Detalhe da obra O sopro do Maliri, do artista e ativista da causa indígena Denilson Baniwa: envolvimento progressivo com o ambientalismo CRÉDITO: O SOPRO DO MALIRI_DENILSON BANIWA_2021
Quanto mais vida, melhor
O legado de Wilson e Lovejoy
Bernardo Esteves | Edição 185, Fevereiro 2022
As mortes de Thomas Lovejoy e Edward Wilson, com um dia de diferença, reduziram muito e abruptamente a diversidade de inteligência sobre o planeta. Lovejoy morreu no dia 25 de dezembro passado, vítima de um tumor no pâncreas, na Virgínia. No dia seguinte, Wilson morreu em Massachusetts de causa não divulgada. Lovejoy nasceu em Nova York e morreu aos 80 anos. Wilson, nascido no Alabama, estava com 92 anos. Ambos tiveram filhos. Ambos dedicaram suas carreiras ao estudo da vida na Terra. Ambos deixaram um legado especialmente relevante para um planeta em destruição: a ideia de que quanto mais variedade houver, quanto mais diversidade, mais biodiversidade, tanto melhor.
Ao escrever o prefácio de um livro de dois colegas em 1980, Lovejoy introduziu um conceito novo – era a “diversidade biológica”. O termo acabou se popularizando depois que foi encurtado para “biodiversidade” e passou a ser disseminado por autores como Wilson, que, em 1992, doze anos depois da introdução do novo conceito, escreveu o livro Diversidade da Vida. A diversidade, no caso, deve ser entendida em vários níveis: não só no número de espécies, mas também na variedade de genes em indivíduos de uma mesma espécie ou de funções ecológicas dentro de um ecossistema.
Hoje, parece um conceito óbvio, mas antes não era assim. Em 1960, Wilson fez estudos de campo em ilhas ao lado de seu colega Robert MacArthur (1930-72). Os dois constataram que, quanto menor fosse a área de uma determinada ilha, menor seria o número de espécies que ela poderia abrigar e maior o risco de extinção das formas de vida ali existentes. A conclusão é válida também para outros ecossistemas isolados e está na base da chamada biogeografia de ilhas, disciplina criada pela dupla.
“Sistemas mais diversos funcionam melhor, pois têm mais estabilidade e são mais resilientes”, explica a ecóloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB). Eles operam à semelhança de uma carteira de investimentos financeiros, diz ela. “Se você tiver aplicações diferentes e houver flutuações em algumas, as outras vão segurar a estabilidade do conjunto.” Da mesma forma, a diversidade biológica pode garantir a sobrevivência de um ecossistema no caso de perturbações ambientais.
Thomas Eugene Lovejoy dedicou sua carreira ao estudo da Amazônia, onde colocou os pés pela primeira vez em 1965, quando estava fazendo doutorado sobre as aves do bioma. Ali, ele ajudou a implantar o mais longevo experimento já feito em florestas tropicais, iniciado em 1979 e ainda em curso. Tocado em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o projeto tem por objetivo avaliar o efeito da degradação florestal sobre a biodiversidade. As observações são feitas em onze fragmentos florestais situados cerca de 80 km ao Norte de Manaus. Com tamanho de 1 a 100 hectares, eles são cercados por pastagens ou áreas em que a mata está se recompondo lentamente depois de ter sido derrubada.
Centenas de artigos científicos, teses e dissertações já foram publicados a partir das mais de quatro décadas de observações feitas nesse experimento. O trabalho ajudou a resolver uma questão que intrigava os ambientalistas. Eles queriam saber sobre a melhor estratégia a se adotar para a criação de unidades de conservação: criar uma única área contínua ou várias reservas de menor tamanho?
O estudo dos fragmentos amazônicos mostrou que certas espécies de sapos, roedores e borboletas prosperavam mesmo nos trechos menores de floresta. Mas as aves e os mamíferos que precisam de territórios mais amplos sofrem muito com a fragmentação. Nos trechos com 100 hectares, metade das espécies de aves desaparece depois de quinze anos, conforme mostrou um artigo científico de 2003 – aquele que Lovejoy considerava o mais valioso dentre as centenas que publicou ao longo de mais de meio século.
O estudo influenciou o desenho das unidades de conservação criadas na Amazônia. À frente da diretoria de parques nacionais do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), incumbido então de atribuições que hoje cabem ao Ibama e ao ICMBio, a engenheira agrônoma e ambientalista Maria Tereza Jorge Pádua implantou algumas das primeiras áreas protegidas na Amazônia entre 1968 e 1982, depois de aconselhar-se com vários cientistas, Lovejoy entre eles. “Não deveríamos criar unidades de conservação com um tamanho mínimo que não conseguisse proteger os ecossistemas ou as espécies ameaçadas de extinção”, afirma.
Edward Osborne Wilson era frequentemente chamado de “o maior biólogo vivo”. Ele próprio preferia se enxergar como um naturalista, conforme se definiu na autobiografia que lançou em 1994. Se inscrevia na linhagem de grandes pensadores iniciada pelo próprio Charles Darwin no século XIX e ajudou a dar forma às ciências da vida tal como as conhecemos hoje. “Wilson estava presente em todos os desenvolvimentos teóricos importantes que aconteceram na biologia evolutiva e na ecologia nos anos 1950 e 1960”, diz o ecólogo José Alexandre Diniz Filho, da Universidade Federal de Goiás.
Era um estudioso de formigas, ou mirmecólogo. Especializado na classificação e sistematização desses insetos, descobriu e descreveu centenas de espécies e lançou em 1990 um livro-texto fundamental para sua disciplina, que lhe valeu um dos dois prêmios Pulitzer que ganhou.
O trabalho com esses insetos despertou o interesse de Wilson para o estudo do comportamento social em outras espécies e levou-o a formular uma teoria geral do comportamento animal que destacava seu caráter hereditário. O trabalho foi lançado em 1975 no livro Sociobiology: The New Synthesis (Sociobiologia: a nova síntese), que fundou a disciplina de mesmo nome. Mas o trabalho foi criticado por pesquisadores que viram naquelas ideias um determinismo genético que poderia ser usado para legitimar o machismo, o racismo ou a eugenia.
Para Diniz Filho, a controvérsia nasce de uma leitura equivocada das propostas de Wilson. “Ter predisposição para certas coisas não significa que aquilo está determinado e imutável, e nem que o ambiente não interfira. Isso se aplica para qualquer característica que tenha uma base genética, seja comportamental, morfológica ou fisiológica”, diz o ecólogo, que considera Sociobiology um dos livros fundamentais que fizeram a síntese da teoria da evolução no século passado.
Uma consequência quase incontornável das descobertas que fizeram como cientistas, Wilson e Lovejoy tiveram um envolvimento progressivo com o ambientalismo ao longo das suas carreiras. Nos últimos anos de vida, Wilson estava empenhado em defender a proposta de que metade da área do planeta deveria ser protegida em áreas de conservação, uma ideia que defendeu em seu livro Da Terra Metade: O Nosso Planeta Luta pela Vida, publicado em 2016.
Lovejoy, por sua vez, seguia engajado na luta para diminuir o desmatamento na Amazônia. Num artigo de 2019, assinado com o climatologista brasileiro Carlos Nobre, ele notou que o bioma estava se aproximando do ponto a partir do qual não conseguiria mais produzir as chuvas das quais dependem não só a própria floresta, mas também o agronegócio no centro-sul do país. Escreveram o seguinte: “Juntos, os povos e líderes dos países amazônicos têm o poder, a ciência e as ferramentas para evitar um desastre ambiental em escala continental e, de fato, global.”
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