Edição de 1927 do livro O Cozinheiro Popular: a introdução do fogão a gás criou um abismo geracional, já que as mães e avós estavam mais habituadas ao fuliginoso fogão a lenha CRÉDITO: REPRODUÇÃO
Que suplício?!!
O que o caderno de receitas da minha bisavó conta sobre as mulheres da elite e as domésticas brasileiras
Pedro Meirelles | Edição 185, Fevereiro 2022
Como muitas pessoas em todo o mundo, durante a pandemia eu me vi tolhido da normalidade e enclausurado. Tentando criar alguma rotina saudável, no ir e vir do quarto para a sala, da sala para o banheiro, do banheiro para o quarto, comecei a fazer paradas cada vez mais frequentes na cozinha. Não apenas para comer, mas também para cozinhar. Parece que tanto os que já praticavam a culinária quanto os que decidiram ter um hobby novo para enfrentar a ansiedade fizeram da cozinha o principal cômodo da casa. A atração culinária nestes anos de Covid se manifestou de forma tão forte e ampla que um tuíte em espanhol proclamou: Se llama pandemia por la cantidad de gente haciendo pan.
Não foi uma opção aleatória, tampouco inédita. A crítica de culinária norte-americana M. F. K. Fisher escreveu que “nossas três necessidades vitais – comida, segurança e amor – estão de tal modo entrelaçadas que não se pode falar de uma sem falar da outra […]. Há mais que uma comunhão de corpos quando dividimos o pão e bebemos o vinho”. O alimento tem a função básica de combustível, mas a comida, produto cultural, engloba algo mais: fala ao espírito e à memória, dá conforto e (re)forma a sociedade, tanto mais em épocas de crise.
Foi durante uma dessas visitas à cozinha que, um dia, olhando para os livros de culinária na estante, reencontrei o caderno de receitas da minha bisavó paterna. Como gosto de cozinhar e sou historiador, minha avó, Maria Elisa Torelly Cruz, havia me escolhido como fiel depositário do manuscrito. Aceitei o presente com carinho, mas para mim tratava-se mais de um documento da história familiar do que de um livro cujas receitas eu realmente utilizaria. Embora guarde muitas boas lembranças das comidas da infância, nenhuma delas está relacionada a esta bisavó, com quem tive pouco contato.
Ela se chamava Mary Amaro Torelly. Nasceu em Porto Alegre, em 1913, filha de Ernestina Amaro da Silveira e do advogado Firmino da Silva Torelly. Era prima do jornalista e humorista Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly (1895-1971), que ficou conhecido com o pseudônimo Barão de Itararé. Graças ao capital econômico e social da família, minha bisavó teve a educação que se esperava de uma jovem da elite gaúcha. Cursou o tradicional Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho, administrado por irmãs franciscanas, e tal como sua mãe desde cedo frequentou os salões de chá e participou de obras de caridade.
Em 1936 casou-se com o advogado Paulo Setembrino de Carvalho Cruz (1913-85), com quem teve dois filhos, Maria Elisa, minha avó, nascida no ano seguinte, e Paulo Fernando, em 1941. Sabe-se lá por que motivo, todos na família pronunciavam seu nome como “Mêri”. Ela morreu em 1999, quando eu tinha 10 anos.
Crianças não estavam entre as suas distrações preferidas. Lembro que era uma mulher de amplo sorriso, elegante, sempre bem penteada, maquiada e enfeitada com joias. Eu me recordo de vê-la sentada no sofá da casa da minha avó, fazendo palavras cruzadas com uma grande lupa. Ou comendo bombons de cereja e garrafinhas de chocolate com recheio alcoólico, que ela nunca me oferecia. Era uma senhora gulosa, apaixonada por doces, embora devesse evitá-los por questões de saúde. Nunca a vi cozinhando.
Ela se casou sem nada saber de culinária e foi morar com a sogra, Adelina Villela de Carvalho, a “Zizi”, que cuidava da administração da casa. Quando Zizi morreu, em 1953, “o caos reinou na cozinha”, conta minha avó, que na época estava com 16 anos e teve que se matricular em uma escola de culinária para transmitir à mãe os conhecimentos de forno e fogão. Minha avó ajudou na administração do lar até se casar em 1957, quando Mary se viu novamente sozinha com suas empregadas. “Ela mesma não sabia muito, mas aprendeu a fazer uma comida excelente, porque seguiu as receitas com rigor”, conta minha avó. “Acabou se tornando uma ótima professora, muito exigente, e ensinou várias cozinheiras.”
A história da minha bisavó reflete a de muitas mulheres brasileiras oriundas de famílias abastadas. Criada para jamais colocar as mãos na massa, pois podia contar com o trabalho dos empregados, abundantes e servis no período pós-escravidão, Mary se viu um dia obrigada a mudar de rota.
Ao buscar no caderno da minha bisavó alguma receita que me inspirasse e distraísse do iminente colapso da civilização, a minha formação como historiador logo se manifestou. Comecei a tratar o manuscrito como um documento a ser analisado, pois me pareceu que era um testemunho das transformações que afetaram não apenas uma mulher, mas toda uma época.
Com 25 cm de altura e 17 cm de largura, capa dura revestida com tecido verde e bege estampado com desenhos de ramos de bambu, o caderno tem apenas a palavra “Receitas” desenhada no canto inferior direito. Dentro, estão registradas 156 receitas, todas elas escritas a mão, separadas em onze categorias, de molhos a sobremesas, sem esquecer os drinques. Os pratos doces (bolos, biscoitos, pudins, cremes e sorvetes) representam mais de 40% do total, e quase igual proporção das receitas está relacionada ao nome de alguém, como a “Torta salgada (Lelete)” e os “Pãezinhos da Elzira”, ou então a alguma marca da indústria alimentícia, como as “Rosquinhas Royal União”. Há ainda todo um capítulo com receitas copiadas do decorador e chef amador carioca Miguel de Carvalho Neto, conhecido como Miguel, o Magnífico, que teve certa proeminência no meio culinário entre os anos 1950 e 1960.
Quando minha avó me deu o caderno de presente, eu imaginava encontrar ali todo um arsenal de receitas antigas da família, algumas talvez de mais de um século. Entretanto, à medida que ia passando as páginas, percebi que se tratava de um material bem mais recente, possivelmente compilado a partir de 1957, quando Mary precisou gerenciar pessoalmente a cozinha.
As receitas citam os cubos de caldo Knorr, cuja fábrica abriu em São Paulo em 1961, e a maionese Hellmann’s, que chegou ao Brasil em 1962. Algumas também recorrem ao ketchup, do qual os cozinheiros brasileiros passaram a falar mais comumente a partir da década de 1960. Há ainda uma receita chamada “Maionese Walita”, difundida na década de 1950 pela fábrica de eletrodomésticos para ensinar as donas de casa a usarem o liquidificador. As receitas não foram datadas, mas acredito que tenham sido recolhidas até o fim da década de 1970.
Sendo uma coletânea mais recente, o caderno estava longe de fazer parte daquilo que Gilberto Freyre chamou de “maçonaria das mulheres” – a herança culinária de uma família, com receitas seculares transmitidas de mãe para filha, como um bem precioso do clã. Se não corresponde à ideia de Freyre, o caderno da minha bisavó, contudo, encaixa-se perfeitamente naquilo que Colleen Cotter chamou de livros de receitas comunitários (community cookbooks). A linguista norte-americana definiu assim estes trabalhos manuscritos, despretensiosos, feitos por donas de casa a partir de referências de seu núcleo familiar, seu bairro ou seu clube, e que de certa forma tiravam as mulheres do isolamento de suas cozinhas, inserindo-as em uma comunidade. Por isso, são mais que meros registros de receitas: constituem uma narrativa cultural, tecida por meio de alianças e conhecimentos.
No caderno de Mary esta aliança está traçada quando ela relaciona pessoas (Lelete, Elzira, Dora…) às receitas, que também indicam o crescente impacto da indústria alimentícia (como a Nestlé e a União) sobre o paladar doméstico. Cada receita, portanto, tem algo a ver com a história pessoal de Mary, mas também com a história social da alimentação no país. A “Musse de atum (Alba)”, por exemplo, oriunda da cozinha de Alba Cruz Livonius, sua cunhada, é um prato pretensamente requintado cuja receita mulheres da elite trocavam entre si e só pode ter sido desenvolvida a partir da década de 1960, pois utiliza certa dose de… ketchup.
Ao conversar com minha avó, descobri que o caderno era o documento de algo ainda mais interessante. Como minha bisavó nunca aprendeu a cozinhar de fato, precisava do caderno como um guia para comandar as cozinheiras. Por isso, nele não constam receitas de pratos do dia a dia, uma vez que estas eram já do conhecimento das empregadas. Por isso, também, minha bisavó não escreve “atum” ou “gelatina” ao citar estes ingredientes, mas “atum CPC” e “gelatina Oetker”. Não sabendo manejar a cozinha, a fidelidade às marcas era sua garantia de que as receitas sairiam sempre iguais. Nenhum prato típico gaúcho consta do caderno, mas, ao gosto da época, Mary anotou duas receitas de vatapá, uma delas sem camarão seco e com frango – prato que meu bisavô apelidou de “vatapá sintético”, para desgosto da esposa.
A história dos livros de receitas, desde o De Re Coquinaria (Sobre cozinhar), de Marcus Gavius Apicius (25 a.C.-37 d.C.), até os posts do canal digital Tastemade, poderia ser um capítulo da história da luta de classes, dos gêneros e etnias. Uma grande distância separa quem se julga qualificado a escrever e coletar receitas e quem se encontra na situação de simplesmente fazer a comida, sob as ordens de outrem. No Brasil não há como falar de receitas e de cozinha sem considerar estes dois papéis distintos: o da dona de casa, comumente branca e de posses, e o da cozinheira, em geral pobre e negra.
Minha bisavó nasceu 25 anos depois da abolição da escravatura. Em sua infância e juventude ainda perduravam noções presentes desde os primórdios da colonização, entre elas a de que o trabalho pesado era algo indigno, destinado às classes subalternas.
A cozinha não escapou desse anátema e foi, durante séculos, ocupada prioritariamente pelos cativos. Até famílias menos abastadas cuidavam de ter um escravizado para cuidar de sua alimentação, como demonstraram os historiadores Almir El-Kareh e Héctor Bruit, ao apontarem como eram frequentes nos jornais cariocas anúncios de compra e venda de cativos (de ambos os sexos) aptos ao trabalho doméstico e à culinária “trivial”. [1]
Um desses anúncios, publicado em 16 de fevereiro de 1828, no Diário do Rio de Janeiro, diz:
Na Praça da Constituição, nº 10, vende-se uma muito vistosa mucama de Nação, sabe todo o serviço de casa, faz uma camisa dando-se-lhe cortada, lava, engoma liso, cozinha, e assa, de forno, e de fogão, não tem moléstias nem vícios conhecidos.
Às sinhás e sinhazinhas não competia cuidar da cozinha, mas elas às vezes arregaçavam as mangas para fabricar doces finos que impressionassem os convivas, produzindo uma confeitaria em tudo distinta do doce de tabuleiro das cozinheiras negras, como descreveu Gilberto Freyre em seu livro Açúcar. Desenhava-se aí uma das principais dinâmicas do serviço doméstico, vigente até a atualidade: a patroa se dedicava ao “requintado”, enquanto a cativa ou, depois, a empregada, se incumbia do “básico”.
Como se sabe, o fim da escravatura não significou uma ruptura profunda nesse tipo de relações. Diversos estudos apontam que o trabalho doméstico foi um dos setores que mais absorveu a população recém-liberta: mulheres negras empregaram-se como amas-secas e de leite, engomadeiras, cozinheiras e faxineiras, enquanto os ex-cativos do sexo masculino passaram a atuar em serviços adjacentes à casa, como os de marceneiro e pedreiro, além de cuidarem da lavoura e de atividades relacionadas ao comércio.
Em 1912, um ano antes do nascimento de minha bisavó, a professora Eulália Vaz, da Escola Profissional de São Paulo, publicou A Sciencia no Lar Moderno. O livro é um dos primeiros indícios de que algo estava mudando na mentalidade brasileira a respeito da vida doméstica, o que fica claro no trecho abaixo, em que a autora convida as leitoras (mulheres da elite, às quais se dirigia a obra) a colocar de lado seus receios e adentrar o mundo da cozinha:
As senhoras, geralmente, que têm uma educação fina, de salão, casam-se e veem-se em apuros para dirigir a sua casa. Esbarram com mil dificuldades, sofrem, afligem-se por não saberem levar a efeito a parte mais interessada da casa; felizmente vão aparecendo os livros práticos e auxiliares para este labor contínuo e interminável.
Há tempos era um preconceito que os pais tinham, como digo sempre, geralmente a educação que davam às suas filhas estendia-se a proibição de irem à cozinha, privarem-nas de tratar com fâmulos. A educação de uma moça de família distinta era incompatível com o andamento geral da casa. Quantas não se viram em embaraço. Acostumadas ao elemento servil, sem prática, casavam-se e encontravam um marido amigo de gulodices, quitutes e arranjo caseiro. Que suplício?!!
Em 1923 foi aprovado pelo presidente Artur Bernardes o decreto nº 16 107, a primeira regulamentação da República sobre os serviços domésticos, aí incluídos os porteiros, jardineiros, lavadeiras etc. – todo um conjunto de atividades que não merecera atenção no Código Civil de 1916. Dentre os trabalhadores mencionados nesse decreto, estavam “os cozinheiros”, mas não as cozinheiras (é significativo que os únicos serviçais de cozinha regulamentados fossem homens, mantendo as cozinheiras na irregularidade). O artigo terceiro do decreto prescrevia que cada um desses trabalhadores teria uma carteira – um indicativo de sua situação regular e a garantia de alguma proteção legal.
Apesar de proteger muito mais o empregador do que o empregado, a nova legislação gerou uma reação negativa da parte do patronato. Nessa época começaram a aparecer na imprensa críticas à “falta de boas cozinheiras e criadas cuidadosas e constantes”, ao mesmo tempo que surgiam palavras de incentivo às donas de casa para que desenvolvessem suas habilidades culinárias. Um texto de 1924, da Vida Doméstica, a “revista do lar e dos campos”, destacava:
As condições atuais da vida são tais que algumas donas de casa quase dispensam a cozinheira, indo elas mesmo preparar os seus pastéis e cozinhá-los, quando não decidem efetuar outros serviços leves da cozinha. Preferem, muitas vezes, fazer por suas próprias mãos os pratos mais do seu agrado – especialmente aqueles que não estragam nem sujam as mãos. É notória a falta de boas cozinheiras e criadas cuidadosas e constantes. Esta falta está se verificando em toda a parte. Não admira, portanto, que as donas de casa tomem as suas providências no sentido de não sentir inteiramente a sua falta. Para a remediar, embora não exista evidentemente o desejo de dispensar as cozinheiras, muitas senhoras já se vão familiarizando com a cozinha. Foram inventados, para esbater a sua falta, alguns instrumentos de fácil manuseio e que evitam alguns trabalhos demasiadamente penosos para quem não tem o hábito da cozinha. Quase todos eles são de agradável aspecto, alguns até interessantes.
Dois processos começam a se formar. De um lado, tem-se um discurso ofensivo aos empregados, acusando-os, coletivamente, de serem falhos e mal preparados (é o surgimento da imagem da “empregada insubordinada ou insolente”) e, como solução ao impasse, a sugestão de que as donas de casa encarassem elas mesmas o serviço culinário. De outro, percebe-se o início da difusão de transformações tecnológicas na cozinha. Ambos os processos se encontrarão nas figuras da “dona de casa” e da “rainha do lar”, a mulher que domina a dinâmica familiar e os instrumentos domésticos como ninguém.
A construção da tríade mãe-esposa-administradora da casa é evidentemente parte de um movimento conservador e machista que tenta limitar os anseios de autonomia das mulheres ao mundo restrito da vida doméstica. No alvorecer dos anos 1930, as mulheres começavam a obter alguma liberdade. Desde 1932, já estavam autorizadas a votar as mulheres casadas que tivessem permissão de seus maridos, as solteiras com salário próprio e as viúvas. Ademais, mudanças no ensino vinham permitindo que elas ampliassem seus estudos, ocupando espaço em antigos redutos masculinos, como as profissões liberais. A expansão urbana, os novos meios de transporte e a crescente indústria da moda, com suas lojas especializadas, criaram outros espaços de sociabilidade, e se espalhou a prática do footing feminino pelas ruas elegantes e os cafés das grandes cidades.
Mas, tão logo a mulher começou a transpor a soleira doméstica, a reação conservadora se esforçou para puxá-la de volta para casa. A fim de incentivar o retrocesso, começaram a surgir periódicos, como a revista Vida Doméstica (1920-62), o Jornal das Moças (1914-68) e seu suplemento Jornal da Mulher (1930), publicados no Rio de Janeiro, que, apesar de voltados para o público feminino, eram em geral editados por homens e associações católicas. O teor dos artigos costumava ser bastante retrógrado, contrário, por exemplo, ao voto feminino, ao trabalho externo ao lar, ao desquite… A respeito desse período, a historiadora Luzia Margareth Rago, escreveu em Os Prazeres da Noite, livro de 1991:
Generoso, o sexo barbado disse à mulher que o seu papel era no lar, na educação dos filhos, nas carícias do esposo, no seu trono doméstico da graça, longe do mundo, das suas contingências miseráveis, das suas abominações tremendas, a cujo contato não há alma feminina que não empalideça e não estiole.
Juntamente com a imprensa, a indústria fez a sua reação conservadora (ainda que em parte também inovadora), tentando atrair a mulher que antes não cozinhava para a frente dos fogões. Se esforçou para mostrar às consumidoras que seria possível casar o melhor dos dois mundos: a cozinha podia, também, ser chique. Na Feira Internacional de Amostras de 1933, no Rio de Janeiro, o estande da Companhia do Gás exibiu uma cozinha moderna e contratou uma atriz-cozinheira para demonstrar que, com os novos eletrodomésticos, a dona de casa escaparia de ficar com a cara suja de fuligem, como diz uma reportagem da revista O Cruzeiro, de novembro daquele ano:
À vista do público, trabalhando rapidamente, a “operadora” fazia doces e biscoitos, aprontava pratos complicados, punha em funcionamento o forno, demonstrava como é possível economizar gás sem retardar o serviço da cozinha. […] E a cozinheira improvisada, com um sorriso nos lábios, explicava: – Isto que eu faço aqui com rapidez e asseio pode ser feito, com muito mais vantagem, em qualquer casa de família…
O próprio espaço físico da cozinha será posto em discussão, com os críticos modernos apontando os espaços amplos das cozinhas antigas como danosos ao bom manejo do lar, pois exigiam que se andasse “muitos quilômetros” todos os anos, ao se deslocar entre o fogão, a pia e a mesa de jantar. Em texto de 1933, autores anônimos asseguram que a dimensão ideal da cozinha é de 6,25 m², o que permite não só a disposição prática de todos os utensílios e eletrodomésticos, mas também “um espaço livre, central, para os movimentos, de 1,50 metro, ou seja, a dimensão de dois braços abertos”.
A substituição do fuliginoso fogão a lenha pelos modernos aparelhos a gás criou um abismo geracional: as mocinhas tinham pouco a aprender com a mãe ou a avó, que desconheciam o uso da nova ferramenta da cozinha. Coube à indústria e à mídia assumir o papel de professores. No Rio de Janeiro, a Sociedade Anônima do Gás, responsável pela canalização e distribuição do produto, instalou escolas – separadas – para patroas e empregadas aprenderem a manusear os aparelhos. “A dona de casa não deve acercar-se da cozinheira na qualidade de uma leiga”, ensinavam as professoras da escola em 1935.
Com a chegada da modernidade e a redução do número de empregados domésticos, a mulher deveria exercer um papel mais ativo na manutenção do próprio lar. Enquanto a cozinheira se ocupa das refeições, e a empregada, munida de um aspirador de pó (vendido no país desde a década de 1920), faz a limpeza pesada, “fica entendido que a dona de casa ajudará nos trabalhos leves, tais como arranjar flores nos vasos, cuidar das plantas que adornam o interior da casa, sacudir e fazer as camas”, dizia um texto de 1934 no Anuário das Senhoras.
Dois projetos de lei tentaram, em 1935, incluir novamente a categoria das empregadas domésticas no rol das profissões regulamentadas pela nova Constituição. Não foram aprovados pela Câmara, e as cozinheiras, camareiras e demais serventes permaneceram distantes da proteção social e trabalhista. No mesmo período, grupos católicos se mobilizaram para criar alternativas, como a Liga de Proteção ao Lar Pobre, entidade filantrópica que mantinha um registro de empregadas domésticas para encaminhá-las às casas interessadas.
Em abril daquele ano, a revista Vida Doméstica publicou um diálogo travado entre uma cozinheira e o representante da fictícia Caixa de Aposentadoria dos Domésticos. Nele, a cozinheira, empregada na casa de uma feminista, fazia uma queixa ao funcionário, exigindo um ato oficial que proibisse o termo “criada”, substituindo-o pelo mais moderno “doméstica”, para ela menos pejorativo. É evidente o tom conservador do texto, debochando das pretensões trabalhistas. Na mesma revista, números depois, foram publicados os seguintes versinhos, sem autoria: Lá em casa tem uma preta cozinheira/E que nos serve desde tenra idade,/Vive contente e é boa companheira/Até no nome ela é Felicidade… Felizes mesmo eram os patrões de Felicidade, atendidos por uma criada servil e leal. A nostalgia da senzala continuava a marcar a imaginação da elite brasileira.
Em 1936, a empregada doméstica Laudelina de Campos Melo, militante do Partido Comunista Brasileiro, fundou em Santos a Associação de Trabalhadoras Domésticas, primeiro sindicato do gênero no país. Não era mera coincidência o fato de Campos Melo também militar na Frente Negra Brasileira, movimento criado em São Paulo em 1931 para prestar assistência social, educativa e jurídica à população negra, mas extinto seis anos depois pelo Estado Novo.
Os esforços dos empregados em prol de seus direitos continuavam, enquanto a imprensa perseverava em fazer as mulheres aceitarem os novos tempos, sem mucamas nem criadas, como aconselhou a revista Cruzeiro, em 1936:
Cozinhar, dantes, era mister que as senhoras exerciam com sacrifício, e só em circunstâncias excepcionalíssimas, para salvar uma situação de aperto quando a cozinheira faltava e não havia outro remédio. Hoje, entretanto, já não sucede assim. Hoje, cozinhar já é um prazer. E como o problema da “boa cozinheira” cada dia mais e mais se agrava, a dona de casa de 1936 lhe dá a solução mais simples: dispensa-a… o que oferece a vantagem de adquirir sossego de espírito e de poder saborear os quitutes ao próprio gosto ou ao gosto do marido.
Dois anos mais tarde, o suplemento carioca Jornal da Mulher apresentou uma definição mais abrangente para o substantivo “cozinheira”:
Não queremos nos referir somente às empregadas domésticas, mas as que vão para a cozinha auxiliar os quitutes, ou exercer as funções na falta das empregadas; enfim, queremos nos referir às patroas que, também gostam, às vezes, de simular cozinheiras. Quer isso dizer que o termo é genérico e que abrange a toda aquela que quer ser mestre-cuca.
Sinal dos tempos foi também a publicação, em 1940, do mais famoso livro de receitas do país, Comer Bem, assinado com o pseudônimo Dona Benta – nome de um personagem de Monteiro Lobato. A “autora” aparece na capa como uma vovozinha gentil, segurando um bolo diante dos olhos gulosos de Pedrinho. Boa dona de casa, Dona Benta gerenciava a cozinha do Sítio do Picapau Amarelo, mas quem ia para a frente do fogão era Tia Nastácia, a empregada negra, que não teve a honra de aparecer na capa do livro. A ideia é clara: as leitoras da obra devem se identificar com Dona Benta, pois, como ela, estão destinadas ao comando, e não ao trabalho pesado das panelas, como Tia Nastácia.
Décadas depois, em 1961, no salão paroquial de uma igreja no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, ocorreu um fato histórico de grande importância: trinta mulheres de todo o país se reuniram no Primeiro Encontro Nacional de Empregadas Domésticas, promovido pela Juventude Operária Católica. O feito rendeu uma reportagem de três páginas e diversas fotos na revista Manchete, com o título Revolução da Copa e Cozinha. Abre a reportagem a fala de uma doméstica anônima, identificada apenas por “escurinha”, que diz:
É preciso abolir o elevador de serviço. Que diabo! Aos domingos, quando saímos para passear, mais arrumadinhas, não custava nada a gente usar o elevador social. As patroas deviam reconhecer que nós somos criaturas humanas, vivendo num país democrático. Ou os direitos civis variam com as classes econômicas? Será que ainda vivemos no regime da escravidão?
De certa forma, vivíamos. Levou ainda quase meio século para que os direitos das empregadas domésticas fossem finalmente reconhecidos.
Quando minha bisavó iniciou a escrita de seu caderno de receitas, esses direitos ainda não existiam. Mary não entendia das panelas, mas comandava a cozinha, fazendo do caderno o instrumento que lhe garantia o sucesso à mesa.
As verdadeiras mãos por trás das comidas eram as cozinheiras, que colocavam as receitas do caderno em prática. No caderno, elas estão identificadas como autoras de apenas 8 das 156 receitas: “Pãezinhos (Elzira)”, “Rolinhos de queijo (Elzira)”, “Empadas (Elzira)”, “Pastéis (Geny)”, “Pastel (Venina)”, “Biscoitos (Venina)”, “Sorvete de creme (Venina)” e “Biscoitos (Siá Josefa)”.
Elzira e Venina eram cozinheiras de minha bisavó. Geny, de sua cunhada Alba. E Siá Josefa, de uma prima de seu marido, Nice. Minha avó conta que Elzira chegava tarde no serviço, fumava muito, era desbocada, mas cozinhava muito bem. Era a responsável por fazer inclusive os quitutes dos chás de quinta-feira, data especial na agenda social de minha bisavó. Venina auxiliava Elzira, e quando aprendeu os segredos da cozinha tomou o lugar da colega, que foi dispensada. Infelizmente, não encontrei registros dos sobrenomes nem das idades das duas.
Mary anotou as receitas das cozinheiras sem instruções detalhadas, nem as medidas e temperaturas exatas. Algumas indicações bastavam para quem sabia cozinhar por tino e por prática. Minha bisavó provavelmente não conseguia reproduzi-las sozinha, mas sabia que seriam bem executadas por outras cozinheiras, como a receita do “Pastel (Venina)”: 1/2 copo de salmoura; 2 ovos; 2 colheres de azeite; 1 e 1/2 colher de cachaça; farinha de trigo à vontade. Deixar a massa descansar meia hora.
Tia Mary (assim batizada em homenagem à minha bisavó) ainda se lembra dos quitutes das cozinheiras. Quando peço que me conte como era o pastel de Venina, ela encontra logo duas palavras para descrevê-lo: “Era divino.”
[1] No ensaio Cozinhar e Comer, em Casa e na Rua: Culinária e Gastronomia na Corte do Império do Brasil, publicado no nº 33 da revista Estudos Históricos, de janeiro/julho de 2004.