Justino, com seu violoncelo: “De manhã, um jornal mostrou na tevê a cena de um cara fazendo uma mulher de refém durante um assalto. Chegou a noite e esse cara estava lá na cela com a gente” - CREDITO: RICARDO BORGES_2020
“Qual facção, vagabundo?”
O violoncelista inocente que ficou cinco dias preso
Luiz Carlos da Costa Justino | Edição 169, Outubro 2020
Depois de um dia de trabalho tocando seu violoncelo, LUIZ CARLOS DA COSTA JUSTINO, negro, 23 anos, músico da Orquestra de Cordas da Grota,[1] em Niterói, acabou preso, acusado de um roubo ocorrido três anos antes. Havia dois problemas com o mandado de prisão. No momento do crime, ele estava tocando numa padaria, conforme mostram imagens de vídeo do local. O segundo problema é que a vítima do roubo o acusara com base em uma foto dele que constava do banco de dados da Polícia Civil do Rio de Janeiro, mas essa foto não deveria estar lá, uma vez que o músico não tinha antecedentes criminais. Justino passou cinco dias na prisão, onde chegou a dividir uma cela com 82 pessoas.
2 DE SETEMBRO, QUARTA-FEIRA_No dia da minha prisão, eu fui tocar lá na Praia de Icaraí, que é um bairro chique de Niterói. Eu estava com a Orquestra X, um trio que eu tenho com dois amigos, o Jorge e o Rodrigo.
Eu também tenho outro trio musical, chamado Trio Parada Dura, com um tio meu, o Leandro, e com o Ricardo, que é meu irmão de criação. Morei com o Ricardo desde os 6 anos de idade, que foi quando eu saí da casa da minha mãe, porque eu não me dava bem com o meu padrasto. Passei então a morar com a minha tia. Os filhos dela – o Ricardo e o Katunga, que eram bem mais velhos que eu – ficaram com a função de cuidar de mim. Como eles já tocavam na Orquestra da Grota, eles me levavam junto, porque ficavam lá o dia todo, fazendo música. O Katunga era professor. Hoje ele é maestro da orquestra principal e também da Orquestra Jovem. Um dia ele me falou que se eu completasse o Método Suzuki, um livro que a gente usa para estudar música, ele me dava um videogame ou um celular. Fiz em três meses, e ganhei um PlayStation 3. Valeu também para eu tomar mais gosto pela música.
Quando eu tinha uns 16 anos, me chamaram para tocar na Orquestra Jovem, que é a segunda mais importante da Grota, só perde para a Master. Um ano depois, a gente foi a Minas Gerais, para tocar numa cidade chamada Ubá. Até então, eu pensava que eu nunca ia fazer isso, de ir para outra cidade. Para mim, no máximo na vida eu ia para São Gonçalo ou para o Rio de Janeiro. Mas depois ainda teve viagens para Nova Friburgo e Teresópolis. A gente toca muito em igreja, na serra, em época de Natal.
Dois anos atrás, entrei para a Orquestra Master, que é a principal. Tive que fazer uma prova, que era assim: primeiro eu tocava uma peça da orquestra, depois tocava uma outra de surpresa, que eu tinha que ler na hora. O bom de ter entrado é que passei a ter uma ajuda de custo, de mais ou menos 300 reais. Quando tinha apresentação, o valor chegava a subir para 600. Foi a primeira vez que eu tive um salário. Na paralela, eu tocava com o Trio Parada Dura ou com a Orquestra X. A gente fez um repertório com Carinhoso, O Trenzinho do Caipira, Hey, Jude, Mozart, um pouco de tudo.
Aí, fomos tocar com a Orquestra X na Praia de Icaraí. Fomos de Uber, de manhã. Tocamos um pouco, e depois a gente resolveu tocar dentro das barcas. Aí juntou um grupo grande, tinha umas oito pessoas tocando, quase todas aqui da orquestra mesmo. Foi a primeira vez que eu toquei dentro de uma barca. O ruim é que tem que comprar passagem para cada viagem, que custa uns 6 reais. Mas o bom é que tem bastante gente, as pessoas estão paradas e acabam prestando mais atenção na música. A gente fez quatro viagens. Fizeram vídeo à beça nosso. Saí de lá com 60 reais.
Quando deu seis horas da tarde a gente acabou a última viagem. Eu sei porque falei com a Mariana, minha esposa, bem nessa hora. Nós fomos lanchar no Bay Market, um shopping ali na frente da estação das barcas, onde tem coxinha por 1 real. É pequena, mas bem boa. Pedi cinco, e um Guaravita.
O Jorginho, que toca violino na orquestra, sugeriu que a gente comprasse dois latões de Brahma, para ir tomando no ônibus, na volta para casa. Só que tinham dois amigos do Jorginho também, e eles eram muito cheios de marra. Acho que foi por isso que os guardas resolveram nos parar, quando eles estavam bebendo a cerveja e um dos meninos respondeu ao guarda com arrogância. Primeiro, um guarda tirou um celular do bolso e usou o aparelho para puxar o nome dos moleques numa lista de procurados. Não deu nada, e eles foram liberados. Aí, puxou o do Jorginho, que também não deu nada. Quando foi puxar o meu nome, o guarda disse que estava demorando para sair a resposta, e que a gente ia ter que ir para a delegacia checar. Mandaram eu entrar no banco de trás da viatura, com o violoncelo no colo. Foi um guarda sentado de cada lado meu.
Na delegacia, os policiais colheram minha digital, e perguntaram a minha altura. Depois disso, o delegado perguntou se eu tinha avisado alguém que estava lá, porque eu estava preso. Eu virei para o guarda que tinha me levado e perguntei: “Como assim? Eu tô preso??” O delegado falou alguma coisa, e eu respondi para ele: “Não tô falando com você, não, senhor.” Foi reflexo, porque quem tinha me levado era o guarda. Mas aí ele começou a me xingar, não me deixou ligar para a minha mãe, e falou que eu era “uma raça de 157”. Eu fiquei com muita raiva. Me alterei porque fiquei nervoso.
Depois disso, fui levado para uma cela com quatro pessoas. Era muito pequena, pra uma pessoa só, com um buraco num canto pra quem quisesse fazer xixi. Tinha um cara que estava lá desde a noite anterior, sem comer nada. Tinha um outro que foi legal comigo. Eu perguntei para ele o que era “raça de 157”, e ele disse que era o código para roubo.
Foi chegando mais gente durante a noite. Chegou um cara todo machucado, que a população tinha batido nele. Teve um outro que chegou lá porque tinha matado com faca. Não consegui dormir.
3 DE SETEMBRO, QUINTA-FEIRA_Quando deu onze da manhã, me avisaram que tinha um advogado lá para mim. O pessoal da orquestra é que tinha mandado, depois que o Jorginho contou o que tinha acontecido. O advogado falou que eu ia ser transferido para o presídio de Benfica, e me contou que eu estava sendo acusado de um roubo ocorrido em 2017. Eu não prestei muita atenção, só fiquei repetindo: “Me tira daqui, me tira daqui.”
Eu e todos os presos da cela fomos para Benfica numa van. Colocaram a gente algemado, de três em três, com os braços para trás. Com o balanço do carro, a algema vai apertando, é muito ruim. Um dos caras que estava algemado contou que tinha sido preso por causa de um processo em cima dele, de que tinha matado alguém um tempo atrás. Ele era branco. O outro que estava com a gente era negro. Eu estava chorando muito no caminho, aí eles falaram que era para eu dizer que eu morava em área do Comando Vermelho, porque assim eu ficava na mesma cela que eles. E, na verdade, a comunidade da Grota, onde eu moro em Niterói, é mesmo dominada pelo CV. Mas o advogado já tinha me avisado que não era para eu falar que morava na Grota, mas em São Francisco, que é o bairro que fica logo do lado, no asfalto. Assim iam me colocar numa cela neutra.
Quando a gente chegou no presídio, me deram duas injeções no braço. Uma era de sarampo. A outra nem sei do que era. Depois, colocaram a gente numa fila para cortar o cabelo. Eu estava com dreadlocks. Falei que era músico, acho que eles pensaram que eu ia sair rápido e acabaram não cortando o meu cabelo. Tinha lá também um cara com o cabelo igual ao meu. Ele estava até com uniforme de trabalho. Era motorista, tinha sido acusado de desviar mercadoria para uma comunidade. Também não cortaram o dele.
Depois dessa fila, os guardas mandaram geral tirar a roupa, pular e agachar. Acho que é para ver se tem alguma coisa escondida. Devolveram a roupa, mas sem cueca. É proibido. A minha sorte foi que pelo menos eu estava de calça, o que ajudou um pouco com o frio. Fora isso, eu tinha uma camisa branca e um chinelo, que minha mãe tinha mandado o advogado me entregar.
Em seguida, a gente foi para as celas. Tinha três: uma do Comando Vermelho, uma das milícias e uma neutra. Um agente perguntou para mim: “Qual facção, vagabundo?” Aí eu disse “Sem facção”, e me colocaram na cela neutra. Não sei quantas pessoas tinha quando eu cheguei.
Tem um preso que manda na cela, que o pessoal chama de “visão”. Quando entrei, o “visão” me mandou tomar um banho. O chuveiro fica dentro da cela mesmo, água fria, mas tem uma parede separando. Tomei, e botei a roupa com o corpo molhado, já que não tinha toalha. Também não tinha sabonete, pasta de dente, nada. Depois, ele me mandou descansar. Tinha colchão e uns beliches, mas não tinha cobertor, nada disso. Eu estava com muita fome, a última coisa que eu tinha comido eram aquelas coxinhas do dia anterior. Mas quando a quentinha do almoço chegou, estava tudo com cheiro de estragado. Era frango, arroz e feijão. O pessoal da cela comeu, acho que eles já estavam acostumados. Eu não consegui comer nada, só bebi o suco.
De tarde, o “visão” leu as regras da cela para quem tinha chegado. As regras estavam escritas num pedaço de papelão, acho que de uma caixa de leite. Ele falou que conversa só podia entre dez da manhã e dez da noite. Que para subir no beliche, tinha que ser pela parte da ponta, para o preso de baixo não ter que ver o pau do outro. Falou também que não podia ter preconceito com homossexual, que ali tinha que respeitar todo mundo.
No jantar, teve arroz, feijão e mortadela frita. Estava melhor, comi um pouco. Depois foi a hora de dormir. Como não tinha cama para todo mundo, os presos dividem o colchão. Cada um fica com a cabeça nos pés do outro. O cara que dormiu comigo tinha falado, meio rindo, que andava com uma faca de Rambo e que tirava as tripas da pessoa. Fiquei com medo de encostar nele, não dormi quase nada. De noite é horrível, você fica pensando em muita coisa. Fiquei pensando na minha filha, a Melissa, e chorei meio escondido. Não pode demonstrar, porque ali ninguém chora na frente de ninguém.
4 DE SETEMBRO, SEXTA-FEIRA_De manhã, os guardas mandaram a gente sair da cela de cinco em cinco, que nem acontece todo dia, para fazer a contagem. Foi assim que fiquei sabendo que na minha cela tinha 82 presos. Para a contagem, a gente fica num corredor esperando, até que eles mandam geral voltar. Aí, fecham a cela e entregam o café da manhã para o “visão”, que distribui para o resto dos presos. Era um pão puro, com suco ou café com leite.
Passei o dia deitado na cama. Tinha uma tevê na cela, mas ela estava desligada por punição, porque alguém tinha feito alguma besteira. De vez em quando, os guardas chegavam na frente da cela e falavam o nome de um detento. Falaram o nome do cara que tinha o cabelo igual ao meu. Ele foi levado para a audiência de custódia, e depois deve ter sido libertado, porque não voltou mais. Eu não tive direito à audiência, porque minha prisão não era em flagrante. Eu nem sabia por que motivo eu tinha sido preso. Toda vez que chamavam um nome, eu tinha esperança de que seria o meu. Não era, e eu fui ficando mais apavorado, com medo de fazerem alguma coisa errada comigo. Um cara me viu assim e falou para eu ficar tranquilo, que não ia acontecer nada de ruim lá dentro, que na dúvida era só eu fazer exatamente o que ele fazia, se comportar e seguir as regras da cela. Ele já tinha sido preso antes, ficou um mês solto na rua, mas foi preso de novo. Não explicou direito o porquê. Também não perguntei muito.
Eu não estava tranquilo com os caras da cela, mas eles foram maneirão comigo. Quando eu dizia que era músico, eles perguntavam: “Toca o quê? Violão? Cavaquinho?” Aí eu dizia que era violoncelo, música clássica, eles ficavam impressionados. A maioria nem sabia o que era violoncelo. Não que eu não saiba tocar esses outros instrumentos. Desde que entrei na orquestra, o que aparecia na minha frente eu ia tocando: cavaquinho, violão, pandeiro, violino. O Ricardo queria que eu tocasse violino que nem ele, mas eu gostava mais do som do violoncelo. Acho que o violoncelo tem uma pureza.
Contei para o “visão” que eu estava quase certo de aparecer num programa de tevê. Ia com o Jorginho, que toca violino, e o Rodrigo, que toca cavaquinho. A gente tinha sido convidado, por causa de uns vídeos nossos que o pessoal do programa viu no Instagram do Rodrigo. O “visão” gostou da história, e pediu para eu falar o nome dele no programa. O nome dele era Peidão.
5 DE SETEMBRO, SÁBADO_A televisão voltou a ser ligada. Aí, de manhã, um jornal mostrou a cena de um cara fazendo uma mulher de refém durante um assalto. Chegou a noite e esse cara estava lá na cela com a gente. Todo mundo começou a comentar, aí o “visão” falou: “Deixa o cara tranquilo, cada um faz o seu.”
Foi nesse dia também que o pessoal lá da orquestra resolveu ir para a frente do presídio, com a Globo filmando, para protestar contra a minha prisão e tocar umas músicas para mim. De onde eu estava não consegui ouvir, e também nem vi na tevê, porque a nossa estava ligada em outro canal, num desenho animado. Mas, dali para a frente, tudo mudou. De noite, um guarda chegou na cela e gritou: “Luiz Carlos!” Eu completei: “Da Costa Justino, cela B2.” É o padrão: eles falam o começo do nome, e o preso completa, para ninguém fingir que é outra pessoa. Aí ele me contou que o pessoal tinha ido lá tocar para mim, que agora eu ia ficar numa cela sozinho, e que mais adiante ia ser liberado. Comecei a chorar, fiquei pensando que eles tinham me salvado. Até ali eu não sabia de nada do que estava rolando lá fora. Eu só tinha falado com o advogado uma vez.
O guarda me levou para uma cela individual. Me deu um kit com cobertor, sabão, pasta de dente. Eu pedi para ele não me deixar sozinho na cela, que preferia ficar na outra, que lá pelo menos eu tinha mais gente para conversar, mas ele falou que não tinha jeito, era medida de segurança, já que eu estava perto de sair.
Fiquei nessa cela até a noite, quando me tiraram de lá, me algemaram de novo, e me botaram numa van para eu ir com outros presos para um presídio em São Gonçalo. Como era muito preso na van, dessa vez eu tive que ir em pé. Por acaso, o “visão” foi transferido junto comigo. Ele falou de novo para eu não esquecer de citar o nome se um dia eu aparecesse na tevê.
Quando a gente chegou no presídio, um agente perguntou: “Quem é o músico aí?” Respondi que era eu, aí ele tirou minha algema e me separou do resto do grupo. Perguntou se alguém tinha me batido. Respondi que não. Ele falou para eu ficar tranquilo então, e me levou para uma cela onde só tinha eu.
Não consegui dormir quase nada, por causa da ansiedade. Fiquei fazendo flexão de noite para tentar cansar.
6 DE SETEMBRO, DOMINGO_Nesse dia, teve rosquinha no café da manhã. Logo depois, um agente abriu a minha cela e falou: “Luiz Carlos, seu alvará cantou.” Fiquei repetindo para ele: “Me leva embora, me leva embora”, mas ele disse que ainda ia levar um tempo até sair a papelada da soltura. Me levaram para uma sala, onde um agente ficou escrevendo sobre o meu caso no computador. Imprimiu, tirou minha digital, perguntou o nome da minha mãe e do meu pai para checar se era eu mesmo. Depois me entregou o papel e falou que eu podia ir embora. Ele avisou que a Globo estava lá fora me esperando.
Fui caminhando até a porta do presídio segurando o papel. Antes de sair, um outro guarda fez o mesmo procedimento: perguntou meu nome, o da minha mãe, o do meu pai, essas coisas. Aí me liberou. Lá fora não tinha ninguém além de um jornalista. Ele começou a me perguntar um monte de coisa, mas eu falei pouco, porque só queria ir embora.
O problema é que o presídio é longe de tudo, e o advogado ainda não tinha chegado. Aí os caras da Globo me deixaram ficar no carro deles, enquanto eu esperava. Quando o advogado chegou com mais uma advogada da Comissão de Direitos Humanos da OAB, ela me levou para a casa do Katunga, e de lá eu fui para a casa da minha mãe, onde estou morando desde o começo da pandemia. Antes do coronavírus, eu alugava uma casinha só para mim, minha esposa e a nossa filha, mas tive que me mudar porque a gente não deu mais conta de pagar os 400 reais do aluguel. Nós somos em dezesseis lá.
Fizeram um churrasco, mas eu nem comi.
7 DE SETEMBRO, SEGUNDA-FEIRA_Cortei meu cabelo, porque ainda estava sentindo o clima muito pesado. Eu gostava dele grande, com os dreads, mas parecia que os dreads tinham trazido uma coisa de dentro do presídio. Também resolvi dar uma arranhada no violoncelo. A primeira música que toquei chama Ninguém Explica Deus. É de um grupo gospel chamado Preto no Branco. Acho que foi uma forma de agradecer.
1 O fundador da revista piauí apoia financeiramente a
Orquestra de Cordas da Grota. (N.R.)