Quando você é pequeno vive em outro mundo, não olha do alto, mas vive perto da terra. Ali os aviões são ainda mais assustadores, as bombas são ainda mais assustadoras BORIS YAROSLAVTSEV _SPUTNIK_ALAMY STOCK PHOTO
Quando as flores pegaram fogo
A invasão da União Soviética pelos nazistas, aos olhos dos que eram crianças em 1941
Svetlana Aleksiévitch | Edição 143, Agosto 2018
“Eles ficavam deitados sobre o carvão, rosados…”
Kátia Korotáieva, 13 anos.
Hoje: engenheira hidrotécnica
Vou contar do cheiro… Qual é o cheiro da guerra…
A guerra começou logo depois que terminei o 6º ano. Na época, o regulamento da escola dizia que a partir do 4º ano todos faziam provas. E nós tínhamos feito a última prova. Era junho, porém maio e junho de 1941 foram meses frios. Se na nossa terra o lilás floresce em algum momento de maio, naquele ano ele floresceu no meio de junho. E, por isso, o começo da guerra para mim está para sempre ligado ao cheiro do lilás. Ao cheiro da cereja-galega… Para mim, essas árvores sempre vão ter cheiro de guerra…
Nós morávamos em Minsk, onde eu nasci. Meu pai era regente de uma orquestra militar. Eu ia às paradas militares com ele. Além de mim, na família havia também dois irmãos mais velhos. Claro, todos me amavam e mimavam por eu ser a mais nova e, ainda por cima, menina.
Tinha o verão pela frente, tinha as férias pela frente. Era uma alegria. Eu praticava esportes, ia à Casa do Exército Vermelho para nadar na piscina. E todos tinham muita inveja de mim, até os meninos da sala tinham inveja. E eu me achava importante porque sabia nadar bem. No dia 22 de junho, domingo, íamos comemorar a abertura do Komsomolskoe Ozero.[1] Passaram muito tempo cavando, construindo, até nossa escola tinha participado de mutirões aos sábados. Eu me aprontava para ser uma das primeiras a chegar para nadar. Mas é claro!
De manhã costumávamos buscar pães frescos. Isso era considerado minha obrigação. Encontrei uma amiga na estrada, ela me disse que a guerra tinha começado. Na nossa rua havia muitos jardins, as casinhas estavam afundadas em flores. Eu pensei: “Que guerra? O que essa menina foi inventar?”
Em casa, meu pai estava aprontando o samovar… Não consegui dizer nada, e os vizinhos começaram a vir correndo, e todos tinham a mesma palavra na boca: “Guerra! Guerra!” E no dia seguinte, às sete da manhã, trouxeram para meu irmão a notificação do centro de recrutamento. De tarde ele correu para o trabalho e lhe deram dinheiro, ele recebeu o acerto de contas. Com esse dinheiro foi para casa e disse para a mamãe: “Estou indo para o front, não preciso de nada. Tome esse dinheiro. Compre um novo casaco para a Kátia.” Logo que me tornei aluna do ensino médio, comecei a sonhar com que costurassem para mim um casaco azul-bóston com gola cinza de pele de cordeiro caracul. E ele sabia disso.
Até hoje lembro que, ao ir embora para o front, o meu irmão me deu dinheiro para o casaco. E nós levávamos uma vida modesta, o dinheiro mal dava para tapar os buracos do orçamento familiar. Minha mãe teria comprado o sobretudo para mim, já que meu irmão tinha pedido. Mas ela não teve tempo de fazer nada.
Começaram a bombardear Minsk. Eu e minha mãe nos mudamos para o porão de pedra dos vizinhos. Minha gata preferida, muito arisca, não ia a lugar nenhum além do pátio, mas, quando começaram a bombardear, e eu corria do pátio para a casa dos vizinhos, a gata me seguia. Eu a enxotava, “Vá para casa!”, mas ela me seguia. Ela também tinha medo de ficar sozinha. As bombas alemãs voavam fazendo um zumbido, um gemido. Eu era uma menina musical, isso tinha uma influência forte sobre mim. Esses sons… Davam tanto medo que as palmas das minhas mãozinhas ficavam molhadas. No porão, o filho dos vizinhos, de 4 anos, ficava conosco, ele não chorava. Os olhos dele ficavam grandes, apenas isso.
No começo queimavam casas isoladas, depois a cidade pegou fogo. Gostamos de olhar para o fogo, para uma fogueira, mas dá medo quando uma casa queima, e lá o fogo vinha de todos os lados, a fumaça cobria todas as ruas. E em alguns lugares havia uma luminosidade forte… Do fogo… Lembro-me de três janelas abertas numa casa de madeira e, no peitoril, alguns cactos luxuosos. Já não havia gente naquela casa, só os cactos florescendo. Sentia que não eram flores vermelhas, e sim chamas. As flores estavam queimando.
Corremos.
As pessoas nos alimentavam nas estradas com pão e leite, mais nada. E estávamos sem dinheiro. Saí de casa com um lencinho, e minha mãe por algum motivo fugiu com o casaco de inverno e os sapatos de salto. Nos davam comida assim, em troca de nada, ninguém mencionava dinheiro. Os refugiados passavam em multidões.
Depois, um dos que iam à frente informou que a estrada estava interrompida por motociclistas alemães. Recuamos, correndo, passando pelas mesmas aldeias, pelas mesmas tias com jarras de leite. Chegamos correndo em nossa rua… Poucos dias antes, ali ainda havia verde, havia flores, e agora tudo estava consumido pelo fogo. Mesmo das tílias centenárias não sobrara nada. Tudo tinha queimado até virar só areia amarela. A terra negra, na qual tudo cresce, tinha sumido, e sobrara apenas uma areia amarela, amarela. Só areia. Como se você estivesse ao lado de túmulos recém-escavados…
Sobraram os fornos das fábricas; eles estavam brancos, calcinados pelo forte fogo. Não havia mais nada conhecido… A rua inteira tinha queimado. Queimaram as avós e os avôs e muitas crianças pequenas, porque eles não fugiram junto com todo mundo, achavam que não tocariam neles. Mas o fogo não poupou ninguém. Você andava e via um cadáver negro, um velho havia sido queimado. E, se você via ao longe algo pequeno, rosado, isso queria dizer que era uma criança. As crianças estavam deitadas sobre o carvão, rosadas…
Mamãe tirou o lenço e vendou meus olhos. Assim, chegamos à nossa casa, ao mesmo lugar onde, poucos dias antes, ficava nossa casa. Não havia mais casa. Fomos recebidas por nossa gata, salva por milagre. Ela se apertou contra mim e pronto. Ninguém conseguia falar. Nem a gata miava. Ela passou alguns dias calada. Todos emudeceram.
Avistei os primeiros fascistas, nem avistei, mas ouvi – todos eles usavam botas com chapas de ferro, fazia barulho quando pisavam. Batiam pela nossa calçada. Eu achava que até a terra sentia dor quando eles andavam.
E o lilás floresceu tanto naquele ano… A cereja-galega floresceu tanto…
“Essa menina foi a primeira a chegar…”
Nina Iarochévitch, 9 anos.
Hoje: professora de educação física
Em casa, todos estavam emocionados com um grande acontecimento…
À noite, o noivo da minha irmã mais velha veio pedi-la em casamento. Todos ficaram até tarde discutindo quando seria a festa, onde os jovens iam se casar, quantos convidados chamar. E na manhã seguinte chamaram o meu pai para o centro de recrutamento. Na aldeia já começavam a correr os rumores: “Guerra!” Mamãe ficou transtornada: “Como pode ser?” Eu só pensava numa coisa: se ia sobreviver àquele dia. Ninguém tinha me explicado ainda que a guerra não ocorre num dia ou dois apenas, que pode durar muito tempo.
E era verão, um dia quente. Queria ir ao riacho, mas mamãe estava nos aprontando para pegar a estrada. Meu irmão tinha acabado de voltar do hospital, onde fora operado da perna, e estava de muletas. Mas mamãe disse: “Temos que ir todos embora.” Para onde? Ninguém sabia nada. Percorremos uns 5 quilômetros. Meu irmão mancava e chorava. Para onde ir com ele? Demos meia-volta. Papai nos esperava em casa. Os homens que foram para o centro de recrutamento de manhã tinham voltado, os alemães já ocupavam o centro local. A cidade de Slutsk.
Caíam as primeiras bombas – fiquei olhando para elas até tocarem a terra. Alguém tinha me contado que era preciso abrir a boca para não ficar surda. E então abria a boca, tampava os ouvidos e mesmo assim escutava quando elas caíam. Elas berravam. Dava tanto medo que não só a pele do rosto, mas de todo o corpo se contraía. Tínhamos um balde que ficava pendurado. Quando tudo se acalmou, tiramos: contamos 58 buracos. O balde era branco, do alto parecia alguém de pé com um lenço branco, e eles atiraram… Estavam se divertindo…
Os primeiros alemães entraram na aldeia em carros grandes enfeitados com galhos de bétula. Assim como fazíamos quando celebrávamos um casamento. Quebravam galhos e galhos de bétula… Observávamos através da cerca, na época não havia muros, e sim cercas. Através dos salgueiros. Olhávamos bem… Eles pareciam pessoas normais… Eu queria ver, como era a cabeça deles? Não sei por que eu tinha a impressão de que eles não tinham cabeça humana… Já corriam boatos de que eles matavam… Queimavam. Mas passavam de carro rindo. Satisfeitos, bronzeados.
De manhã faziam ginástica no pátio da escola. Tomavam banho de água fria. Arregaçavam as mangas, subiam na moto e saíam.
Durante alguns dias cavaram uma grande vala ao lado da fábrica de laticínios, fora da aldeia, e todo dia às cinco, seis da manhã vinham tiros de lá. Quando começavam a atirar, até os galos paravam de cantar, se escondiam. Eu estava indo para a via de acesso com meu pai antes de anoitecer; ele deteve o cavalo perto dessa vala. “Vou lá ver”, disse. Também tinham fuzilado a prima dele ali. Ele andava, e eu ia atrás.
De repente meu pai se virou e escondeu a vala de mim: “Volte. Você não pode continuar.” Eu só vi, quando cruzei o riacho, que a água estava vermelha… E como os corvos subiram. Havia tantos corvos que soltei um grito… Depois disso meu pai passou vários dias sem conseguir comer. Ele via um corvo e corria para a khata, tremendo todo… Com febre…
Em Slutsk, no parque, enforcaram duas famílias de partisans. Fazia um frio terrível, os enforcados estavam tão congelados que, quando o vento os balançava, eles tilintavam. Tilintavam como árvores congeladas na floresta… Aquele som…
Quando nos libertaram, meu pai foi para o front. Foi para o Exército. Já sem ele, costuraram meu primeiro vestido desde o começo da guerra. Mamãe costurou com uns trapos, eles eram brancos, e ela os tingiu com tinta. A tinta não foi suficiente para uma manga. Mas eu queria mostrar o vestido para minhas amiguinhas. E fiquei de lado na porta, ou seja, a manga boa aparecia e a manga ruim ficava escondida do lado de casa. Eu achava que estava tão arrumada, tão bonita!
Uma menina sentava na minha frente na escola, a Ánia. O pai e a mãe dela tinham morrido, ela morava com a avó. Eles eram refugiados, de perto de Smolensk. A escola comprou para ela um sobretudo, botas de feltro e galochas brilhantes. A professora levou e pôs tudo isso sobre a carteira escolar dela. E ficamos calados, porque nenhum de nós tinha botas ou um sobretudo como aqueles. Estávamos com inveja. Um dos meninos cutucou Ánia e disse: “Que sorte!” Ela despencou na carteira e começou a chorar. Chorou de soluçar durante todas as quatro aulas.
Meu pai voltou do front, todos vieram ver nosso pai. E nos ver também, porque o papai tinha voltado para nós.
Essa menina foi a primeira a chegar…
“… E começou a embalar, feito uma boneca”
Dima Sufrankov, 5 anos.
Hoje: engenheiro mecânico
Antes disso eu só tinha medo de ratos. E então quantos medos de uma vez só! Mil medos…
A palavra “guerra” não atingiu tanto a minha consciência infantil quanto o susto que a palavra “aviões” me dava. “Os aviões!”, e a minha mãe nos juntava no forno. Tínhamos medo de sair de lá, tínhamos medo de ir para fora da khata, enquanto ela tirava um, o outro voltava. Nós éramos cinco. E ainda tinha um gato que amávamos.
Os aviões abriam fogo sobre nós.
Meus irmãos menores… a mamãe os amarrava ao corpo com panos, e nós, mais velhos, corríamos sozinhos. Quando você é pequeno… você vive em outro mundo, não olha do alto, mas vive perto da terra. Ali os aviões são ainda mais assustadores, as bombas são ainda mais assustadoras. Lembro que tinha inveja dos besouros: eles eram tão pequenos que sempre podiam se esconder em algum lugar, entravam na terra… Eu imaginava que quando morresse viraria algum animal, sairia correndo para a floresta.
Os aviões abriam fogo sobre nós…
Minha prima tinha 10 anos e estava levando nosso irmãozinho de 3. Ela correu, correu, ficou sem forças e caiu. Eles passaram a noite inteira deitados na neve, e ele congelou, mas ela ficou viva. Cavaram uma cova para enterrá-lo, ela não deixava: “Míchenka, não morra! Por que você está morrendo?”
Fugimos dos alemães e fomos morar no pântano… numas ilhazinhas… Construímos cabanas para nós e morávamos nelas. As cabanas eram uns barracos: madeira nua, com um buraco no alto. Para a fumaça. E embaixo: terra. Água. Morávamos lá, inverno e verão. Dormíamos sobre galhos de pinheiros. Uma vez voltamos com mamãe da floresta para a aldeia, queríamos pegar algo na nossa khata. Havia alemães lá. Alguém veio, mandaram todos para a escola. Nos puseram de joelhos e apontaram as metralhadoras para nós. Nós, crianças, éramos do tamanho das metralhadoras.
Escutamos: estavam atirando na floresta. Os alemães: “Partisans! Partisans!”, e foram para os carros. Foram embora rapidamente. E nós, para a floresta.
Depois da guerra eu tinha medo de ferro. Se via um estilhaço, tinha medo de que explodisse. A filha da vizinha tinha 3 anos e 2 meses… Gravei na memória… A mãe repetia sobre o caixão dela: “Três anos e 2 meses… Três anos e 2 meses…” Ela tinha achado uma granada de mão. E começou a embalar, feito uma boneca. Enrolou nuns trapos e embalava. Uma granada é pequena como um brinquedo, só que pesada. A mãe não conseguiu correr a tempo…
Depois da guerra, na nossa aldeia de Starie Golovtchitsi, na região de Petrikovski, passaram mais dois anos enterrando crianças. Havia ferro da guerra jogado por todo lado. Tanques pretos abatidos, veículos blindados. Pedaços de mina, bombas… E nós não tínhamos brinquedos… Depois começaram a reunir tudo isso e mandar para algum lugar, para as fábricas. Mamãe explicou que iam começar a fundir esse ferro para fazer tratores. Maquinário e máquinas de costura. Se eu via um trator novo, não me aproximava dele, achava que ia explodir. E ficar preto como um tanque…
Sabia de que ferro era feito…
“Parecia que ela havia salvado a filha dele…”
Guênia Zavôiner, 7 anos.
Hoje: técnica de aparelhos de rádio
O que me ficou gravado mais forte na memória? Daqueles dias… quando levaram o meu pai… Ele estava usando um casaco acolchoado, não me lembro do rosto dele, sumiu completamente da minha memória. Me lembro das mãos… Eles as amarraram com cordas. As mãos do meu pai… Mas, por mais que eu me esforce, também não me lembro de quem veio levá-lo. Eram várias pessoas…
Mamãe não chorou… Ela passou o dia inteiro na janela.
Levaram o papai e nos transferiram para o gueto, passamos a viver atrás da cerca de arame. Nossa casa ficava perto da estrada, todo dia voavam paus para o nosso pátio. Eu via um fascista perto do nosso portão, quando levavam um grupo para o fuzilamento, ele batia nas pessoas com esses paus. Os paus quebravam, e ele os jogava para trás. No nosso pátio. Eu queria vê-lo melhor, não só as suas costas, e uma vez consegui: era pequeno, careca. Gemia e se resfolegava. Minha imaginação infantil ficou impressionada por ele ser tão comum…
Encontramos nossa avó assassinada no apartamento… Nós mesmos a enterramos… Nossa avó alegre e sábia, que amava música alemã. Literatura alemã.
Mamãe foi trocar coisas por comida e começou um pogrom no gueto. Normalmente nos escondíamos no porão, mas dessa vez fomos para o sótão. Ele estava completamente destruído de um lado, e isso nos salvou. Os alemães entraram na nossa casa e foram batendo no teto com as baionetas. E só não entraram no sótão porque ele estava destruído. Mas, no porão, jogaram granadas.
O pogrom durou três dias, e os três dias nós passamos no sótão. A mamãe não estava conosco. Só pensávamos nela. Quando acabou, ficamos perto da porta esperando: Será que está viva? De repente apareceu nosso antigo vizinho por fora do portão, ele passou sem parar, mas escutamos: “Sua mãe está viva.” Quando mamãe voltou, nós três ficamos olhando para ela, ninguém chorou, não havia lágrimas, veio algum tipo de calma. Nem fome sentíamos.
Estávamos eu e mamãe perto da cerca, passou uma mulher bonita. Ela parou perto de nós do outro lado e disse para mamãe: “Como tenho pena de vocês.” Mamãe respondeu para ela: “Se tem pena, leve minha filha com você.” “Está bem”, disse a mulher, pensativa. Combinaram o resto sussurrando.
No dia seguinte, mamãe me levou para o portão do gueto.
– Guénetchka, leve o carrinho de bebê com a boneca e vá até a tia Marússia (era nossa vizinha).
Lembro o que eu estava vestindo: uma blusa azul, um pequeno suéter com pomponzinhos brancos. Tudo o que eu tinha de melhor, de festa.
Mamãe me empurrava para cruzar os portões do gueto, eu grudava nela. Ela empurrava, estava banhada em lágrimas. Lembro que fui… Lembro onde estavam os portões, onde ficava o posto do guarda…
E assim empurrei o carrinho para o lugar onde mamãe tinha mandado, lá me vestiram com um casaquinho de pele e me sentaram numa carroça. Quanto mais andávamos, mais eu chorava e dizia: “Mamãe, onde você estiver eu também vou estar. Onde você…”
Me levaram para um sítio, me sentaram num longo banco. Na família em que fui parar havia quatro crianças. E eles me adotaram também. Quero que todos saibam o nome da mulher que me salvou: Olímpia Pojaritskaia, da aldeia Guenevitch, da região de Volójinski. O medo esteve presente naquela família por todo o tempo em que eu estive lá. Podiam ser fuzilados a qualquer minuto… Toda a família… Inclusive os quatro filhos… Por terem encoberto uma criança judia. Do gueto. Eu era a morte deles… Que coração grandioso é preciso ter! Um coração desumanamente humano. Apareciam os alemães, logo me mandavam para algum lugar. A floresta ficava ao lado, a floresta me salvava. Essa mulher tinha muita pena de mim, ela tinha pena dos filhos e de mim também. Se ela dava algo, dava para todos, se beijava, beijava todos. E fazia carinho em todos igualmente. Eu a chamava de “mamússia”. Em algum lugar eu tinha uma mãe, e ali uma mamússia…
Quando os tanques se aproximaram do sítio, eu estava levando as vacas para pastar, vi os tanques e me escondi. Não acreditava que eram nossos, mas, quando distingui as estrelas vermelhas neles, saí para a estrada. Saltou um militar do primeiro tanque, me pegou nos braços e me levantou muito, muito alto. Então veio correndo a dona do sítio, ela estava tão feliz, tão bonita; queria muito compartilhar algo bom, dizer que a família dela também tinha feito algo por aquela vitória. E ela contou como eles haviam me salvado. Uma menina judia… Esse militar me apertou contra si, eu era magrinha, magrinha, e me escondi debaixo do braço dele, ele abraçou essa mulher, e a abraçou com uma cara que parecia que ela havia salvado a filha dele. Disse que todos os parentes dele tinham morrido, que logo terminaria a guerra, ele voltaria e me levaria para Moscou. Não concordei de jeito nenhum, apesar de não saber se minha mãe estava viva ou não.
Vieram outras pessoas correndo, elas também me abraçaram.
E todos confessaram que haviam adivinhado quem estavam escondendo no sítio.
Depois mamãe veio me buscar. Ela entrou no pátio e ficou de joelhos diante dessa mulher e dos filhos…
“Me levaram para o destacamento nos braços, tudo em mim estava quebrado, dos calcanhares ao cocuruto…”
Volódia Ampilógov, 10 anos.
Hoje: serralheiro
Eu tinha 10 anos, 10 anos certinho. E veio a guerra. Essa guerra miserável!
Estava brincando de pega-pega com os meninos no pátio. Veio um carro grande, dele saltaram soldados alemães, começaram a nos pegar e jogar na caçamba, debaixo de uma lona. Eles nos levaram para a estação, o carro se aproximou do vagão de ré e, como sacos, fomos jogados lá dentro. Sobre palha.
Lotaram tanto o vagão de gente que num primeiro momento só conseguíamos ficar de pé. Não havia adultos, só crianças e adolescentes. Por dois dias e duas noites nos levaram com as portas fechadas; não víamos nada, só escutávamos como as rodas batiam nos trilhos. De dia, um pouco de luz ainda passava pelas frestas, mas à noite dava tanto medo que todos chorávamos: estavam nos levando para algum lugar distante, e nossos pais não sabiam onde estávamos. No terceiro dia a porta se abriu, e um soldado jogou no vagão algumas bisnagas de pão. Quem estava perto conseguiu pegar e, num segundo, devorou aquele pão. Eu estava no lado oposto da porta e não vi o pão, só tive a impressão de sentir o cheiro por um minuto, quando escutei o grito: “Pão!” Só o cheiro.
Já não lembro como se passaram aqueles dias na estrada. Mas já não dava mais para respirar no vagão, porque fazíamos as necessidades ali. Tanto o número um quanto o número dois… Começaram a bombardear o trem… O teto do meu vagão foi arrancado. Eu não estava só, estava com meu amiguinho Grichka; ele tinha 10 anos, como eu, e antes da guerra estudávamos na mesma turma. Desde os primeiros minutos em que começaram a nos bombardear, a gente se segurou um no outro para não se perder. Quando o teto foi arrancado, decidimos escapar do vagão por cima e fugir. Fugir! Para nós ficou claro: eles nos levavam para o oeste. Para a Alemanha.
Estava escuro na floresta, e olhávamos para trás: nosso trem pegava fogo, queimava numa fogueira. Com chamas altas. Andamos por toda a noite, de manhã chegamos a uma aldeia, mas não havia aldeia, em vez das casas… era a primeira vez que via isso: de pé, só os fogões pretos. Uma névoa se alastrava… Andávamos como por um cemitério. Entre monumentos pretos… Procurávamos algo para comer, os fogões estavam vazios e frios. Avançamos. À noite, encontramos de novo restos apagados de incêndio e fogões vazios… Andamos e andamos… De repente Grichka caiu e morreu, o coração dele parou. Passei a noite sentado ao lado dele, estava esperando amanhecer. De manhã, fiz uma covinha na areia com as mãos e enterrei Grichka. Queria me lembrar do lugar, mas como você vai lembrar se tudo ao seu redor é desconhecido?
Andava, e a cabeça girava de fome. De repente escutei: “Pare! Menino, para onde está indo?” Perguntei: “Quem são vocês?” Eles disseram: “Estamos do seu lado. Somos partisans.” Por eles fiquei sabendo que estava na região de Vítebsk, fui parar na Brigada Partisan Aleksêievskaia…
Quando recobrei um pouco as forças, comecei a pedir para combater. Como resposta, zombavam de mim e me mandavam dar uma ajuda na cozinha. Mas aconteceu… uma coisa… Por três vezes mandaram batedores para a estação de trem, e eles não voltaram. Depois da terceira vez, o comandante do destacamento pôs todos em formação e disse:
– Não consigo mandar uma quarta vez. Vão voluntários.
Eu estava na segunda fileira, escutei:
– Quem se voluntaria? – Levantei a mão, como na escola.
Meu suéter era longo, a manga balançava até o chão. Levantei a mão, mas ele não a via, a manga estava pendurada, eu não conseguia me desfazer.
O comandante ordenou:
– Voluntários, um passo adiante.
Dei um passo adiante.
– Meu filho… – me disse o comandante. – Meu filho…
Me deram um saquinho e uma velha ushanka[2] com uma das orelhas arrancada.
Logo que saí na estrada grande… veio uma sensação de que estava sendo seguido. Olhei em volta e não havia ninguém. Então reparei em três pinheiros grossos e frondosos. Com cuidado olhei bem e notei que ali havia franco-atiradores alemães. Quem quer que saísse da floresta, eles “liquidavam”. Mas um menino na borda da floresta, e ainda por cima com um saquinho, não tiveram coragem de tocar.
Voltei para o destacamento e comuniquei ao comandante que havia atiradores alemães nos pinheiros. À noite, nós os pegamos sem um único tiro e levamos vivos para o destacamento. Essa foi minha primeira missão de reconhecimento…
No fim de 1943… Na aldeia de Starie Tchelnichki, da região de Bechenkovski, os ss me pegaram… Batiam com a vareta da espingarda. Chutavam com botas de chapas de ferro. Botas de pedra… Depois da tortura, me arrastaram para a rua e jogaram água em mim. Era inverno, fiquei coberto por uma crosta de gelo e sangue. Não entendi o que era a batida que escutei em cima de mim. Estavam armando uma forca. Eu a vi quando me levantaram e puseram no cepo. A última coisa de que lembro? Do cheiro de madeira fresca… Um cheiro vivo…
O nó da forca se apertou, mas tiveram tempo de tirar… Os partisans estavam fazendo uma emboscada. Quando minha consciência voltou, reconheci nosso médico. “Mais dois segundos e pronto, não teria te salvado”, disse ele. “Que sorte você tem de estar vivo, meu filho.”
Me levaram nos braços para o destacamento, tudo em mim estava quebrado, dos calcanhares ao cocuruto. Sentia tanta dor que pensava: Será que vou crescer?
“Deus estava vendo aquilo?
E o que ele achava…?”
Iúra Karpóvitch, 8 anos.
Hoje: motorista
Vi o que não deve ser visto… O que o ser humano não deve ver. E eu era pequeno…
Vi um soldado correr e parecer tropeçar. Cai. Arranha a terra por muito tempo, a abraça…
Vi fazerem nossos prisioneiros de guerra cruzarem a aldeia. Em longas fileiras. Com capotes rasgados e queimados. Nos lugares onde eles ficavam à noite, a casca das árvores aparecia roída. Em vez de comida, jogavam um cavalo doente para eles. Eles o dilaceravam.
Vi um trem alemão que descarrilou à noite e pegou fogo, e de manhã puseram todos os que trabalhavam na ferrovia sobre os trilhos e passaram uma locomotiva por cima deles.
Vi atrelarem pessoas a uma charrete. Elas tinham estrelas amarelas nas costas. Eram açoitadas com chicotes. Os alemães passeavam alegremente.
Vi como tiravam crianças dos braços da mãe a golpes de baioneta. E jogavam no fogo. No poço… Mas não chegou a minha vez e a de minha mãe.
Vi chorar o cachorro do vizinho. Estava sentado sobre as cinzas da khata. Sozinho. Ele tinha os olhos de um homem velho…
E eu era pequeno…
Cresci com isso… Cresci sombrio e desconfiado, tenho uma personalidade pesada. Quando alguém chora, não fico com pena, ao contrário, acho mais fácil, porque eu mesmo não sei chorar. Me casei duas vezes, e nas duas minhas esposas foram embora, ninguém aguentou muito tempo. É difícil me amar. Eu sei… Eu mesmo sei…
Muitos anos se passaram… Agora quero perguntar: Deus estava vendo aquilo? E o que ele achava…?
“Quem chorar vai levar um tiro…”
Vera Jdan, 14 anos.
Hoje: ordenhadora
Tenho medo de homens… Tenho isso desde a guerra…
Nos pegaram com as submetralhadoras e nos levaram, levaram para a floresta. Acharam uma clareira. “Não”, o alemão balançou a cabeça. “Aqui não…” Levaram adiante. Os politsai diziam: “É um luxo deixar uns bandidos partisans como vocês num lugar tão bonito. Vamos deixar vocês na sujeira.”
Escolheram o lugar mais asqueroso, sempre havia água parada ali. Deram pás para meu pai e para meu irmão cavarem uma vala. E puseram eu e minha mãe debaixo de uma árvore, olhando. Olhávamos como cavavam uma vala, meu irmão cavou pela última vez: “Ê, Verka!…” Tinha 16 anos… Dezesseis… Só isso…
Eu e mamãe vimos como eles foram fuzilados… Nos proibiram de desviar os olhos ou de fechá-los. Os politsai ficavam vigiando… Meu irmão não caiu na vala, ele se dobrou por causa da bala e deu um passo para a frente, ficou sentado perto da vala. Empurraram-no com as botas para dentro da vala, para a sujeira. E o que era mais terrível não era que haviam atirado neles, mas que eles tinham sido deixados naquela lama pegajosa. Na água. Não nos deixaram chorar, nos fizeram ir para a aldeia. Nem jogaram terra por cima.
Eu e mamãe choramos por dois dias. Chorávamos baixinho, em casa. No terceiro dia veio aquele mesmo alemão e dois politsai: “Preparem-se para enterrar os seus bandidos.” Fomos para o mesmo lugar, eles estavam boiando na vala; aquilo era um poço, e não uma sepultura. Pegamos nossas pás, cobrimos a vala com terra e choramos. E eles diziam: “Quem chorar vai levar um tiro… Sorriam.” Eles nos obrigaram a sorrir. Eu me curvei, um deles se aproximou e espiou meu rosto para ver: Eu estava sorrindo ou chorando?
Estavam de pé… Todos homens jovens, bonitos… Sorriam… Eu já nem estava com medo dos mortos, mas dos vivos. Desde aquela época tenho medo de homens jovens…
Não me casei. Não conheci o amor. Tinha medo: vai que dou à luz um menino.
“Cachorro, querido, perdão… cachorro, querido, perdão…”
Galina Fírsova, 10 anos.
Hoje: aposentada
Eu tinha um sonho: pegar um pardal e comer…
Era raro, mas às vezes apareciam passarinhos na cidade. Mesmo na primavera todos olhavam para eles e só pensavam numa coisa, no mesmo que eu. No mesmo… Ninguém tinha forças para se distrair da ideia de comida. Por causa da fome eu sentia um frio permanente dentro de mim, um frio interno terrível. Inclusive em dias de sol. Não importava o que eu vestisse, sentia frio, era impossível me aquecer.
Queria muito viver…
Conto sobre Leningrado, onde morávamos na época. Sobre o cerco de Leningrado. Estavam nos matando de fome, estavam matando havia muito tempo. Novecentos dias de cerco… Novecentos… Quando um dia parecia uma eternidade. Você não imagina como parece longo um dia para uma pessoa com fome. Uma hora, um minuto… Você passa muito tempo esperando o almoço. Depois, o jantar. A ração do cerco chegou a 125 gramas de pão por dia. Isso para os que não trabalhavam. No cartão de dependente… Escorria água desse pão… Era preciso dividi-lo em três partes: café da manhã, almoço e jantar. Só bebíamos água quente. Água quente pura.
Na escuridão… Desde as seis da manhã, no inverno (lembro acima de tudo do inverno), eu ia para a fila da padaria. Passava horas de pé. Longas horas. Até chegar minha vez, a rua já estava escura de novo. A vela ardia, e o vendedor cortava esses pedacinhos. As pessoas, de pé, o acompanhavam. Cada movimento… Com olhos ardentes… enlouquecidos… E tudo isso em silêncio.
Os bondes não andavam. Não havia água, não havia aquecimento, não havia eletricidade. Mas o pior de tudo era a fome. Vi uma pessoa mastigando botões. Botões pequenos e grandes. As pessoas enlouqueciam de fome…
Houve um momento em que parei de escutar. Na época comemos um gato… Vou contar como o comemos. Depois eu fiquei cega… Nos trouxeram um cachorro. Isso me salvou.
Não vou lembrar… Não lembro quando a ideia de que se pode comer seu gato ou seu cachorro ficou normal. Comum. Entrou para o cotidiano. Não percebi esse momento. Depois de pombas e andorinhas, começaram a desaparecer gatos e cachorros na cidade. Não tínhamos nenhum animal, não os levávamos para casa porque mamãe considerava que é uma responsabilidade muito grande adotar um cachorro, ainda mais um cachorro grande. Mas a amiga da mamãe não conseguia comer sozinha o gato dela e o trouxe para nós. E nós comemos. E eu voltei a escutar. Minha audição havia desaparecido de repente, de manhã eu ainda escutava, mas à noite mamãe falou algo comigo e eu não respondia.
Passou um tempo… E lá estávamos nós, morrendo de novo… A amiga da mamãe trouxe o cachorro dela para a gente. E nós também o comemos. Se não fosse o cachorro, não teríamos sobrevivido. Claro, não teríamos sobrevivido. Isso é evidente. Já tínhamos começado a inchar de fome. Minha irmã não queria se levantar de manhã. O cachorro era grande e carinhoso. Mamãe passou dois dias sem conseguir… Como se decidir? No terceiro dia ela amarrou o cachorro ao aquecedor da cozinha e nos expulsou para a rua…
Lembro-me daquelas almôndegas… Lembro…
Queria muito viver…
Nos reuníamos sempre junto à foto do papai. Papai estava no front. Raramente chegavam cartas dele. “Minhas meninas…”, ele nos escrevia. Respondíamos, mas tentávamos não entristecê-lo.
Mamãe guardava alguns pedacinhos de açúcar. Um saquinho de papel pequeno. Era nossa reserva de ouro. Uma vez… Não aguentei, eu sabia onde estava o açúcar, subi e peguei um pedacinho. Alguns dias depois peguei mais um… Depois… Passou-se um pouco de tempo – de novo… Logo não sobrou nada no saquinho da mamãe. O saquinho estava vazio…
Mamãe ficou doente… Precisava de glicose. Açúcar… Ela já não conseguia nem se levantar… No conselho familiar decidimos usar o precioso saquinho. Nosso tesouro! Ele estava guardado para um momento como esse! Mamãe com certeza se recuperaria. Minha irmã mais velha começou a procurar, mas não havia açúcar. Reviramos a casa toda. Eu procurava junto com todos.
À noite confessei…
Minha irmã me bateu. Mordeu. Arranhou. E eu pedia para ela: “Me mate! Mate! Como vou viver agora?!” Eu queria morrer.
Contei para você alguns dias. Mas foram novecentos. Novecentos dias assim…
Diante dos meus olhos, na feira, uma menina roubou o pão de uma mulher. Uma menina pequena… Alcançaram-na e a derrubaram na terra. Começaram a bater… Bateram terrivelmente. Uma surra mortal. Mas ela se apressou em terminar de comer, em devorar o pão. Em devorar antes que a matassem.
Novecentos dias assim…
Nosso avô ficou tão fraco que uma vez caiu na rua. Ele já estava se despedindo da vida. Um trabalhador estava passando, o cartão de racionamento dos trabalhadores era melhor, não muito, mas melhor… Mesmo assim… E então esse trabalhador parou e deu sua ração, óleo de girassol, na boca do vovô. Vovô chegou em casa, nos contou e chorou: “Não sei nem o nome dele!”
Novecentos…
As pessoas se deslocavam pela cidade lentamente, como sombras. Como num sonho… Um sonho profundo… Digo, você via aquilo, mas achava que estava sonhando. Aqueles movimentos lentos… flutuantes… Como se a pessoa não estivesse andando pela terra, mas sob a água…
A voz mudava por causa da fome. Ou sumia totalmente. Não se podia definir pela voz: é um homem ou uma mulher? Pela roupa também não era possível, todos estavam enrolados nuns trapos. Nosso café da manhã… Nosso café da manhã eram pedaços de papel de parede, papel de parede velho, mas que ainda tinha cola. Cola de farinha. Esse papel de parede… e água fervente…
Novecentos dias…
Estava vindo da padaria… Tinha recebido minha ração diária. Aquelas migalhas, aqueles gramas lamentáveis… Um cachorro veio correndo ao meu encontro. Me alcançou e cheirou: sentia o cheiro de pão.
Eu entendi que era nossa sorte. Aquele cachorro… Era nossa salvação! Levei o cachorro para casa…
Dei um pedacinho de pão e ele veio atrás de mim. Ao lado de casa ele mordiscou mais um pedacinho, deu uma lambida na minha mão. Passamos pela portaria… Mas ia subindo pelos degrauzinhos a contragosto, parava em cada andar. Eu entreguei a ele todo nosso pão… Pedacinho por pedacinho… E assim fomos até o 4º andar, mas nosso apartamento era no 5º. Ali ele empacou e não andava mais. Ficava olhando para mim… Como se estivesse sentindo algo. Entendendo. Eu o abracei: “Cachorro, querido, perdão… Cachorro, querido, perdão…” Pedia a ele, suplicava. E ele foi.
Queria muito viver…
Escutamos… Comunicaram no rádio… “Cerco rompido! Cerco rompido!” Não havia gente mais feliz do que nós. Impossível estar mais feliz. Havíamos resistido! O cerco tinha sido rompido…
Nossos soldados estavam andando pelas nossas ruas. Corri até eles… Me faltavam forças para abraçar.
Em Leningrado há muitos monumentos, mas falta um que deveria existir. Esqueceram dele. É o monumento ao cachorro do cerco.
Cachorro, querido, perdão…
“Mas ela começou a gritar: ‘Não é minha filha! Não é minha-a-a…’”
Faína Liutskó, 15 anos.
Hoje: funcionária de um cinema
Todo dia eu me lembro, mas vou vivendo… Como vivo? Me explique…
Lembro que todos os soldados do destacamento punitivo se vestiam de preto, de preto… Com quepes altos… Até os cachorros deles eram pretos. Brilhavam.
Nós nos apertávamos contra nossas mães… Eles não matavam todos, não matavam toda a aldeia. Pegaram os que estavam à direita. Do lado direito. E eu e minha mãe estávamos ali… Nos dividiram: as crianças separadas dos adultos. Entendemos que naquela hora iam fuzilar os adultos e nos deixar. Minha mãe estava ali… Mas eu não queria viver sem minha mãe. Pedia por ela e chorava. De alguma forma me deixaram ir…
Mas ela, quando viu… Começou a gritar:
– Não é minha filha!
– Mamãe! Ma…
– Não é minha filha! Não é minha filha! Não é minha-a-a…
– Ma-a-amãe!
Os olhos dela não estavam cheios de lágrimas, mas de sangue.
Os olhos cheios de sangue…
– Não é minha filha!
Me arrastaram para algum outro lugar… E eu vi como primeiro atiravam nas crianças. Atiravam e ficavam olhando os pais sofrerem. Fuzilaram minhas duas irmãs e meus dois irmãos. Depois que mataram as crianças, eles começaram a matar os pais. Eu já não vi mais minha mãe… Talvez ela tenha caído…
Uma mulher estava de pé, segurava uma criança de peito nos braços que tomava água numa mamadeira. Eles atiraram primeiro na mamadeira, depois na criança… E depois mataram a mãe…
Eu me surpreendo, como vivo depois disso? Sobrevivi quando criança… Mas como eu vivo adulta? Já sou adulta há muito tempo…
O trecho é parte do livro As Últimas Testemunhas – Cem Histórias Não Infantis, que a Companhia das Letras lança em setembro.
[1] Lago artificial de Minsk.
[2] Tipo de gorro de pele com proteção para as orelhas.