Neder, durante o passeio de janeiro passado, quando comemorou 63 anos: “Dos meus sete irmãos, apenas três sabem da minha doença. Eu também escolhi não contar nada aos meus pais” CRÉDITO: ACERVO PESSOAL
Quero ser respeitada
A piauí acompanha a consulta em que uma paciente de esclerose lateral amiotrófica discute seu desejo de morrer
João Batista Jr. | Edição 189, Junho 2022
A bióloga Fátima Neder, de 63 anos, passou as três primeiras semanas de maio em Campinas, no interior de São Paulo, atendendo um compromisso pouco agradável: consultar seus médicos no Hospital de Clínicas da Unicamp, onde ela própria trabalhou até 1990, quando tomou a decisão de mudar-se para o Arquipélago de Fernando de Noronha. No dia 3 de maio, um dia depois de falar com o pneumologista para discutir seus problemas respiratórios, Neder dirigiu-se ao Departamento de Neurologia do hospital para a consulta mais aguardada, com o neurologista Marcondes C. França Junior e seus dois residentes. Ela ouviu um relato sobre o avanço de sua doença e reafirmou seu maior desejo: morrer logo – e com o mínimo sofrimento possível.
– Eu não ando mais, não posso fazer um café para mim, preciso de ajuda para tudo. Por que prolongar algo que sabemos onde termina? – disse ela, e completou com um apelo. – Eu quero ser ouvida e respeitada, pelo amor de Deus!
Neder está pesando 37 quilos e tem esclerose lateral amiotrófica, conhecida pela sigla ELA, uma doença degenerativa que provoca paralisia motora, chegando a dificultar, em seu auge, a alimentação e a respiração. É irreversível e incurável. O primeiro sinal apareceu em 2016. Neder já desconfiava do que se tratava, devido à sua formação em biologia, e retardou ao máximo o diagnóstico oficial, que só veio em 2019. De lá para cá, ela perdeu o movimento das pernas, passou a ter dificuldade para mexer os braços, mais o direito do que o esquerdo, e anda sempre em cadeira de rodas empurrada por alguém. Ainda se alimenta e respira sem maiores dificuldades. Sua fala está inteiramente preservada e seu raciocínio continua como sempre foi. Por isso, é com clareza e coerência que ela afirma que a vida não lhe interessa mais.
– Seja qual for a sua decisão, nós vamos te apoiar – disse o neurologista, na conversa do dia 3 de maio. – Mas sua decisão precisa ser estável e não pode ser tomada em estado de depressão.
Ao final da consulta, acompanhada pela piauí, apareceu o geriatra José Carlos Junqueira, responsável pelos cuidados paliativos do hospital, como é chamada a área da medicina que, em vez de focar apenas no prolongamento da vida, objetiva melhorar a qualidade de vida do paciente, proporcionando alívio do sofrimento. Junqueira sugeriu que os detalhes da vontade de Neder fossem discutidos em outra oportunidade e com a presença de Olívia, de 23 anos, filha única de Neder. A conversa foi marcada para a tarde de 12 de maio, quinta-feira, e aconteceu no mesmo hospital. Durou duas horas e vinte minutos.
No dia e hora marcados, Neder chegou à porta de entrada do hospital na sua cadeira, conduzida pela cuidadora Janete Maria Santos de Santana, que está com ela há quatro meses. Neder abriu uma sacola plástica com a mão esquerda, tirou um cigarro Lucky Strike Red e colocou-o na boca. Com a mesma mão, pegou o isqueiro, acendeu e deu a primeira tragada. Quando terminou de fumar, pediu à filha que colocasse o netinho Gabriel, de 8 meses, no seu colo. Com a criança aninhada em seu peito, Neder foi transportada pelos corredores do hospital até o local onde discutiriam o seu testamento vital, documento em que uma pessoa descreve os cuidados e tratamentos aos quais deseja – ou não – se submeter para prolongar sua vida.
Além do geriatra Junqueira e da intensivista Cristina Terzi, que também trabalha com cuidados paliativos, estavam presentes o gastrocirurgião Nelson Adami Andreollo e uma irmã de Neder, a psicóloga Ana Maria, que trabalha na UTI do hospital da Unicamp. Como Neder chegou a pensar em fazer uma eutanásia, ainda que o procedimento seja contrário aos valores de sua religião católica – ela é devota de São Pedro –, o geriatra fez questão de começar a conversa com um esclarecimento: “O que vamos discutir aqui hoje não é eutanásia, que a senhora já sabe que é proibida no Brasil.” Com sua voz baixa, Neder disse, com olhos marejados:
– No dia em que eu soube que não iria mais andar, decidi que também não queria mais viver. Não quero que me coloquem nenhum aparelho. Quero viver pela força da vontade de Deus.
Em seguida, detalhou seus desejos. Como a evolução da doença é inevitável, ela disse que não quer receber alimentação por sonda, nem se submeter a ventilação mecânica invasiva, como intubação, e não aceita fazer traqueostomia, procedimento que consiste na abertura de um orifício na traqueia para facilitar a respiração.
– Sou uma mulher que caminhava 10 km por dia, que escolheu viver em um paraíso chamado Fernando de Noronha. Não ter autonomia, para mim, já significa não estar mais viva.
As palavras de Neder soam pesadas para sua filha, que é contra o desejo da mãe de não fazer tudo para prolongar a vida. Olívia cursava biologia na Universidade de Pernambuco (UPE), no Recife, mas, com a pandemia do coronavírus, ela voltou para a casa da mãe, em Fernando de Noronha. Está lá desde então, agora junto com seu filho Gabriel. Ela tem visto a doença materna se agravar dia após dia. Percebe que lentamente a mãe vai perdendo a independência e seu grau de depressão se aprofunda. E Olívia oscila entre a dor de vê-la nesse estado e a raiva de conviver com o desejo de morrer da mãe. A certa altura da consulta, ela disse:
– A minha mãe é uma pessoa lúcida, estudada, inteligente. Se é uma decisão dela [não se submeter a tratamentos invasivos], eu, como filha, tenho que respeitar. Não tem como eu passar por cima disso. Mas a minha mãe tem uma assistência médica maravilhosa, tem condições financeiras, paga uma cuidadora, tem uma casa com acessibilidade.
Olívia ficou com sua voz embargada, mas prosseguiu:
– Uma pessoa que passa vinte dias sem comer, ficando apenas à base de café, água e cigarro… A minha mãe está nesse estado porque quer. Ela sabe muito bem o que é bom ou ruim. Se ela não se alimenta, se se recusa a tomar remédios e toma muito Somalium [remédio indicado para controlar a ansiedade], então…
Olívia não terminou a frase. Estava emocionada. Respirou fundo para se recompor. Na sala, todos ficaram em silêncio. Aos poucos, ela retomou seu raciocínio. Descreveu como tem sido conviver com a mãe. Além de tomar os remédios de forma irregular e não se alimentar de modo adequado, Neder sofre com oscilações de humor. Numa noite recente, revoltada com a doença, tentou se jogar da cama. Em dezembro passado, o clima ficou tão pesado que Olívia pegou o filho e passou três meses na casa de uma tia em Natal, no Rio Grande do Norte. Em março, voltou para a casa da mãe.
É difícil também para as cuidadoras, que acabam pedindo demissão. Janete de Santana, ex-gerente de um empório e moradora de Olinda, é a quinta em seis meses. Ela foi indicada por uma amiga e aceitou o emprego. Nunca tinha pisado em Fernando de Noronha. Santana também se incomoda com a desistência de Neder em viver. Diz que, em vez de ficar “na cadeira, no sofá ou na cama”, ela poderia sair. “Tem o mar, a natureza. Ela poderia sair de casa com a cadeira, mas ela não quer.”
Olívia conta que, por ser filha única, sente-se desamparada diante do desejo da mãe de morrer. “Vocês acham que eu, como filha, gosto de escutar isso? Eu acabei de lhe dar um neto e ela fala isso o tempo todo… Se ela não quer ser intubada, tudo bem. Mas, enquanto estamos nesse momento, vamos fazer com que seja gostoso.” Neder assentiu com a cabeça, indicando concordar com o que a filha dizia. Tirou a máscara 3M, enxugou as lágrimas com um lenço e tentou explicar sua situação.
Contou que, desde que recebeu o diagnóstico de ELA, foi tomada pela depressão, sentiu-se inútil e inválida. “Eu não aceito não andar, doutor”, disse ela. Sobre a tentativa de se atirar da cama, contou que os remédios para amainar dores e tirar a ansiedade têm causado desconfortos. Como às vezes sente vontade de ir ao banheiro no meio da madrugada, se irrita com sua dependência. “Tenho vergonha de incomodar as pessoas, de não poder andar, de não conseguir fazer certas coisas sozinha.” O médico explicou que o papel da cuidadora é justamente auxiliar nessa hora. Neder caiu em prantos.
Ana Maria, a irmã psicóloga, falou sobre a dor de saber que Neder prefere morrer a estar viva. Disse que nem o seu trabalho dentro de uma UTI foi capaz de prepará-la para o que está vivendo e mostrou preocupação com o que vai acontecer nos momentos finais. “Quando chegar essa hora de não querer mais ajuda nenhuma, quem está do lado vai ter força de acompanhar? Eu não teria.” Janete de Santana, a cuidadora, tomou a palavra e, muito emocionada, foi clara: “Eu, como cuidadora, não tenho condições. Tenho afeto, tenho carinho…”
As três – filha, irmã e cuidadora – tinham uma dúvida crucial. Queriam saber se, com a evolução da doença, teriam que conviver com Neder definhando por falta de alimentação e, pior ainda, sufocando sobre uma cama, incapaz de respirar. Junqueira e Terzi, os especialistas em cuidados paliativos, explicaram que isso jamais acontecerá. Um paciente em estado terminal é hospitalizado para receber os cuidados que deixam a vida seguir seu curso natural, mas evitam o sofrimento físico.
Para tranquilizá-las, Junqueira explicou que os cuidados paliativos são uma combinação entre os pedidos do paciente, expressos em seu testamento vital, e os valores humanitários da medicina. Por isso, é fundamental que os desejos do paciente estejam claros e, se possível, contem com a anuência dos parentes. Junqueira contou que já testemunhou casos, no próprio hospital da Unicamp, em que pessoas em situação semelhante à de Neder acabaram submetidas a tratamentos indesejados porque não fizeram o testamento vital. “A falta de discussão faz com que a pessoa entre numa intubação, por exemplo, sem querer, mas em uma situação que já não pode mais falar.”
Desde criança, Fatima Neder era fascinada por Fernando de Noronha, esse arquipélago formado por 21 ilhas, com 26 km2 de paisagens paradisíacas. Ela ainda se recorda do dia em que um professor de geografia no colégio de Conchas, sua cidade natal no interior de São Paulo, mostrou o mapa do Brasil, falou dos estados e de suas capitais, indicou um ponto no Oceano Atlântico e disse que ali, naquele arquipélago, não existiam cobras. Aquilo ficou na cabeça da menina. Não pelo medo dos répteis, mas porque intuiu que era um lugar surpreendente e diferente. Um dia, pensou, ia conhecer aquele lugar.
A garota morava em uma fazenda em Conchas, a uma hora e meia de carro de Campinas, e se dizia um “bicho do mato”. Sua família tinha um pequeno frigorífico e criava gado, quando a sorte bateu na porta. “Meu pai ganhou sozinho na loteria e ficou rico”, diz Neder. Terceira de oito filhos, a menina passava parte do dia pescando em lagos formados para saciar a sede dos bois e caçando rolinhas com arapucas. Quando voltava para casa com os bichos, tomava bronca dos pais preocupados com sua ausência prolongada. A paixão por animais e pela natureza a levou a fazer vestibular para biologia. Passou na Unicamp.
Seu pai alugou uma boa casa para a filha morar em Campinas. Nos fins de semana, mandava um motorista buscá-la para visitar a fazenda. Durante o curso, interessou-se pela área de patologia clínica. Formada, foi trabalhar no Laboratório Multiusuário de Microscopia Eletrônica do Hospital de Clínicas, onde fazia análise de doenças, entre elas as neurológicas. Neder gostava do trabalho, mas sofria de dores de cabeça constantes. Tomou muito remédio, fez muitos exames, mas nunca descobriu nada. Até que, em 1985, depois de cinco anos trabalhando sem férias, lembrou-se do sonho de infância. Foi até um escritório da extinta Transbrasil, importante empresa aérea da época, e perguntou ao agente de viagens:
– Tem alguma passagem para um lugar onde não tem cobra chamado Fernando de Noronha?
Neder embarcou no dia seguinte, levando apenas uma mochila. Na época, a ilha tinha apenas um hotel em atividade, o Esmeralda. Ela não havia feito reserva. Dormiu na areia das praias e nas trilhas nas montanhas. Dias depois, ligou para os pais e para a chefia da Unicamp informando que as férias se prolongariam. Ficou, ao todo, 67 dias, sempre passando as noites nas praias ou nas montanhas.
Nos dois meses em Noronha, conheceu moradores que sofriam de problemas de saúde, quase sempre ortopédicos ou cardíacos. Depois que voltou para casa, retomou o emprego no hospital e, aos poucos, começou a levar alguns dos doentes de Noronha para se tratar em Campinas. Ela própria os hospedava em seu apartamento, no bairro de Vila Pompeia. Entre 1989 e 1990, Neder esteve diversas vezes em Noronha e observou que, em todas elas, suas constantes dores de cabeça simplesmente sumiam. Quando regressava para Campinas, a dor voltava. No começo de 1990, solteira e sem filhos, finalmente tomou a decisão que vinha amadurecendo: deixou a carreira em Campinas e mudou-se para o arquipélago.
Sua maior diversão era passar horas explorando praias e montanhas. Suas trilhas preferidas eram a do Atalaia, com vistas deslumbrantes para piscinas naturais, e a do Capim Açu, cujos trechos incluem grutas, cavernas e encostas. “Então, um dia eu estava na frente do Hotel Esmeralda, que não funciona mais, quando uns turistas me perguntaram dicas sobre o que fazer. Propus que fôssemos bater perna”, conta. Ali, percebeu que o hobby poderia virar negócio. Com o tempo, Neder se tornou umas das mais conhecidas organizadoras de caminhadas pelas trilhas de Noronha. Também passou a fazer passeios de barco e tirou licença de pesca. Os amigos a apelidaram de “olho biônico”. Ela explica: “Eu era muito boa para detectar a presença de polvos, lagostas e lulas.”
Mesmo com suas atividades em Noronha, Neder continuou, de vez em quando, levando moradores do arquipélago para tratamento na Unicamp. Um deles foi seu amigo Emanuel Chagas da Costa, que tinha problemas motores nas pernas. Na consulta em Campinas, descobriu que se tratava de uma doença chamada Legg-Calvé-Perthes, quando se dá uma necrose muscular na cabeça do fêmur e, nos casos graves, pode levar à amputação da perna. Costa passou pelo implante de dois pinos no fêmur e se recuperou da cirurgia no apartamento de Neder, em Campinas. Os dois se apaixonaram, engataram um romance e tiveram Olívia. Em 2006, quando a menina tinha 7 anos, Costa faleceu de cirrose hepática. Ele e Neder já não formavam mais um casal, mas eram grandes amigos.
Neder continuou sua vida até que, em maio de 2016, aconteceu algo estranho. Quando estava indo buscar um grupo de turistas para fazer a Trilha do Atalaia, ela caiu no chão e bateu a cabeça. Sofreu um corte do lado direito, de onde saiu muito sangue. Neder não pôde fazer o passeio e foi ao único posto de saúde do arquipélago. Fez um curativo e tirou uma radiografia, que não apontou nada sério. Mas ela não esqueceu o episódio. Afinal, não havia tropeçado em nada. Simplesmente caiu no chão ao sentir uma fraqueza repentina nas pernas.
Não foi um caso isolado. Dali em diante, as quedas começaram a se tornar cada vez mais frequentes. Uma vez a cada dois meses, uma vez por mês, mais de uma vez por mês, uma vez por semana e assim por diante. “Eu trabalhei na Unicamp justamente fazendo diagnósticos de doenças como esclerose, entre elas a do tipo ELA. Sei muito bem sobre os sintomas. Passei a intuir que esse poderia ser também o meu caso. No começo, eu me negava a fazer exames porque sabia qual seria o resultado.”
No ano de 2018, Neder passou a cair todos os dias. Já não podia ir ao mercado ou à praia sozinha. O trabalho como guia ficou impraticável. Em maio de 2019, chegou a fraturar a mão esquerda após uma queda especialmente brusca. Colocou um gesso, mas as dores não cessavam. Depois de duas semanas, tomou um avião para Campinas. No hospital da Unicamp, fez um exame chamado eletroneuromiografia, capaz de avaliar a presença de lesões que afetam nervos e músculos. O paciente recebe uma série de agulhas e eletrodos, dos pés até a ponta da língua, para detectar a presença da doença e seu estágio no organismo.
O resultado saiu no mesmo dia. “Os médicos todos se juntaram para falar, mas ali na minha frente ficaram em silêncio. Como eu trabalhei anos na Unicamp, tenho grandes amigos por lá. Um deles começou a chorar. Eu pedi para me falarem logo o que era, e quando escutei saí correndo da sala e fui chorar na área externa, debaixo de uma árvore”, recorda. O tratamento foi iniciado na semana seguinte, com a ingestão de um remédio capaz de retardar os sintomas da ela. Depois de quinze dias, Neder retornou a Noronha na companhia de uma irmã.
Apesar do diagnóstico, Neder sentia-se viva e disposta. Sempre acompanhada, mergulhava no mar todos os dias, por uns trinta minutos, nas praias da Cacimba do Padre ou da Baía dos Porcos. Em questão de meses, passou a recorrer a uma bengala e, pouco depois, a um andador. Na madrugada do dia 5 de maio de 2021, dois anos depois do diagnóstico, sofreu um tombo quando tentava ir ao banheiro. Usava o andador, mas, mesmo assim, desequilibrou-se e caiu. Sua filha, que voltara para casa por causa da pandemia, ouviu os pedidos de socorro da mãe. Encontrou-a no chão e gemendo de dor, Havia quebrado o ombro esquerdo. No hospital de Noronha, colocou uma tipoia.
Quarenta dias depois, Neder voou para Campinas para ver seus médicos e fazer novos exames. Confirmou que a doença estava avançando e soube que, a partir daquele momento, não poderia mais andar. Teria que trocar o andador por uma cadeira de rodas. “Foi uma segunda sentença de morte”, diz ela. “Imagina uma mulher que escolheu viver entre o mar e o mato, que andava 10 km por dia, não poder mais ir sozinha ao banheiro. Eu pedi aos meus médicos para morrer.”
Revoltada com suas limitações, Neder começou a buscar formas de abreviar seu sofrimento. Pesquisando na internet, descobriu a advogada mineira Luciana Dadalto, autora do livro Testamento Vital, publicado pela editora Foco. Entrou em contato com um objetivo: realizar o suicídio assistido, na Suíça. Ao contrário da eutanásia, quando um profissional de saúde administra o remédio letal, no suicídio assistido o próprio paciente se aplica a medicação – por injeção ou via oral – sob supervisão médica. A Suíça permite que não residentes no país se submetam a esse processo.
Neder pretendia procurar a Dignitas, uma organização sem fins lucrativos que há 24 anos trabalha com suicídio assistido na Suíça. É uma entidade conhecida na área da saúde no Brasil. O psicanalista Contardo Calligaris chegou a assinar um contrato com a Dignitas, mas seu câncer avançou de forma tão brutal que ele acabou morrendo num leito de hospital no Brasil, em março de 2021. Luciana Dadalto conhece o trabalho da Dignitas, mas Neder acabou optando por outro caminho: em vez de suicídio assistido na Suíça, preferiu fazer um testamento vital.
Luciana Dadalto já orientou mais de duzentos testamentos vitais. “Com a Covid, mais pessoas se perguntaram o que consideram uma partida com dignidade e respeito. Esse tema passou a ser discutido mesmo por gente que não recebeu um diagnóstico ruim”, diz ela. O testamento vital pode ser feito por qualquer pessoa, mesmo por quem não está doente, e não precisa ser registrado em cartório. Mas o documento ganha maior peso quando constam assinaturas de testemunhas, sobretudo de parentes e médicos. “Como existe no Brasil um temor de que o testamento vital seja descumprido, já que não tem legislação específica sobre o assunto, muitas pessoas recorrem a testemunhas”, diz Dadalto.
Em 2012, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a normativa nº 1995/2012 para regulamentar o assunto. Diz que os médicos devem levar em consideração as vontades expressas pelo paciente e que essas mesmas vontades devem prevalecer sobre os desejos dos familiares. No ano seguinte, porém, o procurador Ailton Benedito de Souza, do Ministério Público Federal de Goiás, moveu uma ação contra o CFM para derrubar a normativa. O argumento do procurador: “Impõe riscos à segurança jurídica, alija a família de decisões que lhe são de direito e estabelece instrumento inidôneo para o registro de diretivas antecipadas de pacientes.” (Benedito de Souza, ex-assessor do procurador-geral Augusto Aras, é o mesmo que tratou a Covid com o termo xenofóbico de “vírus chinês” e defendeu o uso de cloroquina e ivermectina como tratamento precoce.)
Em fevereiro de 2014, o juiz federal Eduardo Pereira da Silva julgou que a ação de Benedito de Souza era improcedente. Diz a sentença: “E nem há que se exigir vigência temporal, já que o paciente está livre para manifestar, a qualquer tempo e por qualquer forma, entendimento diverso sobre o tipo de tratamento a que quer ou não se submeter. No que diz respeito ao alijamento da família das decisões, cabem algumas considerações. A resolução previu que a vontade do paciente deve prevalecer sobre a dos familiares. Tal previsão encontra amparo nos dispositivos legais e constitucionais.”
Ainda assim, em que pesem a resolução do CFM e a sentença da Justiça Federal, a existência do testamento vital por si só não garante seu cumprimento – é preciso que o documento chegue às mãos dos médicos. “Existem familiares que fazem o seguinte: enquanto o doente está lúcido, prometem que irão cumprir os desejos expressos no documento. Mas, quando o ente perde a lucidez, os parentes fazem o que bem entendem. Então os médicos acabam acatando com medo de serem processados pela família”, explica Dadalto.
No final da consulta do dia 12 de maio, depois de ouvir os argumentos de Neder e as ponderações dos médicos, a filha Olívia e a irmã Ana Maria concordaram com o desejo de Neder de não se submeter à intubação ou fazer traqueostomia. Se chegar o momento em que um dos procedimentos for a única alternativa para mantê-la viva, Neder poderá então seguir rumo ao fim. Hoje, ela usa um aparelho removível, chamado BiPAP, para auxiliá-la a respirar durante o sono.
Com o acordo, Neder finalmente assinou seu testamento vital no dia seguinte. Com a mão direita quase inteiramente paralisada pela doença, segurou a caneta com a esquerda e desenhou uma letra grande, indecisa, como uma criança recém-alfabetizada. Para se certificar de que o documento não será ignorado, seu testamento também foi assinado pela filha, a irmã psicóloga e três médicos.
Neder foi orientada a apresentar o documento para seu clínico geral e seu psiquiatra, em Noronha. “O documento dá uma segurança inclusive para os médicos de lá”, explicou Junqueira. No arquipélago – onde vivem pouco mais de 3,5 mil pessoas, mais os quase 9 mil turistas que visitam o lugar todos os meses – existe apenas um hospital, o São Lucas, com dez leitos. Não tem UTI. Os pacientes emergenciais são enviados ao continente e as gestantes são orientadas a partir até o sétimo mês de gravidez. O voo para o Recife, o mais rápido, dura cerca de uma hora e quinze minutos.
(Olívia deu à luz em Campinas, onde tem parentes e dispõe do apartamento da mãe. Mesmo com o avanço da esclerose, Neder acompanhou o nascimento do neto. “Quando o Gabriel chegou no apartamento, eu chorei de emoção”, lembra ela.)
Apesar das condições limitadas do hospital de Noronha, Neder não precisará ser transportada para o Recife. Na fase mais aguda, quando a respiração estiver ruim, ela precisará de morfina – comum mesmo em hospitais menores –, que pode ser administrada numa enfermaria. Neder também não vai necessitar de equipamentos sofisticados. “Os médicos de Noronha não precisarão de alta tecnologia, mas de entendimento”, diz Junqueira.
Dois dias antes de voltar para Noronha, Neder visitou seus pais. O pai tem 90 anos, a mãe tem 89. Os dois estão lúcidos. “Dos meus sete irmãos, apenas três sabem da minha doença”, diz ela. “Eu também escolhi não contar nada aos meus pais. Por estar em uma cadeira de rodas, não tem como esconder o assunto por completo. Digo que estou com problemas nas costas em razão das minhas nove hérnias de disco. Não tem por que fazê-los sofrer.”
Ao embarcar de volta para casa, Neder levou seu testamento vital e sete malas, recheadas de comida – massa, molho de tomate e até carne, muita carne. “Os alimentos na ilha custam muito caro. Então, eu sempre faço uma compra daquelas. Tenho neto em casa, ele precisa comer proteína todo dia”, diz. Ela mora num sobrado amplo, com vista para as montanhas. Todas as quartas-feiras, recebe a visita de um médico e um fisioterapeuta. Ela precisa se movimentar minimamente para evitar a formação de escaras. Sente queimação nos pés. “Parecem estar constantemente em chamas”, diz.
Mas nem tudo está resolvido. Em novembro, Neder terá de voltar a Campinas para continuar a discussão de seu testamento vital. A filha e a irmã resistem a aceitar que Neder não se submeterá à sonda de alimentação quando não conseguir mais ingerir comida sólida nem líquida. Ela quer incluir a proibição da sonda no testamento e espera que uma nova rodada de conversas resolva a questão.
Aos médicos, ela prometeu maneirar o cigarro, alimentar-se melhor e visitar a praia em sua cadeira de rodas. Em junho, mesmo de carro, vai passar na casa de seus vizinhos para pedir prendas para a Festa de São Pedro. Também quer repetir com seus amigos de Noronha o passeio realizado no dia 27 de janeiro, quando completou 63 anos. Passou o dia em alto-mar vendo os amigos pescarem e admirando a beleza do mar azul. “Eu escolhi viver em Noronha, e é lá que também quero morrer.”
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