IMAGEM: XILOPRETURA
Quando estranhos me saúdam teu espírito faz uma reverência cintilando de orgulho
Audre Lorde | Edição 168, Setembro 2020
DA CASA DE IEMANJÁ
Minha mãe tinha duas caras e uma frigideira
na qual ela preparava suas filhas
para serem meninas
antes de cozinhar nosso jantar.
Minha mãe tinha duas caras
e uma panela quebrada
onde ela escondia uma filha perfeita
que não era eu
eu sou o sol e a lua e eternamente faminta
pelos olhos dela.
Carrego duas mulheres nas minhas costas
uma retinta e voluptuosa e escondida
nos desejos de marfim da outra
mãe
pálida como uma bruxa
porém constante e familiar
servindo-me pão e terror
no meu sono
seus seios são âncoras imensas excitantes
na tempestade à meia-noite.
Tudo isso tinha sido
antes
na cama da minha mãe
o tempo não faz sentido
eu não tenho irmãos
e minhas irmãs são cruéis.
Mãe eu preciso
mãe eu preciso
mãe eu preciso da sua pretitude agora
como a terra precisa da chuva de agosto.
Eu sou
o sol e a lua e eternamente faminta
a lâmina afiada
onde o dia e a noite devem se encontrar
e não ser
um.
FROM THE HOUSE OF YEMANJA
My mother had two faces and a frying pot
where she cooked up her daughters
into girls
before she fixed our dinner.
My mother had two faces
and a broken pot
where she hid out a perfect daughter
who was not me
I am the sun and moon and forever hungry
for her eyes.
I bear two women upon my back
one dark and rich and hidden
in the ivory hungers of the other
mother
pale as a witch
yet steady and familiar
brings me bread and terror
in my sleep
her breasts are huge exciting anchors
in the midnight storm.
All this has been
before
in my mother’s bed
time has no sense
I have no brothers
and my sisters are cruel.
Mother I need
mother I need
mother I need your blackness now
as the august earth needs rain.
I am
the sun and moon and forever hungry
the sharpened edge
where day and night shall meet
and not be
one.
MULHER NEGRA MÃE
Não te lembro macia
mas pelo teu amor pesado
eu me tornei
uma imagem da tua carne que já foi delicada
partida em esperas traiçoeiras.
Quando chegam estranhos e me saúdam
teu espírito envelhecido faz uma reverência
cintilando de orgulho
mas você já guardou esse segredo
no centro das fúrias
me pendurando
com seios vastos e cabelo áspero
com sua própria carne cindida
e olhos fundos de dor
enterrados em mitos de menor valia.
Mas eu descasquei tua raiva
até o cerne do amor
e olha, mãe
Eu Sou
um templo escuro onde teu verdadeiro espírito se eleva
belo
e duro como castanha
pilar contra teu pesadelo de fraqueza
e se meus olhos ocultam
um esquadrão de rebeliões conflitantes
eu aprendi com você
a me definir
por suas negações.
BLACK MOTHER WOMAN
I cannot recall you gentle
yet through your heavy love
I have become
an image of your once delicate flesh
split with deceitful longings.
When strangers come and compliment me
your aged spirit takes a bow
jingling with pride
but once you hid that secret
in the center of furies
hanging me with deep breasts and wiry hair
with your own split flesh
and long suffering eyes
buried in myths of little worth.
But I have peeled away your anger
down to the core of love
and look mother
I Am
a dark temple where your true spirit rises
beautiful
and tough as chestnut
stanchion against your nightmare of weakness
and if my eyes conceal
a squadron of conflicting rebellions
I learned from you
to define myself
through your denials.
IRMÃ OUTSIDER
Nós nascemos num tempo pobre
nunca tocando
a fome uma da outra
nunca
partilhando nossas cascas
por medo
do pão transformado em inimigo.
Agora criamos nossos filhos
para respeitarem a si mesmos
assim como uns aos outros.
Agora você tornou a solidão
sagrada e útil
e não mais necessária
agora
sua luz brilha intensamente
mas quero que você
saiba
sua escuridão também
é fértil
e supera o medo.
SISTER OUTSIDER
We were born in a poor time
never touching
each other’s hunger
never
sharing our crusts
in fear
the bread became enemy.
Now we raise our children
to respect themselves
as well as each other.
Now you have made loneliness
holy and useful
and no longer needed
now
your light shines very brightly
but I want you
to know
your darkness also
rich
and beyond fear.
DAOMÉ
“apesar do calor do fogo/as pinças podem extraí-lo”
Foi em Abomé que eu senti
todo o sangue das guerras do meu pai
e onde encontrei minha mãe
Seboulisa
de pé com as palmas das mãos abertas nos quadris
um seio devorado pelos vermes da mágoa
pedras mágicas repousando nos seus dedos
secos como uma tosse.
No quintal dos artesãos que trabalham o latão
Quatro mulheres tingem tecidos juntas
Fazendo graça do ferro latejante de Exu
mantendo-se ereto e ardentemente familiar
no quintal delas
mudo como um porco-espinho numa floresta de chumbo
no pátio das tecelãs
outros irmãos e sobrinhos
estão costurando belas tapeçarias
em histórias de sangue.
Trovão é uma mulher de cabelo trançado
interpretando o ifá de Xangô
adormecida entre víboras sagradas
que não sabem ler
nem comer as oferendas rituais
do altar.
Minha garganta na toca da pantera
não resiste.
Carregando dois tambores na minha cabeça eu falo
qualquer idioma necessário
para afiar as lâminas da minha língua
a serpente está consciente embora durma
embaixo do meu sangue
por eu ser uma mulher independente
do que você pensa de mim
vou trançar meus cabelos
mesmo
nas épocas de chuva.
DAHOMEY
“in spite of the fire’s heat/the tongs can fetch it”
It was in Abomey that I felt
the full blood of my fathers’ wars
and where I found my mother
Seboulisa
standing with outstretched palms hip high
one breast eaten away by worms of sorrow
magic stones resting upon her fingers
dry as a cough.
In the dooryard of the brass workers
four women joined together dying cloth
mock Eshu’s iron quiver
standing erect and flamingly familiar
in their dooryard
mute as a porcupine in a forest of lead
In the courtyard of the cloth workers
other brothers and nephews
are stitching bright tapestries
into tales of blood.
Thunder is a woman with braided hair
spelling the fas of Shango
asleep between sacred pythons
that cannot read
nor eat the ritual offerings
of the Asein.
My throat in the panther’s lair
is unresisting.
Bearing two drums on my head I speak
whatever language is needed
to sharpen the knives of my tongue
the snake is aware although sleeping
under my blood
since I am a woman whether or not
you are against me
I will braid my hair
even
in the seasons of rain.
Os poemas Da Casa de Iemanjá, Irmã Outsider e Daomé foram traduzidos por Stephanie Borges e fazem parte do livro Unicórnia Preta, a ser lançado pela editora Relicário.
O poema Mulher Negra Mãe foi traduzido por Tatiana Nascimento e Valéria Lima e faz parte do livro Entre Nós Mesmas, a ser lançado pela editora Bazar do Tempo.