Javier Bardem é o pai devotado que não quer morrer para cuidar dos filhos; médium, é pago para dar conforto a quem perdeu os seus ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE
Quieto apocalipse
Em Biutiful, Alejandro González Iñárritu segue nos contando histórias sobre as misérias do homem no mundo
Eduardo Escorel | Edição 52, Janeiro 2011
Habitantes da metrópole, os personagens de Biutiful são seres que perderam toda a esperança. Condenados à treva ardente, seus corpos estão degradados e a dor que sentem é profunda. Pagam qualquer fraqueza com a própria vida. Da fatalidade à qual estão condenados, nem mesmo as crianças escapam, apesar de o filme anterior de Alejandro González Iñárritu – Babel, de 2006 – ser dedicado a seus filhos, “a luz mais brilhante na noite escura”.
A partir de 21 Gramas, de 2003, personagens infantis ganharam destaque na trilogia de Iñárritu iniciada com Amores Brutos, em 2000. Primeiro, como vítimas fatais de um atropelamento. Depois, sobrevivendo quando são abandonadas sozinhas no deserto que define a fronteira do México com os Estados Unidos. Agora, a vida familiar de Uxbal – personagem principal de Biutiful – é voltada para seu casal de filhos. Feito sem qualquer laivo de estrelismo, o papel valeu a Javier Bardem, com toda justiça, o prêmio de interpretação masculina, no Festival de Cannes de 2010.
Enquanto Uxbal faz quimioterapia, tendo na incontinência urinária traço de identificação com seu filho caçula, Mateo, a filha Ana, de 10 anos, alheia às misérias da vida, testemunha que ainda há beleza no mundo. Os Pirineus são lindos (“biutiful”), ela escreve em ortografia fonética no desenho da cordilheira gelada que fez ao voltar da viagem acompanhada por sua mãe. Menina ainda, Ana será depositária da memória familiar e da esperança de que o mundo possa ter salvação.
Uxbal só tem acesso ao Éden montanhoso coberto de neve quando chega ao fim do seu caminho. Antes de partir, como presente de despedida, entrega a Ana o anel que o avô dela deu para a avó quando deixou a Espanha, fugindo da ditadura franquista. Pai e filha sussurram no plano de abertura do filme, no qual se veem apenas duas mãos e o falso diamante passando dele para ela.
Além de acentuarem, por oposição, o impacto do que seguirá, as vozes baixas e a atmosfera onírica da primeira imagem de Biutiful contrastam com o vigor habitual dos filmes de Iñárritu. Ao moderar a violência dos filmes anteriores, o diretor opera uma inflexão de estilo em sua obra. Recursos de linguagem que exacerbavam a agressividade dos personagens passam a ser usados de maneira mais comedida. Sem as narrativas ardilosas de Guillermo Arriaga – autor dos roteiros de Amores Brutos, 21 Gramas e Babel –, o cinema de Iñárritu ficou mais realista, ganhando em densidade dramática ao concentrar a ação em uma única cidade, sem renegar sua visão de mundo apocalíptica.
No lugar de episódios interligados por casualidades – artifício que é a marca registrada da trilogia do cineasta –, Biutiful narra a agonia final de Uxbal em ordem cronológica, com exceção do prólogo. Pai devotado, ele não quer morrer para que possa cuidar dos filhos; médium, é pago pelo conforto dado a quem perdeu os seus; intermediário, faz ligação entre policiais corruptos e imigrantes clandestinos vindos da China e do Senegal – uns são peões de obra e trabalhadoras escravizadas, outros vendedores ambulantes de drogas e produtos piratas.
Relações pessoais e de trabalho, moradias e ruas estão corroídas em Biutiful – como Uxbal, tomadas por metástase. Separado da mãe dos seus filhos, portadora de transtorno bipolar, ele vive com as crianças enquanto o mundo desmorona à volta. Os apartamentos são apertados, os locais e as condições trabalho, degradantes. No bairro superpovoado, mendigos dormem nas calçadas. As paredes das construções estão rabiscadas e decaídas. A região da cidade em que os personagens transitam é um campo de batalha em escombros. Nem o túmulo do pai de Uxbal resiste – o corpo é exumado quando o terreno do cemitério é vendido para a construção de um shopping center com mão de obra clandestina fornecida pelo próprio Uxbal.
Homem afetuoso e bem-intencionado, chegando a ser chamado de madre Teresa de Calcutá, Uxbal não escapa de provocar a morte das trabalhadoras chinesas e das filhas delas ao instalar aquecedores na oficina em que dormem trancafiadas – um escapamento acidental transforma o porão numa câmara de gás. Tema recorrente nos filmes de Iñárritu – do atropelador de 21 Gramas ao menino que acerta um tiro na turista em Babel –, os responsáveis por esses atos de violência, mesmo sem cometê-los deliberadamente, carregam a culpa pela qual terão um preço a pagar. Em Biutiful não é diferente – Uxbal diz à médium, sua mentora, que quer entrar em contato com as trabalhadoras mortas e pedir perdão.
Mesmo articulando alguns ingredientes típicos de um dramalhão piegas, Alejandro González Iñárritu demonstra maestria ao deixar de lado os estereótipos do cinema dominante e escapar dessa armadilha. Sem recorrer a trucagens e efeitos visuais, Biutiful é um filme sóbrio, com identidade própria, bem filmado e fotografado, que faz radiografia devastadora da vida contemporânea em um grande centro urbano.
A encenação do horror não conhece limite quando é feita de maneira elíptica e sutil, como acontece em Biutiful, filme raro que não transforma a violência em espetáculo. Iñárritu comprova o poder da ficção, tendo lidado com as restrições do cinema documentário ao fazer, em 2002, um dos onze episódios de curta-metragem da produção francesa “11 de Setembro”. Tudo muda de figura quando, em vez da ficção realista, pretende-se representar fatos reais de forma documental. Como fazer um filme sobre o atentado às Torres Gêmeas sem explorar a tragédia nem ser redundante em relação à exaustiva cobertura da televisão? A opção de Iñárritu foi deixar a tela preta durante a maior parte do tempo, usando apenas alguns planos curtos em que mal se vislumbram corpos em queda livre. O que conduz o filme é a trilha sonora com vozes de locutores superpostas descrevendo o evento. Documentários, como é fácil comprovar, podem enfrentar dificuldades maiores do que filmes de ficção para representar a realidade.
Relutante a princípio, Uxbal acaba admitindo que vai morrer e deve arrumar suas coisas. O universo cuidará dos seus filhos, diz a médium, que lhe dá duas pedras para protegê-los. Quando o fim se aproxima, quem ele encontra para cuidar das crianças é Ige, senegalesa com um filho de colo que Uxbal acolheu quando o marido dela foi deportado. Essa relação imprevista faz surgir um raro vislumbre de solidariedade humana em Biutiful, mesmo prevalecendo a discriminação – quando Ige passa a buscar os filhos de Uxbal na escola, ela volta caminhando pela calçada oposta à deles até chegar perto de casa.
No final, a estrutura cíclica da narrativa de Biutiful retoma a sequência vista no prólogo. O último desejo de Uxbal é não ser esquecido. Seu único legado é o anel da sua mãe, que usou a vida toda. Na montanha edênica encontra um personagem enigmático (seria um anjo?) que o conduzirá a partir dali. Admira o ruído do vento e do mar que essa figura imita à perfeição, e confessa ter medo do fundo do mar. Antes de deixar vazia a paisagem de árvores e neve, fuma com prazer seu último cigarro.
Leia Mais