CRÉDITO: ALLAN SIEBER_2022
Quatro funerais e um casamento
E, ainda, o descompasso entre o que dizem as pesquisas eleitorais e a sensação térmica no país
Fernando de Barros e Silva | Edição 189, Junho 2022
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a socióloga Rosângela Silva se casaram no mês das noivas, em São Paulo, o que serviu de ocasião para que uma legião de fariseus viesse destilar demagogia barata a respeito do preço do espumante servido na cerimônia. Em termos políticos, no entanto, o casamento que importou não foi esse com Janja, de que tanto se falou, mas o que havia sido celebrado onze dias antes entre Lula e Geraldo Alckmin.
Maio também foi o mês dos funerais. Depois de Sergio Moro, que continua morrendo um pouco a cada dia, em intermináveis prestações, foi a vez de João Doria Jr. É verdade que o tucano já respirava por aparelhos na corrida eleitoral há muito tempo. A rigor, sua candidatura, da forma como se impôs, por meio de prévias cercadas de acusações e trapaças de lado a lado, já veio ao mundo natimorta. O presidenciável João Doria nunca se materializou para além das reuniões de pauta dos grandes jornais. Ainda assim, a crônica de sua morte anunciada – para abusar do clichê – espanta pela velocidade e pelo espalhafato com que se desenrolou.
Os tucanos não terão candidato à Presidência da República pela primeira vez desde a fundação do partido. Em oito disputas, o PSDB elegeu o presidente do país em duas ocasiões e chegou ao segundo turno em outras quatro. Era protagonista da política nacional desde 1994 até pelo menos 2018, quando o tsunami da extrema direita mudou a feição do Brasil. Na sua estreia, em 1989, o partido não foi ao segundo turno, mas o então candidato, Mário Covas, que depois seria governador de São Paulo por dois mandatos, levou os tucanos a apoiar Lula contra Fernando Collor.
Não é o caso de estender demais o obituário desse defunto ilustre. Basta dizer que neste ano, quando a democracia se vê na linha de tiro do presidente da República, o PSDB muito provavelmente não saberá escolher um lado. A imagem do partido dividido, vivendo uma crise de identidade, parece muito branda para descrever o momento atual. O que se vê hoje sugere mais uma guerra entre facções de coxinhas disputando territórios no Tucanistão. Imagine:
O grupo de Aecinho da Mineira invadiu nessa madrugada o Morro da Massa Cheirosa. Segundo informações não confirmadas, o líder do tráfico de cashmere da comunidade, conhecido como Gola Rulê, teria sido assassinado numa emboscada. Visto durante a invasão, o braço direito de Mineira, de codinome Gaúcho, jurou em mensagens interceptadas pela polícia não ter nenhuma relação com o incidente que teria vitimado Rulê. O número oficial de mortos ainda não foi divulgado.
Por aí vai…
E em maio, tantas vezes, morremos, diz um verso de Tarde de Maio, poema de Carlos Drummond de Andrade publicado em Claro Enigma (1951). Mais adiante, ao fazer alusão a um cortejo fúnebre, o poeta lança no ar a dúvida:
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
A eleição que se aproxima traz consigo uma interrogação da mesma natureza: iremos às urnas para celebrar ou para enterrar a democracia? Desfile carnavalesco ou préstito lutuoso? Não sabemos, mas é cada vez mais nítido que a ocasião em que fazíamos a festa se transformou num palco de guerra. Impossível responder se em outubro vamos abrir a porta da saída ou fechar definitivamente a tampa do alçapão do Brasil.
Há uma espécie de descompasso entre o que registram as pesquisas de intenção de voto e a sensação térmica do país. A razão é óbvia: o que está em questão não é apenas o resultado da eleição, mas, antes disso, a própria eleição. Qualquer prognóstico sobre o futuro político que não coloque isso no centro das atenções tende a ser fantasioso e irrelevante. Tratar o processo eleitoral como corrida de cavalos, à maneira dos cavalinhos do Fantástico, não passa de diversionismo quando o hipódromo se transformou num terreno minado.
No entanto, depois de Moro e depois de Doria, o mainstream da imprensa agora volta seus olhos para Simone Tebet, a amazona da terceira via. Lá vem ela, guerreira, valente, destemida, montada em seu cavalo e… pocotó, pocotó, pocotó, blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá. Quanta conversa fiada, quanta propaganda interessada travestida de análise séria ainda ouviremos antes da constatação óbvia de que esse alazão não passava de um pangaré vistoso?
No país real, aquele da sensação térmica, ninguém mais se ocupa seriamente da terceira via. Nas rodas de conversa que interessam, as perguntas mais comuns costumam ser duas: no caso de vitória de Lula, ele leva? Ou seja, Jair Bolsonaro aceitará o resultado da eleição? Mobilizará seu exército de civis armados, cujo tamanho e disposição real para o crime se desconhece, para tocar o terror nas ruas? E o Exército, ele próprio, como se comportará diante de uma manobra golpista do capitão? As polícias estão e estarão sob controle dos governadores em seus respectivos estados? Qual o poder de sedução que a falange do miliciano é capaz de exercer sobre as forças de segurança do país? Todas essas são, mais do que dúvidas, ameaças tangíveis.
A segunda pergunta, no rastro da anterior, é a seguinte: como seria o eventual governo Lula? Não se trata de especular apenas a respeito de quão friendly o petista poderá ser com a turma da Faria Lima, que tipo de arranjos com os donos do dinheiro tenderá a fazer. A dúvida não se restringe ao aspecto econômico. Essa talvez seja a parte menos espinhosa do drama brasileiro. Num país devastado e politicamente fraturado, mais complicado é saber qual será o grau de adesão à democracia em 2023. Como disse certa vez o cientista social Celso Rocha de Barros, em sua coluna na Folha, “não basta derrotar Bolsonaro, é preciso reorganizar uma democracia estável no Brasil. O democrata que vencer em 2022 tem que contar com uma oposição liderada por outros democratas”.
Não é esse o cenário que se vislumbra. A poucos meses da eleição, as incertezas em relação ao futuro da democracia não cansam de se renovar. Em parte, isso se deve à debilidade do próprio campo democrático, que se omitiu seguidas vezes de suas responsabilidades e ainda age como se fosse um clube do qual Lula não tem o direito de ser sócio. Todos os nomes da terceira via que ficaram pelo caminho votaram em Bolsonaro em 2018, de Luiz Henrique Mandetta a Luciano Huck, passando pelos tucanos e por Tebet, a sobrevivente. Como agirão agora, na iminência da catástrofe?
E há ainda Ciro Gomes, o candidato da via solitária, cujas energias hoje parecem voltadas para a implosão de todas as pontes possíveis com Lula e o PT. Como no jogo de War, Ciro joga para alcançar um de dois objetivos: conquistar a Presidência ou destruir o exército vermelho. O tom de sua campanha, truculento e ressentido, nivelando Lula e Bolsonaro, consegue ser mais baixo do que aquele empregado em 2014 pelo mesmo João Santana, então a serviço do PT, contra Marina Silva. Queira ou não, Ciro atua hoje como linha auxiliar do bolsonarismo. Ainda não voltou de Paris.
Isso posto, a força de Bolsonaro também reside no que ele próprio representa. Ele mostrou que é possível se viabilizar politicamente não apesar da desconstrução do país, mas por causa dela. A violência social que historicamente nos constituiu encontrou na figura do presidente a sua expressão contemporânea mais acabada. Como se faltasse um rosto político para esta sociedade forjada na brutalidade sem peias. Bolsonaro é isso: a legitimação da brutalidade – e nem precisamos recorrer aos seus aplausos à mais recente chacina no Rio de Janeiro, desta vez na Vila Cruzeiro. Com ele, não é mais preciso pagar pedágios à civilização. O intolerável deixa de ser um estigma e passa a ser acolhido como algo que nos define, parte do nosso jardim. Bolsonaro é o “E daí?” da nossa verdade tropical.
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