Nos livros eróticos, enquanto os bilionários e CEOs dominam os ambientes, seguros de si, as heroínas são sempre meio atrapalhadas; apesar disso, elas têm firmeza moral e jeito acolhedor CREDITO: GERMANA VIANA_2021
Putaria com final feliz
A literatura erótica feita por mulheres se expande no Brasil
Bruna Maia | Edição 174, Março 2021
Existe um mundo repleto de bilionários poderosos, controladores, charmosos e com o pau sempre bem duro. Eles sabem fazer sexo oral como ninguém e gostam de manter mocinhas ingênuas e um pouco desengonçadas gravitando em torno de seus membros. Em dado momento da vida de um desses intrépidos comedores, porém, vai surgir a subalterna perfeita para tirá-lo do prumo.
No começo, ela vai resistir aos avanços. Acabará cedendo após um encontro arrebatador, e os dois terão uma noite de tirar o fôlego, com arquejos e gozos intensos. Entre idas e vindas e transas enlouquecedoras, chegará então a vez de o ricaço voraz se curvar aos encantos da mulher, que vez ou outra se faz de durona, mas é doce e acolhedora. Ele dizia não querer envolvimento e estar imune às armadilhas do amor romântico, entretanto acabará preso à teia de cuidados construída por ela ao longo das trezentas páginas do livro – às vezes bem mais.
Nos volumes das coleções Sabrina e Julia, que mocinhas compravam em bancas de revistas e trocavam com as amigas entre os anos 1970 e 1990, sempre havia uma ou outra cena mais quente. A descrição de façanhas sexuais mais audaciosas, contudo, ficava relegada a livros que circulavam meio clandestinamente entre as mulheres. As narrativas desbragadamente impudicas, acrescidas de proezas sadomasoquistas e outras práticas menos convencionais, só deixaram o fundo da internet e das gavetas depois do megassucesso da trilogia da britânica Erika Leonard James, Cinquenta Tons de Cinza, que é também o nome do primeiro romance, lançado em 2011 (e que ela assina como E. L. James). Virou até moda entre as moças acompanhar as aventuras sexuais da universitária Anastasia Steele com o magnata Christian Grey, que introduz a protagonista com zelo e paciência no espantoso universo do BDSM – sigla que contempla práticas fetichistas como bondage (ou amarração), dominação e sadomasoquismo.
Depois disso, a literatura erótica ganhou a luz do dia, lida sem um pingo de vergonha pelas mulheres – e escrita por elas com menos vergonha ainda. No Brasil, como em muitos países, apareceram dezenas de autoras para explorar o veio editorial promissor, com uma série de livros sobre os encontros trepidantes de mocinhas meio sonsas com supermilionários perversos. E não apenas com eles. Agora há também os CEOs, presidentes ou diretores executivos de empresas, esses personagens que na vida real parecem ter mais dinheiro que disponibilidade emocional e sexual, mas nos livros, após destilarem sua apatia e indiferença, revelam-se gulosos sedutores.
A ficção produz milagres. Durante dez anos, atuei como repórter de economia e negócios numa empresa especializada na cobertura jornalística de fusões e aquisições. Entrevistei mais de quinhentos CEOs de todo tipo. Se tive vontade de transar com três deles, foi muito. Explico. Eles tinham poder, mas não exalavam sedução. Na maioria das vezes, pareciam esgotados pelo excesso de trabalho ou carregavam aquele ar empertigado de quem herdou a empresa dos pais (e não trabalhavam tanto assim, portanto). Não raro, o CEO médio é precocemente envelhecido e tem mau hálito, porque se afunda no café, no álcool e no cigarro, os estimulantes que o ajudam a lidar com as pressões. Quando eu olhava para algum desses homens desgastados pelo cansaço ou pela obsessão em se manter no poder, logo pensava: “Esse não consegue manter a ereção por mais de trinta segundos, a não ser que recorra à pilulazinha azul.”
Daí minha surpresa ao descobrir como eles faziam sucesso nos romances safados! Igual aos multimilionários, os CEOs romanescos estão sempre seduzindo subalternas e tomando o cuidado para que elas não se apaixonem demais. Quase sempre são também inclinados a práticas sadomasoquistas, dominam a arte de dar palmadas e têm um calabouço secreto, cheio de chicotes, cordas e plugs anais. A maioria é formada por consumados cafajestes, em geral solteiros. Mas há os que estão presos a um relacionamento morno ou perderam o grande amor em uma tragédia. Apesar de terem um quê de traumatizados ou degenerados, todos eles ostentam algo ainda mais valioso que sua fortuna: um membro grande e potente, que conseguem manter ereto por páginas e páginas seguidas.
Quem quiser ter uma ideia do tamanho desse filão, basta digitar “virgem” e a sigla “CEO” no sistema de busca da Amazon. Aparecem vários livros, como O CEO e a Virgem, Uma Virgem Resgatada pelo CEO, A Virgem Protegida do CEO, A Virgem do CEO Grego, A Virgem Submissa e o CEO Dominador, Uma Virgem para o CEO e O CEO Viúvo e a Babá Virgem… Todos foram lançados em 2020. Os dois últimos são da mineira Jéssica Macedo, 25 anos. Ela começou a escrever histórias aos 9 anos e aos 14 publicou o primeiro livro, Vale das Sombras, sobre a filha de um vampiro. Hoje tem no currículo mais de sessenta romances (as escritoras de livros eróticos costumam ser prolíficas). Vive com o marido e três gatos em Belo Horizonte, onde comanda o Grupo Editorial Portal, criado por ela em 2017 para lançar romances eróticos e sentimentais.
O CEO Viúvo e a Babá Virgem conta a vida de Julia, uma moça brasileira que vai fazer intercâmbio na Inglaterra e se emprega como babá na casa do viúvo Bernard, diretor-executivo da fictícia locadora Alliance Cars. No início, os dois se aproximam como se pisassem em ovos – ela por inexperiência; ele por estar de luto. Depois de percorrermos pouco mais da metade do livro, finalmente eles protagonizam a primeira cena safada – e Julia deixa de ser virgem, passando a ser apenas a babá:
– É a primeira vez que transo com uma virgem. Prometo ir bem devagar, mas você não precisa fazer isso, não precisa se entregar para mim.
– Mas eu quero. – Escorreguei meus calcanhares pelas suas coxas até voltar a abraçar sua cintura com as pernas.
Ele voltou a me beijar, dessa vez com mais carinho e mais paciência. Senti a presença de sua ereção de novo. Dessa vez, seu pênis forçou passagem.
Macedo diz que seus livros são para adultos, pois falam da rotina de pessoas adultas. “Sexo faz parte dessa rotina, mas não é tudo e não é só o que as leitoras querem ler. Elas querem romance e final feliz”, comenta. Indagada sobre a razão do título sem rodeios, ela responde da mesma forma: “É mais chamativo assim. Com ‘virgem’ e ‘CEO’ no título, o livro vende mais.” O CEO Viúvo e a Babá Virgem, lançado apenas no formato Kindle, acumulava até início de fevereiro 4,8 milhões de leituras, como se diz no jargão da autopublicação para designar o número de páginas lidas.
Ainda mais ousada é a trilogia Função CEO, da escritora baiana Tatiana Amaral, 41 anos, composta pelos livros A Descoberta do Prazer (2013), A Descoberta do Amor (2014) e A Descoberta da Verdade (2015), lançados pela Editora Pandorga. A história do envolvimento da secretária Melissa Simon com Robert Carter, CEO da C&H Medical Systems, se passa em Chicago, onde Amaral nunca esteve – as autoras brasileiras se lançaram no gênero erótico contando histórias ambientadas no exterior; com o tempo, foram “migrando” para o país. Os personagens de Função CEO se beijam na página 115 do primeiro volume, mas as preliminares demoram. A boca de Robert alcança o mamilo intumescido de Melissa na página 118, mas será preciso esperar a página seguinte para os dedos dele finalmente escorregarem até aquela “região íntima e sensível”. Os pensamentos sensuais de Melissa então transbordam:
Deixei a insanidade, que beirava a minha mente, me dominar, permitindo-me fazer tudo o que meu corpo pedia, ou que o corpo dele exigia de mim. Não demorou muito e eu estava na mesma expectativa anterior, só que, dessa vez, ele estava dentro em mim. Roçando as minhas paredes e não deixando nenhum espaço em meu ventre. Quando me dei conta, estava entregue a um novo orgasmo, ainda mais intenso e glorioso que o primeiro.
Se as mãos do CEO avançaram lentamente, o orgasmo explosivo da secretária veio na velocidade da luz. O que é de dar inveja a boa parte das mulheres. (Em 2016, uma pesquisa do Programa de Estudos em Sexualidade, do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, entrevistou 3 mil mulheres entre 18 e 70 anos e descobriu que 55,6% delas tinham dificuldade para chegar ao orgasmo e quase metade não atingia nunca.)
A editora Paula Drummond – que trabalhava no selo Suma de Letras da editora Objetiva quando explodiu o fenômeno Cinquenta Tons de Cinza – conta que ficou tão intrigada com o sucesso desse livro e da literatura erótica produzida por mulheres que resolveu analisar o assunto em seu trabalho de conclusão do curso de comunicação social. “O fenômeno tem a ver com libertação sexual feminina, com mulheres escrevendo, protagonizando e lendo algo que antes era dominado por homens. Mas é uma libertação da mulher focada na submissão a um homem poderoso, em geral um CEO”, diz ela, que atualmente trabalha na editora Rocco. “Já vi romance até com CEO de academia de jiu-jítsu.” Para Drummond, os livros revertem a baixa autoestima de muitas leitoras e projetam nelas o sonho de um dia conquistar um homenzarrão. “As palavras usadas pelas personagens para se definir são coisas como ‘eu não me encaixo’, ‘eu sou sem graça’, mas, mesmo assim, elas conseguem fazer com que um homem bonito, sedutor, rico e gostoso se interesse por elas e as ame. É a retomada da autoestima feminina, mas centrada no homem.”
As protagonistas dos livros são sempre meio atrapalhadas e vacilantes, ao passo que os bilionários ou os CEOs dominam os ambientes, seguros de si. Em geral, elas são duas décadas mais jovens e ocupam uma posição inferior na hierarquia da empresa, trabalhando como secretária ou estagiária. É comum que sejam virgens ou inexperientes. Apesar de parecerem um tanto lerdas, são dotadas de muita firmeza moral e têm um jeito acolhedor. Aos poucos, arma-se a intriga, ou a guerra: o CEO vai minando as defesas da moça, enquanto ela derruba as barreiras do homem refratário ao envolvimento profundo. “As mulheres buscam na ficção o que não têm em casa: um bilionário gatão que se apaixona por uma jovem sem dinheiro e de aparência ordinária, um homem que, além de bonito, sabe fazer sexo oral”, diz a advogada Renata Costa, 40 anos, de Santos (SP), que lê por prazer no mínimo setenta romances por ano, especialmente os mais lascivos, e também escreve ficção.
“Eu sei, eu sei, você não aguenta mais homem branco vestindo terno na capa de um romance em que o nome ‘CEO’ está em letras garrafais. Confesso que também não. Por isso te digo que essa história não é diferente de nada do que já tenha lido. Aqui temos aquele homem poderoso, controlador e meio escroto, que antes dos 30 anos já é dono de dezenas de empresas e nunca na vida precisou lavar um banheiro. Além de tudo ele parece ser adorado pelos deuses, porque é lindo num nível inacreditável e ainda é bom de cama.”
É assim que a pernambucana Mila Wander, 32 anos, pedagoga e autora de 22 livros (sozinha ou em parceria), anuncia seu romance Ninguém Aguenta Mais CEO, lançado em outubro passado e que foi bem recebido pelo público, com 5 milhões de páginas lidas no Kindle Unlimited. Ao contrário da maioria das protagonistas de livros eróticos, a deste livro, Bruna, não é uma moça magra que ainda não descobriu seus encantos. Ela é gorda e tem plena noção de sua voluptuosidade e seu capital erótico. Também costuma fazer sexo casual e lança frases como “o maior erro do jovem contemporâneo é dormir com o ficante”. Além disso, não está nem aí para a fama e o poder de Thomas Orsini, presidente da empresa onde trabalha – o que não a impede, claro, de transar bastante com ele, ajudá-lo a superar seus traumas edípicos e, ao final, vestida de noiva, levá-lo ao altar.
Ao longo do romance, Wander evoca alguns clichês da ficção erótica e os desconstrói, sem deixar o jogo de poder e a putaria de lado. Em um dos capítulos, intitulado Ninguém Aguenta Mais Passeios Inusitados, Bruna aceita sair com Thomas, e para encontrá-lo num refinado hotel no interior precisa tomar um helicóptero. Ela morre de medo de voar, mas não desiste da viagem. É recebida pelo CEO com um afrodisíaco banquete japonês, durante o qual ela se recobra do susto do voo não suspirando como uma medrosinha, mas sorvendo com avidez goles e mais goles de uísque. No capítulo Ninguém Aguenta Mais Sexo Irreal acontece a aguardada transa, mas o orgasmo de Bruna não chega num passe de mágica. Thomas precisa percorrer com tenacidade todas as protuberâncias e cavidades da gordinha, acrescentando alguns tapas:
Em seguida, tomou a liberdade de vasculhar o meu centro, atiçando as duas aberturas lentamente, fazendo um passeio prazeroso, quente e intenso. Seus dedos resvalaram em minha pele sensível, quase como se não fosse intencional. Eu me limitei a gemer e ofegar sempre que o tesão chegava a um pico insuportável.
– Que boceta linda – ele murmurou, enquanto eu me segurava para não me contorcer diante de seu toque nos pequenos e grandes lábios. – E que cuzinho maravilhoso… Deve ser bem apertadinho – completou, daquela vez formando um rastro circular ao redor do meu ânus.
Um segundo depois fui surpreendida com mais um tapa e mal tive tempo de agir, porque de repente a sua cara estava afundada em meu rabo, explorando minha intimidade sem qualquer receio. Eu me derreti sobre aquela mesa, tomada pelas sensações maravilhosas que a sua boca provocava.
Mila Wander trabalhava como pedagoga em escolas municipais, mas, com o bom resultado comercial de seus livros O Canalha do 610 e O Safado do 105, decidiu viver apenas da escrita – o primeiro vendeu cerca de 4 mil exemplares, e o segundo, 40 mil. Ela diz que, apesar de Ninguém Aguenta Mais CEO estar vendendo bem, a protagonista é com frequência criticada pelas leitoras por ser dura na queda e ter a língua afiada. “Ficam sempre do lado dele, a empatia com homem é sempre maior. Se a personagem é muito feminista, ela é odiada. Em algum momento, ela sempre tem que ceder”, lamenta. Jéssica Macedo relata o mesmo fenômeno: as leitoras são mais severas com mocinhas menos ingênuas, como é o caso da protagonista do seu livro Sedução por Vingança, lançado no ano passado. “É um risco que eu corro: colocar personagens femininas que sacaneiam os homens em geral faz menos sucesso, tem menos leitura e mais crítica negativa.”
A editora Paula Drummond ressalta outro aspecto que incomoda as leitoras: “Quando o pilar heteronormativo é quebrado, elas não costumam receber muito bem.” Relacionamentos homossexuais ou bissexuais que subvertem a monogamia, por exemplo, não fazem tanto sucesso. Exceção é o romance Sem Perdão (2019), no qual a baiana Tatiana Amaral criou quatro narradores, sendo que um deles conta a história de um casal gay. A escritora diz que a subtrama acabou ganhando mais força que a do casal heterossexual que protagoniza o livro. “E não senti rejeição por isso. As pessoas torciam muito pelo casal gay. Mas é importante dizer que eu não descrevi cenas de sexo gay, apenas cenas de amor e afeto.”
Na maioria dos livros eróticos, sexo mesmo só entre homem e mulher – e toda a putaria acaba levando ao casamento. “A construção dos personagens nesses romances é uma moral da reparação. Parece que é ótimo o cara ser degenerado e transar bem, mas no final das contas é o amor que vai curar esse homem. Tem sempre essa expectativa de príncipe encantado com cenas de sexo no meio”, diz a escritora maranhense Seane Melo, 31 anos, autora de Digo Te Amo Pra Todos Que Me Fodem Bem (2019), que foge um pouco do estilo hot clássico. O livro conta a história dos relacionamentos casuais da protagonista com três homens diferentes, já que ela tem pouco interesse em um final feliz com casamento e filhos, preferindo viver e transar livremente, como filosofa neste trecho:
Na verdade, até hoje não sei se senti ou ouvi primeiro. Aquele barulho agudo de mão espalmando carne macia. O barulho e a surpresa, que saiu na forma de gemido.
Também não sei exatamente qual foi a sensação. Ou pior, se senti, se doeu, se ardeu. Não teve nada a ver com isso. Foi tipo um puxão, sabe, um solavanco. Como se Ele tivesse interrompido meu movimento e me puxado de volta. Nem sabia que ia longe, mas a palmada, a palma dele, o pá agudo, o vermelho que iria ficar, me trouxeram de volta abruptamente. De volta de onde?
Não sei, mas, por alguns segundos, fui só carne, só contato, ali, eu existia e pulsava naquele pequeno ponto onde o vermelho começava a se desenhar na minha bunda. Não sei se dá pra entender, parece que tô filosofando, mas, se fosse filosofar mesmo, poderia simplesmente dizer o que constatei naquele momento: meu rabo lateja, logo, existo.
Grande parte das leitoras não quer ver os personagens atravessarem toda aquela aventura tórrida sem ficarem juntos no fim do livro. Mas há escritoras que buscam transmitir outra mensagem. “Eu sempre tento passar nos meus romances que, apesar do final feliz, mulher não é centro de reabilitação de homem”, diz Lucy Vargas, 31 anos, que em 2014 lançou seu primeiro romance, Quando Eu Te Encontrar, em versão para Kindle, e desde então já publicou dezoito livros. Formada em jornalismo, Vargas mora em Niterói (RJ), assim como Nana Pauvolih, 46 anos, ex-professora de história da rede estadual que se tornou uma das autoras brasileiras mais admiradas no gênero erótico.
Pauvolih começou a escrever aos 11 anos, mas publicou um texto pela primeira vez em 2011, na plataforma de autopublicação Bookess. “Postei o primeiro capítulo à noite e no dia seguinte seis pessoas já acompanhavam. Quando estava terminando de escrever o livro, já tinha 2 mil leitores”, conta. Faz sucesso sua heroína Eva, dos livros Ferida (2018) e Duplamente Ferida (2019), uma prova de que, vez ou outra, as mocinhas dos romances eróticos não são tão sonsas assim e têm objetivos um pouco mais complexos do que conquistar um homem poderoso.
A mãe de Eva teve que se prostituir para sustentar os filhos depois de ter suas terras roubadas pela poderosa família Falcão, no interior de Minas Gerais. Para levar adiante um plano de vingança, ela assegura que Eva permaneça virgem e simula um assalto em que a filha salva a vida do charmoso Theo Falcão, um solteiro convicto de 42 anos. A mocinha de 19 anos – com documentos falsos que lhe atribuem quatro anos a mais – e o herdeiro do clã se envolvem num romance apimentado com jogos de dominação, travados no calabouço bem aparelhado onde o fazendeiro costuma levar suas submissas à loucura. Ele resiste o quanto pode aos olhos verdes de Eva, mas acaba se apaixonando. A moça está a um passo de levar a cabo o plano de vingança, quando descobre que também caiu nas garras da paixão. Violentada por Theo e farta de servir ao plano da família, Eva foge para outra cidade.
Feminista que sou, pensei que a história terminaria bem se ela denunciasse o fazendeiro por estupro e ele fosse preso. Mas Theo acaba reencontrando Eva, e ela aceita voltar para a fazenda, onde os dois dão continuidade ao romance complicado. “O Theo é um personagem complexo, e acho que as pessoas acabam vendo abuso em situações que são só de dominação consentida”, diz Pauvolih, que é mãe de dois filhos e não concorda com várias bandeiras feministas, como o direito à interrupção voluntária da gravidez.
Como definir a diferença entre “dominação consentida” e a dominação pura e simples? A ficção em torno de personagens sexualmente controladores e poderosos também abre espaço para relacionamentos abusivos, às vezes para a romantização desses relacionamentos. “Vários livros que avaliei me deixaram preocupada com a questão do estupro, com essa situação de o homem insistir depois de a personagem dizer não”, afirma Drummond.
A escritora pernambucana Julianna Costa, 30 anos, com doze romances publicados, conta que no seu livro Malícia (com capítulos publicados na plataforma Wattpad, mas cuja escrita ela interrompeu) criou um personagem abusivo, que invade a privacidade da parceira e tenta controlar cada passo dela. “Queria fazer as pessoas se apaixonarem pelo cara e depois mostrar que ele era abusivo, mas as pessoas foram muito permissivas com coisas problemáticas, acharam normal, acharam que era amor. Temos uma construção social da virilidade pautada na violência”, diz.
As discussões sobre assédio e relacionamentos abusivos têm feito algumas escritoras repensarem os clichês dos romances safados e abordarem o tema de forma mais esclarecida. A goiana Camila Moreira é autora de seis livros (publicados pelo selo Paralela, da Companhia das Letras), que venderam mais de 100 mil exemplares no total, segundo ela. Seu livro erótico Muito Além do Amor (2018) narra o envolvimento de uma mulher com o promotor que cuida do caso de violência doméstica do qual ela é vítima. “Eu fiquei em dúvida sobre como terminar a história. Matar o abusador passaria a mensagem de que esse é o único jeito de se livrar da situação. Deixá-lo preso muito tempo é algo que dificilmente acontece na realidade. Ele mudar de comportamento é mais raro ainda”, diz ela, que decidiu que o abusador seria preso. Moreira, 32 anos, é formada em direito e trabalha em uma delegacia de polícia em Lucas do Rio Verde (MT), onde mora. “Aprendi na delegacia muitas coisas sobre violência doméstica, e vi que não é tão simples assim a vítima se livrar disso.”
Embora as autoras de livros eróticos, no fim das contas, façam o amor prevalecer nas tramas, não se pode dizer que romantizem o trabalho da escrita. Todas parecem pragmáticas e veem sua produção literária como algo que exige muito esforço, foco e disciplina. Jéssica Macedo escreve das 14 às 21 horas todos os dias e não se levanta da cadeira antes de ter produzido no mínimo um capítulo. Nesse ritmo, conseguiu lançar dois livros por mês no ano passado, entre eles alguns mais pudicos, para adolescentes. Ela e as outras autoras não esperam que a fada da inspiração venha balançar as asinhas sobre suas cabeças: sentam à mesa e trabalham. “Tem dias na semana que eu reservo para pesquisar sobre o universo do livro, como as cidades e as profissões. Tem outros que eu apenas escrevo. É um ofício”, diz Tatiana Amaral.
Muitas começaram a carreira em espaços de autopublicação, como blogs e o Wattpad, site bastante usado por escritores de fanfic – nome que se dá à ficção escrita por fãs baseada em livros já existentes, séries, filmes ou mesmo na vida de pessoas reais. A trilogia Função CEO, de Amaral, nasceu de uma fanfic que a escritora fez a partir da saga Crepúsculo, criando histórias alternativas para os personagens deste livro sobre o romance do vampiro Edward Cullen com a mocinha Isabella Swan. Como a recepção entre os leitores do Wattpad foi boa, Amaral acabou trocando os nomes e as profissões dos personagens e criando um romance independente, sem referências a Crepúsculo. “Na fanfic podemos escrever aquilo que gostaríamos que o escritor ou o roteirista tivesse escrito, ou criar uma história que gostaríamos que acontecesse na vida real”, diz a advogada santista Renata Costa.
O Wattpad acaba sendo também um local para criar audiência e testar a recepção de futuros romances. Foi nessa plataforma que Camila Moreira publicou seu primeiro romance, Amor Não Tem Leis, atraindo rapidamente a atenção de muitos leitores e da editora Objetiva (comprada depois pela Companhia das Letras). Mila Wander costuma divulgar gratuitamente no Wattpad os capítulos do livro que está escrevendo e, quando termina, publica no Kindle Unlimited. “Muita gente lê de graça no Wattpad e depois paga para ler no Kindle porque gosta da história”, diz ela.
A maioria dos eróticos brasileiros está disponível no Kindle Unlimited, plataforma de aluguel de livros digitais da Amazon que é um prato cheio para a autopublicação. Os próprios escritores formatam seus livros e os colocam à venda ali, ganhando um valor fixo por página lida pelos assinantes da plataforma. O sucesso de um livro é estimado pelo número de páginas únicas lidas pela primeira vez. O CEO Viúvo e a Babá Virgem, lançado por Macedo em novembro de 2020, tinha em meados de janeiro deste ano 3,7 milhões de leituras (ou páginas lidas). Como o livro tem 388 páginas, isso significa que ele já havia sido lido por quase 10 mil pessoas. Quem não é assinante do Kindle Unlimited pode comprar os e-books individualmente – custam entre 1,99 e 20 reais.
A Amazon não diz como chega ao valor que é pago por página, mas Macedo afirma que os cálculos são baseados no número de assinantes da plataforma e na quantidade de leituras da obra, o que dá, nas contas dela, algo em torno de 0,007 real por página. Um livro com 1 milhão de leituras consegue, portanto, arrecadar 7 mil reais. “Não é tanto dinheiro como algumas pessoas pensam, mas sem dúvida vale mais a pena que um emprego com carteira assinada”, diz Macedo.
Pauvolih, que já publicou trinta livros, diz acumular 200 milhões de leituras no Kindle e ter vendido mais de 100 mil e-books e mais de 100 mil exemplares de seus livros físicos, lançados por editoras como Rocco, Planeta e Rico, entre outras. Ferida e Duplamente Ferida ganharam até uma versão em audiolivro, disponível na plataforma Storytel, e de acordo com a escritora, teve os direitos comprados pela Rede Globo. Procurada pela piauí para falar de seus planos com relação ao livro, a emissora não respondeu. Gabriel Gurman, presidente da Galeria Distribuidora, responsável pela produção do filme A Menina Que Matou os Pais, sobre a vida de Suzane von Richthofen, conta que se interessou pelos dois livros de Pauvolih, mas a Globo já havia abocanhado os direitos de adaptação para cinema e tevê. Ele comprou, então, os direitos de Pecadora (2017) e Além do Olhar (2018), da mesma autora. “Descobri esse segmento por acaso e fiquei surpreso com a popularidade. Dentre as autoras nacionais, Nana é sem dúvida uma das melhores”, diz Gurman.
Algumas autoras conseguem se manter apenas com a venda dos livros, como Pauvolih, que calcula faturar até 100 mil reais com um romance bem-sucedido. Outras ainda não têm planos de se dedicar exclusivamente à literatura. Moreira planeja, em paralelo ao trabalho dos livros, fazer concurso público para o cargo de delegada. Vargas concilia até hoje a escrita com a função de produtora de eventos. “Eu não fiquei rica escrevendo, mas a série Ward pagou a reforma da minha casa”, diz, sobre os seis livros que escreveu contando a vida de uma família inglesa e seus casos de amor. Seus romances foram lançados em plataformas de leitura e por editoras tradicionais, como a Record, e venderam mais de 65 mil cópias, entre livros físicos e digitais. Apenas no fim do ano passado, Vargas decidiu publicar pelo Kindle Unlimited, que exige exclusividade.
Apesar de a série Ward se passar na atualidade, os livros de Vargas que tiveram mais sucesso foram ambientados na Inglaterra do século XIX, como Um Acordo de Cavalheiros (2017), que narra o envolvimento sexual entre a jovem aparentemente pudica Dorothy Miller e o libertino Tristan Thorne, conde de Wintry. A autora segue um filão muito apreciado da literatura erótica, que é o romance de época. Há outros, como explica Raquel Cozer, editora da HarperCollins: “Tem os medievais, os vitorianos, os contemporâneos, os chick-lit [romances mais leves e divertidos], tem alguns mais dramáticos.” A HarperCollins é dona do selo Harlequin, voltado para o público feminino e com alguns livros eróticos no catálogo. “Erótico vende como água e é um segmento que funciona muito bem na edição digital, pois as leitoras terminam um livro e emendam outro. Elas leem muito e o e-book é perfeito para elas, pois é mais barato e ocupa bem menos espaço”, diz a editora. Além, é claro, de ser mais discreto, pois a leitora pode folhear seu romance safado no transporte público sem ser julgada pela capa.
As autoras de eróticos têm tal capacidade de criar um público fiel que muitas delas contam com fã-clubes na internet. Nana e nanetes, página de fãs de Nana Pauvolih no Facebook, tem 12 mil seguidores. FC Tatiana Amaral tem 1 228 seguidores no Instagram. Miláticas, grupo do Facebook criado há sete anos, concentra 3,5 mil fãs de Mila Wander. A comerciária Ingrid Rocha, de 31 anos, moradora de Brasília, coordena um grupo de WhatsApp das Miláticas com cerca de cem participantes, no qual as leitoras trocam informações sobre os livros, falam sobre seus problemas pessoais e até fazem amigo-secreto no Natal. “Nunca pensei que eu e Mila ficaríamos próximas. Hoje a considero uma amiga e sou sua leitora beta, leio alguns capítulos antes de serem publicados e dou um feedback”, diz Rocha, que chega a ler até três romances em uma semana.
Cozer diz que as escritoras de romances adultos são prolíficas porque suas leitoras são exigentes: leem muito e rápido, e logo querem a continuação ou outro livro. “Mulher lê muito mais que homem. Elas devoram as narrativas e se lembram das histórias. Eles, por outro lado, tendem a preferir livros de autoajuda empresarial.”
Leomar Gonçalves, 59 anos, cuidadora de idosos no Rio de Janeiro e integrante de um grupo de fãs de Vargas, diz que costuma ler um livro a cada quatro dias. “Prefiro livros físicos, mas não tem mais lugar para colocar na minha casa”, conta. Gonçalves acompanha sua autora preferida desde a época da rede social Orkut, que funcionou de 2004 a 2014. “Tenho bótons da Lucy, livros da primeira edição e outras relíquias dela. Ela escreve muito bem e eu adoro a pureza e a doçura dos romances de época.”
A gaúcha Clara Averbuck, de 41 anos, não é uma escritora de livros eróticos, mas não coloca o sexo de lado em seus livros. Ela é autora, entre outros, dos romances Máquina de Pinball (2002), Vida de Gato (2004) e Toureando o Diabo (2016), cuja personagem principal é Camila, uma mulher livre, que se droga, bebe todas, transa muito e busca sua própria identidade de forma independente. “A personagem não virtuosa, que faz tudo que um homem sempre pode fazer, é odiada”, diz Averbuck, para explicar algumas reações adversas que recebeu ao lançar os livros. “Acho que os romances eróticos contemporâneos escandalizam pouco porque a mulher retratada neles não é vista como uma ameaça à família brasileira.”
A escrita erótica, claro, não é novidade no Brasil. Há uma longa tradição, da qual também fazem parte as mulheres, como as paulistas Cassandra Rios (pseudônimo de Odete Rios Pérez, 1932-2002) e Adelaide Carraro (1936-92) – dois pilares da putaria literária no país. Rios publicou cinquenta livros e foi a primeira autora brasileira a vender mais de 1 milhão de exemplares. Lésbica, escrevia romances eróticos nada heteronormativos, como Eudemônia (1956) e Uma Mulher Diferente (1965). O primeiro foi alvo de dezesseis processos por narrar a história de uma jovem lésbica que acaba se envolvendo com uma médica da clínica onde ela foi internada para tratar a homossexualidade. O segundo é protagonizado por uma mulher transexual. Durante a ditadura militar, 36 livros de Rios sofreram censura. “Quando Cassandra publicava com pseudônimos masculinos, seus livros eram compreendidos como o olhar de um homem fetichizando a lesbiandade. Mas, quando publicava com seu próprio nome, era considerada pornográfica e censurável”, diz a professora de literatura e poeta mineira Bruna Kalil Othero.
Othero estuda a literatura erótica brasileira, em particular a obra da paulista Hilda Hilst (1930-2004), que aos 60 anos surpreendeu o mundo literário ao dar uma pausa na sua obra mais intimista e sofisticada para enveredar, de maneira muito debochada, na escrita erótica e obscena. Um depois do outro, ela publicou O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990), Contos D’Escárnio: Textos Grotescos (1990) e Cartas de um Sedutor (1991), todos sem papas na língua. “Ela misturou de um jeito único referências eruditas, como Ezra Pound, com baixarias como ‘estraçalhar o cu’”, descreve Othero.
Também digno de figurar no panteão do inferninho literário brasileiro é o livro Diana Caçadora, lançado em 1986 pela escritora paulista Márcia Denser. A personagem principal era, sem meias palavras, uma piranha devoradora de homens, que tomava as rédeas da própria vida sexual e tinha a capacidade de analisar cinicamente seus parceiros. “Os homens ficavam muito incomodados ao ler meus livros porque percebiam o que nós, as mulheres, pensamos deles”, diz Denser, que acredita que a literatura só é arte quando incomoda e faz refletir. “Eu não escrevo apenas para deixar o leitor com tesão.” A autora de 71 anos mora em um sítio em Carrancas, no interior de Minas Gerais, e está escrevendo um livro de memórias ainda sem data de lançamento. Vai se chamar Desmemórias.
As obras de Hilst e Denser, bem como os quadrinhos eróticos de Zéfiro, são algumas das referências que Averbuck usa em seu curso de escrita online Como Escrever Putaria, que já teve cinco edições durante a pandemia. “Dando aulas de escrita em geral, percebi que os exercícios com textos sobre sexo eram os que mais provocavam interesse de homens e mulheres”, conta a escritora. Ela teve então a ideia de criar um curso exclusivamente para isto: treinar a escrita sobre sexo, mas evitando o floreado kitsch e os eufemismos pudicos. “No lugar de ‘rolou a língua pelo meu baixo-ventre e sorveu meu néctar’ entra ‘chupou minha boceta molhada’”, diz Averbuck. “É extremamente libertador para mulheres escrever putaria.”
É jornalista, roteirista e cartunista, autora de Parece que Piorou (Companhia das Letras)