ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Protógenes fala à universidade
A propósito de Aristóteles, Platão, Hegel, São Francisco e Daniel Dantas
Roberto Kaz | Edição 34, Julho 2009
“Ao povo brasileiro e aos internautas” – é assim, invariavelmente, que o delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz começa os textos em seu blog. No dia em que fez 50 anos, não poderia ser diferente. “Ao povo brasileiro e aos internautas”, anunciou-se ele, pingando dois-pontos: “Hoje é dia 20 de maio, data sublime da minha existência concedida por Deus criador do céu, da terra e das forças da natureza.” Depois de agradecer à família, o delegado demonstrou orgulho por completar meio século sob “os ensinamentos sagrados do Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Vedas, Gandhi, Paramahansa Yogananda, São Francisco de Assis e o inesquecível Prof. Agenor Miranda Rocha.”
Duas semanas depois, Protógenes julgaria que o povo brasileiro e os internautas em geral deviam ser expostos a temas mais ásperos. Em tom duro, ele desclassificou as revistas Veja e IstoÉ – “São verdadeiras saqueadoras da consciência popular quanto aos textos apresentados” – e as acusou de fabricar contra ele escândalos que “mais se assemelham às manipulações que eram publicadas pela imprensa nazista”. Confiante, arrematou: “A verdade prevalecerá.”
Protógenes foi convidado a falar no dia 4 de junho, às 20 horas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nos dois meses anteriores, visitara mais de dez universidades. Tema na UFRJ: “Sigilo Policial x Liberdade de Imprensa: Formas de Interação”. De terno, gravata e uma fita vermelha do Bonfim no braço direito, diante de cerca de 100 alunos de jornalismo, o delegado, ora afastado da Polícia Federal por quebra de sigilo funcional e vazamento de informação, começou: “Temos dois momentos no Brasil. Antes e depois da Operação Satiagraha, no dia 8 de julho.”
Protógenes tem o hábito de se referir a si mesmo na terceira pessoa. O sestro não tardou a aparecer naquela quarta-feira. Bastou que o delegado formulasse a primeira pergunta retórica da noite: “Protógenes, qual a diferença entre público e privado?” Resposta: “Essa discussão começa em Aristóteles, Platão, passa por Hegel e chega ao Estado moderno.” Mergulhando nas profundezas da nossa história, ele identificou nas administrações ultramarinas a origem da nossa corrupção; os colonizadores portugueses não respeitavam as fronteiras entre o público e o privado: “O primeiro governador de Pernambuco, Francisco Freire, meteu a mão no dinheiro da Coroa. Sabe o que aconteceu com ele quando voltou para Portugal?” O palestrante respondeu: “Foi preso e teve os bens confiscados.” Fez uma pausa: “Hoje, o que falta?” E sentenciou: “Punição.” (Francisco de Brito Freire foi o terceiro governador de Pernambuco. Foi encarcerado na Torre de Belém porque se negou a levar para o desterro o rei Afonso VI, ou seja, por lealdade. Mais tarde, deixou a cadeia e voltou à Marinha.)
Protógenes falou em seguida de sua história pessoal: “Minha mãe morreu na emergência de um hospital em São Gonçalo. Estava no chão, porque não tinha direito ao leito. Estudei em escola pública, mas hoje não se vê educação pública de qualidade. Sinto falta de um projeto como o do professor Darcy Ribeiro.” Contou que iniciara a vida profissional advogando para pobres, um modo de “ver como as coisas funcionavam para os menos favorecidos.” Mostrou-se decepcionado com a corporação da qual ainda faz parte: “Dez anos atrás, fui ao banco e vi um cartaz: ‘Concurso da Polícia Federal’. Pensei: ‘Esse é o canal. Vou caçar corrupto. Botar gente na cadeia.’ E agora, a própria polícia resolve expor o Protógenes e me queimar.”
Uma hora depois de iniciar a palestra, o delegado chegou a Daniel Dantas: “Imaginem as senhoras e os senhores que estamos diante de um guarda-chuva. O banqueiro condenado” – é como ele se refere a Dantas – “é o cabo do guarda-chuva, irrigado por dinheiro dos fundos de pensão. As hastes são as privatizações da saúde, da comunicação, da Vale, da Petrobras. Até mesmo a transposição do Rio São Francisco faz parte disso. E cadê o dinheiro dessas privatizações? Cadê o banqueiro condenado que tinha quase 16 bilhões de dólares em aplicações?” Diante do silêncio da platéia, instigou: “Vocês sabem quem foi o autor desses acordos?” Resposta: “Aquele ministro, o Mangabeira Unger, de assuntos futuros e intergalácticos.”
Aplausos entusiásticos. Animado, Protógenes sacou da pasta uma Veja: “Exemplar desta semana. A pauta é: desqualificar o delegado Protógenes.” Segurando-a com a ponta dos dedos, perguntou: “Quantos aqui são assinantes desta revista?” Quatro mãos se ergueram. “Só isso? É uma vitória de vocês.” Mostrando um exemplar da IstoÉ: “E quem assina esta? Ninguém? Que bom, porque o dono desta revista é o banqueiro condenado Daniel Dantas.”
Não houve referência à Época. Em entrevista concedida recentemente à revista, o delegado declarou haver “uma pressão pública” para que se candidate a algum cargo eletivo.