CRÉDITOS: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Psicopousada
O sobrado no Rio que emprega pacientes psiquiátricos
Camille Lichotti | Edição 187, Abril 2022
Vestida apenas com um biquíni, a fotógrafa Fernanda Tuxi estava jantando na cozinha quando ouviu ruídos no corredor da Casa Tuxi, uma pousada na Rua Bambina, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Esticou o pescoço pelo vão da porta e viu três bombeiros andando em fila indiana pelo corredor. Tuxi levou um susto. “O que vocês estão fazendo? Aqui é um hotel de inclusão. Tá cheio de paciente psiquiátrico, gente”, ela disse, com os olhos arregalados.
Quando soube que os bombeiros estavam ali para se hospedar, e não para interná-la, Tuxi não se conteve de alegria. Eles tinham vindo do Rio Grande do Norte para receber uma medalha por seu trabalho no resgate de vítimas da tragédia das chuvas em Petrópolis, em fevereiro. Enquanto gritava que a chegada de novos hóspedes era maravilhoso, Tuxi correu até o freezer e apanhou cervejas para eles, porque o calor estava insuportável naquela noite de março passado.
A Casa Tuxi fica em um sobrado do início do século XX e emprega pessoas neurodivergentes ou que tenham algum tipo de patologia psiquiátrica, exceto esquizofrenia. O responsável pela manutenção do prédio, Sidney, está no espectro autista. Julian, que cuida do bar, é bipolar. Caroline, recepcionista, é borderline. Cássio, que fica na recepção à noite, tem transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). O responsável pela piscina e o jardim, apelidado Baiano, não tem diagnóstico fechado, mas conta-se que ele viajou da Bahia ao Rio a pé. “Não pode ser normal, né? Por isso eu o contratei”, brinca Tuxi.
Ela tem 40 anos e é também paciente psiquiátrica, com dois diagnósticos combinados: transtorno de personalidade borderline e transtorno afetivo bipolar. Uma pessoa bipolar alterna fases maníacas com depressivas. Já o paciente borderline vai de um extremo ao outro em um estalar de dedos. “É como se fosse um liquidificador de emoções que não para nunca”, ela define.
Órfã de pai aos 16 anos e vivendo longe da mãe, Tuxi teve que aprender a se virar. A carreira profissional de atriz e modelo foi boicotada por sucessivos relacionamentos tóxicos e abusivos – e ela tentou se suicidar. Em 2003, buscou ajuda num hospital psiquiátrico e a internaram à força. Foi a primeira de uma série de internações. Nos momentos de crise mais severa, bombeiros apareciam para levá-la ao hospital. Os diagnósticos acabaram se tornando uma espécie de mancha em seu currículo. Tuxi foi atrás de empregos fixos como fotógrafa e atendente de loja, mas nunca teve sucesso. “Quando eu dizia que era paciente e tomava remédio, me desclassificavam na mesma hora.” Tornou-se produtora de eventos.
Em 2014, sua avó, Maria Luisa, que tinha borderline e um diagnóstico de esquizofrenia, se suicidou. “Ela era rejeitada, desmoralizada, incompreendida. Ninguém dava emprego para ela. Acho que isso também fez ela querer partir”, diz Tuxi. A morte da avó a empurrou para o fundo do poço – e de volta ao hospital psiquiátrico. Lá, teve uma revelação: decidiu que sua missão na vida era fazer a diferença.
No fim de 2014, Tuxi e duas amigas alugaram o sobrado da Rua Bambina. No quintal foram construídos um lounge com piscina, um restaurante e um anexo com quartos. Durante a obra, começaram os atritos entre as sócias. Tuxi queria contratar pelo menos um paciente psiquiátrico, mas as amigas torceram o nariz. “Uma delas me disse que, de maluca, já bastava eu.” A sociedade foi desfeita, e ela inaugurou sozinha a pousada em 2015. Aos poucos, contratou pacientes que conhecera no Centro de Atenção Psicossocial Franco Basaglia. “Era um convite de trabalho, mas também de recomeço. Todos lá achavam que a vida tinha acabado”, recorda.
A Lei da Reforma Psiquiátrica completa 21 anos em abril de 2022. O texto remodelou o tratamento oferecido a pacientes no Brasil e garantiu direitos a pessoas com transtornos mentais. Na década de 1990, Centros de Atenção Psicossocial (Caps) começaram a se multiplicar pelo país como alternativa aos hospícios. A ideia é incentivar a autonomia e independência dos pacientes. Apesar dos avanços, ainda há um longo caminho, em especial no que se refere à inclusão social pelo trabalho e o acesso à renda. O trabalho de Tuxi, embora de formiguinha, ajuda a preencher o vácuo deixado pelo poder público.
Quando ela abriu a pousada, pouca gente a apoiou. Sua própria mãe afirmou que a filha estava querendo transformar o local num manicômio. “Estamos resistindo até hoje”, diz, orgulhosa. Durante a pandemia, ela fez uma vaquinha online de 90 mil reais para ajudar nas contas da pousada. Conseguiu 600 reais. “Se fosse pelo dinheiro, já teria fechado. Eu não tiro praticamente nada daqui, só pago as contas e ainda devo meio milhão de reais”, conta Tuxi, que mora em um dos quartos do hotel. “O que me move é cumprir o que jurei para minha avó quando carreguei o caixão dela: que eu ia fazer a diferença por nós.”
Na pousada, os funcionários formam uma espécie de rede de proteção. Quando surtam, também surtam juntos. É comum, por exemplo, ouvir gritos deles durante o expediente. “Eu sei que às vezes sou uma pessoa verbalmente agressiva”, diz Tuxi, enquanto fuma um cigarro à beira da piscina. “Mas passa. Em cinco ou dez minutos passa.” Ela garante que os eventuais surtos não interferem no relacionamento com os visitantes e hóspedes. Na internet, alguns reclamam do comportamento intempestivo dos funcionários, mas outros fazem comentários elogiosos, ressaltando o clima acolhedor do lugar.
Todos os empregados precisam estar com os medicamentos e a terapia em dia, e psicólogos do Caps visitam a pousada para acompanhar o tratamento deles. “Agora eu vou ao psiquiatra”, afirma Cássio, o recepcionista com TDAH, mantendo o olhar fixo no horizonte para se concentrar nas palavras. “Quero começar a tomar Ritalina. Não a Rita Lee. Se a Ritalina ajudar só um pouquinho do que me ajuda a Rita Lee, já vou ficar muito feliz.”
Cássio, de 32 anos, tem dificuldade para cumprir os horários e às vezes se atrapalha com os números dos quartos. Mas isso não é um problema, pois a pousada funciona em outra frequência. Até a decoração tem algo de excêntrico. O grande armário de madeira na recepção exibe um pandeiro, sombreros mexicanos e um espelho. Uma das paredes é ornamentada com uma cadeira sem assento e molduras sem quadros. Tudo parece estar fora do lugar, como numa pintura surrealista. Na piscina, um aviso orienta o hóspede: “Mergulhe no seu interior.”