmente? A pergunta era o desafio da geração de Celso Furtado) e possibilitado a outro tanto um acesso mais diversificado a bens de consumo, o processo não foi politizador, além de convergir com as tendências hegemônicas da economia mundial. Reportagem recente da Folha de S.Paulo mostrava famílias do sertão nordestino ainda vivendo sem água encanada, mas agora com geladeira e tevê de plasma – o que dá um toque de absurdo e qualifica, desqualificando, os avanços econômicos dos últimos anos.
O fuso do relógio internacional complica a equação nacional, já que no capitalismo contemporâneo a Terceira Revolução Industrial – com a incorporação da ciência ao processo produtivo – prescinde de exploração do trabalho e debilita as condições daqueles que ainda otêm, provocando nas últimas décadas o esvaziamento da virtual contratendência política no sistema. A ideia de socialismo ficou sem base social, afora o fato de que a sua experiência histórica produziu, na prática, resultados desastrosos. Adorno já havia notado o entorpecimento dessa força pelo fetichismo da mercadoria, mas o diagnóstico foi feito numa economia de pleno emprego. Como todos sabemos, isso é coisa do passado. Na origem da crise econômica de hoje, está a especulação financeira baseada na expansão desmedida do crédito a massas de consumidores com a vida crescentemente precarizada pelos avanços do capital. A despeito da velocidade frenética no âmbito da circulação de mercadorias, turbinada por peças de marketing de todo tipo e em todos os lugares, a história está congelada, pois não há mais uma força social capaz de superar a “exuberância irracional” do sistema – na expressão de um de seus responsáveis –, cujo movimento é apenas o de valorização e desvalorização de capital, arrastando populações inteiras, como se vê hoje na Europa.
Pelos ponteiros da hora mundial, os ensaios de Roberto Schwarz reencontram, após mais um ciclo de inovação destrutiva do capital (um velho marxista diria que houve um avanço das forças produtivas contradizendo antigas relações de produção), o futuro estático que seu autor já vislumbrava após 1964 nas criações do tropicalismo, em que bossa e palhoça formavam uma figura irresolvida e absurda. Creio que esse discernimento pode ser um antídoto crítico para o oba-oba que nesse momento embala os ponteiros do relógio nacional, até segunda ordem “blindado” contra a crise no coração do sistema. De 1968 para cá, Machado de Assis, para quem o nacional era parte de um problema e não uma solução, tem sido o crivo para Roberto Schwarz toda vez que olha para a cultura brasileira, estabelecendo filiações como a do romance de Chico Buarque (o narrador de Leite Derramado tem muito de Brás Cubas, como mostra o capítulo “Cetim laranja sobre fundo escuro”) e também como fundo negativo de seus momentos positivos, como o modernismo de Mário e Oswald de Andrade. Seguindo a sugestão de Antonio Candido, para o qual a institucionalização tardia das ciências sociais no Brasil poderia ser compensada pelas observações em larga escala das peculiaridades nacionais fixadas em nossa literatura, Schwarz escrutinou pelas lentes de Machado o próprio marxismo uspiano a que sempre esteve ligado. Para o crítico, este empenhou-se muito mais em encontrar uma solução para o país do que em apontar para sua inserção contraditória na periferia capitalista. Nessa linha, as objeções de Schwarz inspiraram tardiamente o esquema interpretativo mais poderoso do Brasil contemporâneo, O Ornitorrinco de Francisco de Oliveira, um bicho-país consolidado pelos governos Collor, FHC e Lula, sob uma nova ordem econômica em que “o subdesenvolvimento deixa de existir, mas não as suas calamidades”, como diz em “Prefácio a Francisco de Oliveira, com perguntas”.
De certo modo, a alegoria do absurdo Brasil tropicalista, analisada por Schwarz no calor da hora, também parecia um ornitorrinco. Há pouco, na Folha de S.Paulo, o jornalista Marcos Augusto Gonçalves falou em enfeitiçamento do crítico (Schwarz) pelo criticado (Caetano). O mesmo jornal usou a expressão “bonde perdido”, já que o longo ensaio sobre Verdade Tropical – ponto alto desse Martinha Versus Lucrécia – aparece quinze anos após o lançamento do livro. Ao comentá-lo em sua coluna de O Globo, o professor e músico (“uspianista”, como ele mesmo gosta de dizer) José Miguel Wisnik disse que Caetano Veloso e Roberto Schwarz são as duas personalidades mais fortes da cultura brasileira nas últimas décadas. Não sei se iria tão longe, mas creio que a questão é mais objetiva.
As criações do tropicalismo davam forma a um impasse nacional que era também um dos momentos-chave da Guerra Fria. Falando nos termos de Tropicália, sua canção-símbolo, a bossa não prevaleceria sobre a palhoça, mas teria que conviver com ela, ao contrário do que gostaria toda a esquerda brasileira. Ora, na mesma época, o marxismo uspiano, a um só tempo antistalinista e anticapitalista, concluía que bossa e palhoça não só conviveriam como a primeira (o moderno) se alimentava da segunda (o atraso). Estava recriado o progresso à moda brasileira. Compartilhando o mesmo diagnóstico, mas tirando dele consequências muito diferentes, a crítica de Schwarz ao tropicalismo corresponde à crítica de Marx à economia política. O próprio Caetano Veloso, pouco antes de se tornar tropicalista, havia afirmado num ensaio de 1965-66 que, “depois da euforia desenvolvimentista (quando todos os mitos do nacionalismo nos habitaram) e das esperanças reformistas (quando chegamos a acreditar que realizaríamos a libertação do Brasil na calma e na paz), vemo-nos acamados numa viela: fala por nós, no mundo, um país que escolheu ser dominado (…)”. “Primeira feira de balanço” é um ensaio de Caetano que defende a música de João Gilberto contra as objeções que lhe fazia o crítico José Ramos Tinhorão, ponta de lança no nacionalismo da esquerda ligada ao PCB, e abre um livro que prefigura Verdade Tropical e só teve uma edição (Alegria, Alegria, da editora Pedra Q Ronca).
Em 1963, havia sido apresentada na USP a tese “Empresário industrial e desenvolvimento econômico”, embrião da futura Teoria da Dependência. Nela, Fernando Henrique Cardoso, de quem Schwarz havia sido aluno, também chocava a esquerda ao concluir que a burguesia paulista havia desistido de uma industrialização socialmente integradora e preferia se associar ao capital internacional – o golpe de 1964 foi a tradução política dessa opção. Músico e sociólogo tinham assente que a abertura à influência americana – ao jazz ou às multinacionais – não barrava o progresso do país, mas encaminhava para um progresso diferente do que imaginava a esquerda.
Politicamente, Caetano e Fernando Henrique trilhariam caminhos paralelos até as eleições presidenciais de 1989, quando o músico apoiou Leonel Brizola na reta final do primeiro turno (pensando certamente em Darcy Ribeiro, que buscava uma síntese entre as ideias de esquerda e as de Gilberto Freyre, na fórmula do “socialismo moreno”) e, no segundo turno, Fernando Henrique subiu hesitante no palanque de Lula. Mas as trajetórias voltam a se cruzar em 1994, quando o Plano Real elege o tucano para presidente. Em Verdade Tropical, Caetano estava antenado com o projeto neoliberal de FHC e aproveitou a onda favorável para um acerto de contas com a esquerda que o vaiara em 1968. Nas quase sessenta páginas que dedica ao livro, contudo, Schwarz se concentra não tanto nos desígnios atuais do autor, mas na trajetória de um “herói-problema” da então nascente indústria cultural brasileira. “Verdade Tropical recapitula a memorável efervescência dos anos 60, em que o tropicalismo figurava com destaque. Bem vistas as coisas, a guerra de atrito com a esquerda não impediu que o movimento fizesse parte do vagalhão estudantil, anticapitalista e internacional que culminou em 1968. Leal ao valor estético de sua rebeldia naquele período, Caetano o valoriza ao máximo. Por outro lado, comprometido com a vitória da nova situação, para a qual o capitalismo é inquestionável, o memorialista compartilha os pontos de vista e o discurso dos vencedores da Guerra Fria.”
Já se disse muitas vezes com acerto que Caetano é mestre em quebrar sistematicamente posições cristalizadas. Schwarz apenas desnaturaliza a metáfora do cristal para revelar que esse movimento incessante é social, nada menos que a formalização da lógica da mercadoria (no capitalismo, “tudo que é sólido desmancha no ar”, como disse Marx) combinada a traços do patriarcalismo brasileiro. “O sentimento muito vivo dos conflitos, que confere ao livro a envergadura excepcional, coexiste com o desejo acrítico de conciliação, que empurra para o conformismo e para o kitsch. Entretanto, como num romance realista, o acerto das grandes linhas recupera os maus passos do narrador e os transforma em elementos representativos, aumentando a complexidade da constelação.” Aquilo que para o artista é solução, para o crítico é problema. Como em outros ensaios de Roberto Schwarz, a primazia da análise vai para a forma estética, ou para matérias sociais com potência para isso, e nelas importam menos as intenções confessas do autor que a descrição de seu desempenho na matéria narrada, fato que pode não estar evidente a ninguém e que cabe ao crítico revelar. O resultado dá a ver coisas inesperadas no ponto de partida.
Penso que a análise de Verdade Tropical é forte justamente por isso. E Roberto Schwarz percebeu de imediato que não há na cultura brasileira um livro que enfeixe tantas questões sobre a década de 60 e suas consequências. Mas é claro que sua análise em complexidade se levasse em consideração a atuação de Caetano no ambiente em que se fez como artista. Como ninguém, e declarando-se não propriamente um músico, ele tensionou a indústria do disco até limites inimagináveis ao mesmo tempo que promovia a MPB como veículo de afirmação do país no mundo. “É sob esse prisma que consegue contrabandear registros múltiplos e dissonantes para o interior do resguardado campo da MPB. O elenco dessas profanações é grande, e renderia um livro inteiro dedicado ao assunto”, como disse Guilherme Wisnik em Caetano Veloso, da série Folha Explica, a melhor descrição da trajetória do músico, incluindo a fase de sua obra em que a tônica é o esgotamento das energias utópicas de 1968 e o próprio fim da canção. Basta pensar na longa ruminação melancólica sobre a derrota de 1968 em Transa (1972), na radicalidade de Araçá Azul (1973), no par ímpar Joia e Qualquer Coisa (1975) e nos discos mais recentes Cê (2006), Zii e zie (2009) e Recanto (2011 com Gal Costa), onde parece se atirar sem medo com as armas da MPB num campo de forças que já não é mais a MPB. Aqui, uma análise da canção Sexo e Dinheiro revelaria muito das convergências e diferenças entre um ponto-chave da estética de Caetano e, por exemplo, outro ponto-chave da obra de um frankfurtiano como Herbert Marcuse.
Pode parecer estranho, mas, na cultura brasileira, essa omnivoracidade, essa variedade espantosa de registros e tons na arte de Caetano só encontram um termo de comparação em Drummond. Com a diferença radical de que na trajetória do poeta de A Rosa do Povo a “subjetividade tirânica” não tem parte com a autopromoção, “pois cada grão de egocentrismo é comprado pelo poeta com uma taxa de remorso e incerteza que o leva a querer escapar ao eu, sentir e conhecer o outro, situar-se no mundo, a fim de aplacar as vertigens interiores”, como dela disse o crítico Antonio Candido, no ensaio “Inquietudes na poesia de Drummond”, no volume Vários Escritos. Assim também para a lógica da mercadoria e os mitos do nacionalismo, que passam por um filtro crítico que é a própria persona artística. Pois é Drummond a presença oculta no ensaio que vem logo a seguir de “Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo”. Na poesia de Francisco Alvim, os procedimentos artísticos de Oswald, também usados pelo tropicalismo, passam pela leitura crítica que Drummond fez do modernismo paulista, com sua fé em um Brasil recriado pela cultura popular. Roberto Schwarz mostra que aqui a fórmula pau-brasil funciona com o sinal trocado e serve ao “encontro do problema que estava escondido no pitoresco” (v. “Um minimalismo enorme”).
Para terminar, num livro em que é grande o peso da derrota de uma possibilidade que mobilizou gerações e gerações, vale atentar para os perfis – minoritários e fora de esquadro – de alguns amigos que têm um lugar especial na trajetória do crítico e que ele conheceu na então pequena, provinciana e ambiciosa faculdade de filosofia da rua Maria Antônia. Nas aulas e escritos de Gilda de Mello e Souza, Bento Prado Jr. e Michael Löwy, valorizam-se em combinações diversas a força da imaginação artística e o desejo de uma sociedade melhor, sem que um anule o outro. Como queria Walter Benjamin a propósito do surrealismo – “mobilizar para a revolução as energias da embriaguez” –, programa que acendeu também a imaginação política da geração de 1968. Depois dela, a história avançou em outra direção, mas a praia continua sob a calçada.