Quatro poemas de viagem
Julia de Souza | Edição 90, Março 2014
POEMA PARA ESGOTAR A CASA
impossível fossilizar a casa
manter os dentes sadios
contá-los um a um em sua boca
impossível conter o sorriso
mesmo sabendo que a casa
é uma outra
vontade que a casa anule
o mundo que a casa seja
o próprio mundo
que a casa seja um aquário
seja um museu
(do not disturb)
se conseguir atinar
a vastidão de seu presente
serei um recém-chegado crônico
já é impossível pensar
o mundo sem a mediação
da casa
(teria sido preciso esgotar o tema da casa)
não quero querer mas
quero de volta a impossível
casa autêntica
(a casa me dá saudade do lar)
é preciso interditar a casa
deixar que o mato a engula
cresça sem rodeios
dentro dos carros
forre a mesa de jantar esconda
a insistência dos remendos
a nossa casa castelo de cartas
ainda guarda restos de
qualquer coisa que foi embora cedo.
INVERNO
aos sábados assam
um porco em cada esquina
e lá fora todos pensam que nosotros
somos pobres
eu estava em qualquer outro lugar
menos onde pensei que estaria
you speak a very good english
disse o sri-lanko canadense manco
eu a única hóspede mulher
no hotel beira de estrada
fora as putas
dos canadenses com quem
às vezes elas se casam
e nem era temporada
anotei muitas vezes
lembrar-se de exceções e falsos
cognatos
a caminho da praia.
ESTRANGEIRO
jurou conhecer
cada lugar de
cada página da
national geographic
nem é tão frio no polo sul
no meu tempo se podia
viver acho que vim
de navio trinta dias ou
mais até o porto de
santos preciso parar e
lembrar tudo o que fiz.
por fim apontou o mar
e disse no meu tempo
tudo isso aí
era mato.
FOTOGRAFIA
os turistas não entenderam
por que aos onze anos
não quis entrar na tumba
no meio do deserto
fiquei no ônibus muito cética
aos cuidados do motorista
que riu do meu descaso
e me trouxe uma coca-cola
depois de tanta ruína
amarelo sobre amarelo
é difícil enxergar o extraordinário.
àquela altura eu não sabia
por milímetros não acertamos
nem um beijo na esfinge.