A fidelidade e a paixão do atleticano não dependem do sucesso do time e nem se baseiam na ideia fixa de vencer. O desprezo pela vitória fácil, que ele compartilha com os torcedores de outros times de massas, constitui um modo de estar no mundo para quem não é exatamente um vencedor FOTO: NIDIN SANCHES_NITRO
Quixote venceu
Memórias e dúvidas metafísicas de um torcedor do Galo diante da glória
Roberto Andrés | Edição 84, Setembro 2013
Eu tinha 9 anos; meu irmão, 7. Atrasados e cheios de expectativa, ajudávamos a procurar vaga em meio a um mundaréu de carros. Estranhamos quando meu pai estacionou em uma faculdade, que não era exatamente nosso destino. “Vou à escola”, ele disse na portaria, com a cara de pau dos penetras e aventureiros. Descemos eufóricos, ignoramos o porteiro, que fez vista grossa para o descalabro de um adulto e duas crianças irem à faculdade de veterinária em domingo de clássico, e rumamos para o Mineirão. Era nossa primeira vez no estádio.
Atravessar a escadaria que dá acesso à arquibancada é um ritual de passagem com desfecho fulgurante. O gramado amplo, verde e iluminado salta aos olhos pelo contraste com corredores cinzentos e fechados. Naquele dia, quando avistamos o campo já em pleno jogo, entramos correndo. Um minuto depois a ficha caiu e nos vimos no meio da torcida adversária, onde assistimos ao primeiro tempo sob a instrução paterna de “não comemorar nem xingar se sair algum gol”. Naquela época era permitido, dentre outras coisas hoje impensáveis, circular pelo estádio, e no intervalo migramos de torcida. O Atlético venceu o Cruzeiro por 2 a 0, com gols no segundo tempo, que pudemos comemorar sem silêncio.
Apesar da estreia vitoriosa, minha aventura atleticana nunca foi em céu de brigadeiro. Não cheguei a ver jogarem Cerezo, Reinaldo e companhia, embora esse time lampejasse no imaginário da minha geração, que sonhava com seu futebol talentoso e lamentava sua sina de morte na praia. O Atlético foi uma representação local da Seleção Brasileira no início dos anos 80, que com um de seus melhores escretes caiu tragicamente em duas copas do mundo. Mas Zico e Junior conquistaram títulos importantes pelo Flamengo. Os jogadores do Atlético bateram na trave algumas vezes.
Entre aquele time de Reinaldo e este de Ronaldinho, foram quase trinta anos de melancolia com pitadas esporádicas de inspiração – mas sem nenhum grand finale. O torcedor atleticano acostumou-se a contratações equivocadas, promessas inconclusas, administrações temerárias, deslizes na reta final, muitas atuações medianas e algumas francamente vexatórias. A situação foi acentuada pelo fato de o rival Cruzeiro ter vencido quatro copas do Brasil, uma Libertadores e um Campeonato Brasileiro no mesmo período.
Toda vez que vejo Cuca, treinador do Atlético, beijando sua medalhinha de Nossa Senhora à beira do campo, tenho vontade de rir. Ou de chorar. Incontáveis vezes em minha infância pedi a Deus pelo Galo – só um golzinho, Deus, por favor. Não me lembro de ter sido atendido, mesmo quando o adversário era a Caldense, a Ponte Preta ou o Náutico. Foi o filósofo Vilém Flusser, se não me trai a memória, que diante da visão de um peixe recém-pescado se debatendo em silêncio até a morte deixou de acreditar em Deus aos 8 anos. Meu Deus morreu por razões semelhantes, mas a agonia era a de um galináceo e a persistência (ou fanatismo) me fez insistir na ajuda divina até o início da adolescência.
A tragédia anunciada se deu em 2005, com o rebaixamento do Atlético para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro. A segundona foi um choque de realidade, mas também a injeção de um pouco de autoironia, tão incomum no futebol e nas torcidas apaixonadas. Foi preciso engolir o orgulho e entender que, se a paixão pelo futebol vai muito além dos resultados, a invenção de sentido pelo jogo poderia se dar em qualquer situação. A tragédia foi menor do que se esperava. Presente em massa no Mineirão, a torcida incentivou e cantou como poucas vezes, com uma certa leveza que é privilégio dos que estão afundados na merda.
Com a maior média de público do Brasil naquele ano, o Atlético venceu a segunda divisão e retornou para a primeira. Ao final da temporada, a piada corrente entre alguns atleticanos era que, se fosse permitido escolher, melhor seria permanecer na segundona, jogando às terças e sextas, em clima de descontração e solidariedade, balançando as redes dos goleiros do São Raimundo, Avaí, Gama, Paysandu, CRB. Aquele foi o último ano em que se pôde beber no estádio, e meu irmão costumava dizer que quem proibiu a venda de cerveja no Mineirão nunca teve que assistir a um jogo do Atlético sóbrio.
À guisa de conselho, não devem ser menosprezados os benefícios dos ares da segundona para a saúde dos grandes clubes, no combate à empáfia e à mania de grandeza, tratamento experimentado por Corinthians, Grêmio, Fluminense e Palmeiras e com o qual, torçamos, o São Paulo poderá se medicar no próximo ano.
O Athletico Mineiro Football Club foi fundado em 1908 por um grupo de estudantes no Parque Municipal de Belo Horizonte, sede corriqueira dos esportes naquela cidade de ruas de terra e terrenos baldios. Os clubes pioneiros tinham encerrado expediente um ano antes e o futebol parecia um modismo superado quando o Athletico surgiu. Ainda assim, o feito passou em brancas nuvens na imprensa local, enquanto um time surgido no mês seguinte, o Sport Club Mineiro, recebeu notas nos cadernos sociais (não existiam ainda os cadernos esportivos) dos jornais.
Um parêntese: impossível saber se aqueles jovens atlethicanos ressentiram da assimetria no tratamento recebido, e se já nasceu ali um certo rancor que se transformaria, como uma bola de neve, na obsessiva mania de perseguição que costuma assolar o Atlético. Síndrome arrasadora, por colocar o time contra fantasmas insondáveis e forças extraterrenas, como no segundo turno do Campeonato Brasileiro de 2012, quando comissão técnica, jogadores e torcedores encontraram na arbitragem a fonte dos males do mundo e falava-se de um complô para o Fluminense (o Fluminense!) ganhar o Campeonato. Claro que a pressão sobre a arbitragem é quase uma regra do jogo no futebol brasileiro, mas é preciso entender que derivar para a lamúria, a vitimização e a conspiração cósmica em nada ajuda se o objetivo for vencer.
O Atlético é desde muito um time popular, mas não era assim no início. Aqueles fundadores eram filhos de uma elite branca, em sua maior parte estudantes de medicina ou direito. No início do século XX, o futebol no Brasil era privilégio de “distintos sportsmens” e para participar dos times era preciso, além de pagar, estar em consonância com regras como não receber gorjetas e ser alfabetizado. O primeiro clube de fato ligado a uma base operária na capital mineira foi o Yale, de 1910, que se desmembrou uma década depois para fazer surgir o Palestra Itália. Durante a Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas soltou um decreto proibindo nomes de referência italiana no Brasil, e o Palestra de Belo Horizonte se transmutou no Cruzeiro, enquanto o xará de São Paulo virou o Palmeiras.
Em um texto de 1968, o arquiteto Sylvio de Vasconcellos compara as torcidas dos clubes mineiros a partir de sua origem social. O estudioso do Barroco Mineiro era atleticano e sua análise tem muito de provocação. Ao estratificar os torcedores – os atleticanos seriam das camadas populares e da baixa classe média, os cruzeirenses, novos-ricos e alta burguesia, e os americanos, uma elite pó de arroz –, Sylvio afirma ser o torcedor atleticano o mais apaixonado e fiel ao clube, menos dependente do sucesso do que os cruzeirenses, estes fundados na ideia fixa de vitória baseada na superação do imigrante. Na época, o Atlético não tinha vencido ainda o Campeonato Brasileiro e o Cruzeiro era a grande equipe de Tostão, Piazza e Dirceu Lopes. Já aparece no texto, pela ênfase na paixão legítima, um certo desprezo pela vitória fácil, uma leitura presente no imaginário de outros times de massas e que constitui um modo de estar no mundo para quem não é exatamente um vencedor.
A análise que Vasconcellos faz dos mascotes dos clubes, criados pelo desenhista Fernando Pieruccetti a pedido de um jornal na década de 40, é sacana e divertida. A Raposa do Cruzeiro prima pela astúcia, “com a qual vence quando lhe falta valentia”. É desleal, enganadora e cínica. O Coelho do América é dócil, branquinho, frágil, quase um bonequinho de luxo. O Galo é nobre, corajoso, valente e leal, combate até a morte, é o símbolo da França e dos gauleses. Se há aí uma puxada de brasa para a sardinha de quem escreve, a idealização das virtudes do galo valente revela já alguns aspectos da sina atleticana que convém abordar.
Poucos times, no Brasil e no mundo, viram seu mascote tomar a cena como fez o Galo mineiro. Talvez porque Atlético seja um nome genérico e uma palavra difícil de rimar, enquanto galo é sugestivo e sonoro. Nas arquibancadas, o nome do time só é escutado no hino; no mais das vezes, é “Galo doido”, “O Galo é o time da virada”, “Vai pra cima deles, Galô”, além do minimalista e ecoante “Gaaaaaloooo, Gaaaaaloooo”. Enquanto “Bica eles, Galo” permite ao torcedor um momento de humor meio jocoso, a palavra de ordem “Aqui é Galo!”, acionada quando o time faz gols ou vence jogando em casa, enfatiza um senhorio sobre o território bastante caro ao macho alfa do galinheiro.
A disputa entre rivais, na qual identidades se afirmam pela negação do outro, pôs no campo outros bichos. Entre atleticanos e cruzeirenses, os primeiros são cachorrada e os segundos, bicharada – pegada homofóbica comum ao futebol e que não deixa de ser a outra face de uma homoafetividade da qual pouco se diz. De todo jeito, a identidade canina, com seu regime afetivo marcado por euforia e dedicação não correspondidas em relação ao dono, cabe bem ao atleticano. O cachorro junta-se ao galo ao ser evocado pela torcida cruzeirense, colocando as brigas de animais e sua violência ancestral no front simbólico do clássico mineiro.
O galo foi incorporado, em 1969, ao segundo e atual hino do Atlético (o primeiro, de 1928, com certo formalismo parnasiano, dificilmente cairia na boca do povo), no qual a rinha encontra voz para se firmar. Pois o “lutar, lutar, lutar” repetido à exaustão pela torcida ajuda a cunhar um espírito de time cujo futebol parece estar sempre submetido ao princípio da guerra. E isso poderia explicar muito desta campanha na Libertadores, na qual um time ofensivo e veloz de repente interrompe a sequência de vitórias acachapantes e parte para a luta. Como se houvesse um certo prazer masoquista na dificuldade, na disputa apertada, em sair de campo arranhado, machucado, descabelado e, às vezes, vitorioso.
Claro que essa inclinação para a luta heroica é um prato cheio para as diversas expressões do piegas, cujo ápice talvez seja a frase do escritor Roberto Drummond: “Se houver uma camisa branca e preta pendurada num varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento.” Se essa imagem é a caricatura da paixão quase sem limites dos torcedores, o exagero em se lutar contra o vento e ser “campeão do gelo” acaba por fazer do Galo um desafiador das intempéries para quem a vitória está no limite do impossível, mas que segue lutando – “uma vez até morrer”. No inconsciente coletivo atleticano, esse quixotismo não deixa de ser uma espécie de autoboicote, pois somente a derrota heroica mantém aceso o espírito do “Galo forte e vingador”. (Às vezes me pergunto se, caso o hino terminasse com “vencedor” em vez de “vingador”, a sina atleticana não seria mais leve, menos carregada de uma necessidade constante de correr atrás, rebater, virar, vingar).
Difícil precisar quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha. Em que medida essa inclinação para o heroísmo valente já existia no Atlético da década de 40 e foi captada pelo desenhista? E de quais maneiras a identificação com a simbologia do galo de briga, ecoada no hino, ampliou e deu potência a um espírito que se tornou indissociável do time e acabou se constituindo num script predeterminado ao qual jogadores, comissão técnica, diretoria e torcedores raramente conseguem escapar? Seja como for, a conquista da Libertadores coloca a torcida atleticana num curioso impasse. Se o nosso posicionamento no mundo sempre se deu sob a égide da luta heroica, da vingança e da paixão na adversidade, o fato de termos “chegado lá” parece puxar o tapete dos nossos velhos hábitos e do modo como torcemos.
O encontro da bola com a escrita costuma gangorrar entre a análise tática e técnica, cega para o que está fora das quatro linhas, e o estudo sociológico, capaz de olhar para tudo, menos para o que acontece dentro do campo. Para além dos dois gêneros, a tendência recente de um ensaísmo interpretativo faz muito bem ao futebol, seja nas obras de maior fôlego, como o já clássico Veneno Remédio, de José Miguel Wisnik, seja em textos menores ou crônicas.
Impressiona como esta campanha do Atlético na Libertadores gerou grande quantidade de textos interpretativos e ensaios literários, com grande potência para abordar as diversas construções de sentido no campo e nas arquibancadas. Ler sobre o jogo se tornou, em alguns momentos, tão significativo quanto assisti-lo. Parece que o longo tempo de agonia atleticana acumulou uma potência sensível que aflorou em relatos, ensaios, memórias, análises e especulações dos mais diversos, cujo grande momento foi, curiosamente, um texto vindo do Rio Grande do Sul, outra terra de guerreiros da bola.
A meu ver, a crônica de Douglas Ceconello[1] sobre a partida das quartas de final entre Atlético e Tijuana conseguiu ser tão central na paisagem da crônica futebolística recente quanto foi o próprio jogo nesta Libertadores. Depois de um empate por 2 a 2 no México, o Atlético vinha segurando um apertado 1 a 1 em Belo Horizonte, que garantia a classificação já esperada pela torcida. Aos 46 minutos do segundo tempo, o choque do real: pênalti para o Tijuana. Aos 48, Sobrenatural de Almeida, o lendário personagem de Nelson Rodrigues, entrou em campo e fez com que a bola encontrasse o pé esquerdo do goleiro Vitor, para espanto de todos, delírio de muitos e infarto de outros tantos.
A referência ao Sobrenatural encontra o texto de Ceconello, que tem muito de Nelson Rodrigues, desde o título algo teatral, passando pela abordagem ampla, pessoal e dramática, pelas pitadas de delicioso nonsense e culminando no arremate moralista no final. Mas o autor tem também um olhar atento para os detalhes do jogo que o grande cronista míope nunca exerceu. Ceconello é capaz de dar um zoom radical que escaneia o pensamento de um jogador, analisar com precisão um lance e em seguida evocar as “jujubas peçonhentas do diabo” que seduziam os torcedores.
A crônica inaugurou uma moral que se tornou recorrente, de que era preciso para o Atlético “encarar de frente a recente coleção de decepções, de absurdos, de pedaços de títulos que ficaram pelo caminho. Era preciso apontar o dedo e prometer como fazem os ÉBRIOS diante do nada: Desta vez, não tem volta. Vai ser de qualquer jeito”. A boutade lançada pelo torcedor do Internacional foi incorporada em várias análises posteriores, que esmiuçaram o quanto o Galo teve que revisitar e enfrentar cada um de seus traumas, seu veneno remédio, para conseguir chegar ao título inédito.
Foi preciso que um time conhecido por morrer na praia tivesse um treinador com fama de azarado para conquistarem, juntos, um título inédito para ambos. Foi preciso encarar o São Paulo e o trauma do Campeonato Brasileiro de 1977, quando o Atlético caiu invicto numa final no Mineirão. Foi preciso tomar um susto contra o Tijuana para baixar a bola e entender que de salto alto não ia dar. Foi preciso que um ex-jogador do Cruzeiro, Guilherme, que nunca desencantou no Atlético e por muito tempo foi hostilizado pela torcida, fizesse um gol salvador na semifinal.
Foi preciso vencer o trauma da Selegalo de 1994, um time repleto de ex-craques veteranos que encontraram em Belo Horizonte um ótimo ambiente para suas farras e viabilizaram uma das maiores decepções atleticanas, tendo um outro gaúcho de 33 anos à frente da presepada – o que fez muitos sentirem na chegada de Ronaldinho Gaúcho e Jô (difícil saber qual era o mais renegado) um déjà-vu sinistro e nada animador. Foi preciso que a falsa polarização futebol-arte versus títulos fosse enterrada de vez, com um time que conjugou momentos de futebol veloz e habilidoso com outros de muita raça, eficiência e sorte, rendendo ao mesmo tempo a equipe vitoriosa de 1971 e a geração talentosa de 77/80.
Foi preciso tornou-se quase um cacoete da crônica, na análise mística dos fatos depois da vitória. Com efeito, o termo dá aos acontecimentos um tom de penitência religiosa que espelha o mantra Eu acredito, cantado a partir do jogo contra o Newell’s Old Boys, nas semifinais. Mantra que me fez arrepiar em meu ceticismo, pois sempre pensei, como no Canto de Ossanha de Vinicius e Baden, que “o homem que diz ‘sou’ não é”, que quem acredita de verdade não precisa dizer. Para um atleticano calejado, aquilo era um sintoma de que daríamos com os burros n’água, e ainda berrando ridiculamente aos quatro ventos nossa crença infantil.
Torcer é se jogar no abismo. Com essa frase martelando a cabeça, eu ia para a final da Libertadores no Mineirão, cantando com os outros torcedores no ônibus e me sentindo um estranho no ninho, tanto tempo fazia que eu não ia ao estádio. Olhando de fora, eu via na euforia dos torcedores um verdadeiro suicídio coletivo, uma aposta insana no imaginário da vitória diante das possibilidades iminentes do real da derrota.
Eu havia passado a semana ansioso, pensando na partida. Por tudo o que vivi como torcedor, internalizei uma crença de que, cedo ou tarde, sempre perdemos. A questão não era o resultado desfavorável no jogo de ida nem a dificuldade, digamos, futebolística de se fazer dois gols nos paraguaios. Se o Atlético tivesse uma vantagem de três gols, ainda assim eu estaria nervoso – talvez até mais. Meu escape foi passar os dias fantasiando o momento depois da vitória, não o como, que este me afligia, mas o depois. Imaginava que, sem o antigo fosso que separava o campo da extinta geral, e no qual vi tanta gente cair, a torcida invadiria o campo numa apoteose revolucionária. Sairíamos carregando os jogadores na avenida, fazendo de volta o caminho das manifestações de junho, como que devolvendo o futebol aos braços do povo a partir do Mineirão reconquistado.
Mas o Mineirão não estava para fantasia. O palco de momentos emocionantes da minha vida se tornou mesmo um shopping center árido e desinteressante, com estacionamento coberto e redes de fast-food ocupando uma esplanada onde já estiveram centenas de ipês, sibipirunas e amendoeiras. Muito se diz da exclusão social e da perda cultural que a Copa do Mundo trouxe para os estádios, mas é preciso ficar claro que o novo modelo é, em muitos sentidos, menos competente que o anterior. Existe um know-how em servir um prato de feijão tropeiro por segundo que os desavisados que hoje administram bares assépticos estão a anos-luz de adquirir. Claro que os banheiros estão mais limpos, mas é de se perguntar se eram necessárias uma obra bilionária e uma concessão sacana para mijarmos em vasos mais lustrosos. O feijão tropeiro estava tão ruim que cogitei jogá-lo para cima quando Jô fez o primeiro gol do Galo, mas mudei de ideia porque senti que a noite seria longa.
A partida repetiu o roteiro da disputa na semifinal: jogo sofrido, com gol salvador no fim do segundo tempo e atuação brilhante de Sobrenatural de Almeida, que deu uma rasteira no atacante do Olimpia quando ele tinha o gol livre à sua frente. Depois das vitórias milagrosas nas duas fases anteriores, parecia haver algo de inevitável na conquista do título pelo Atlético. Mas isso era fé e não certeza, de modo que assistir à partida foi uma desmedida provação. Fiquei rouco de tanto gritar Eu acredito, embora não soubesse se acreditava mesmo, mas era o melhor que eu podia fazer.
Foi preciso vencer nos pênaltis e vingar de vez o trauma de 1977. Quando o argentino Gimenez carimbou a trave e o Galo tornou-se o mais novo campeão das Américas, eu estava tão cansado que quase não comemorei. Fiquei sentado, pensando naquela bola na trave, esse símbolo daquilo que poderia ter sido e não foi e que tantas vezes nos arruinou. Foi preciso se redimir até com a trave, cheguei a pensar, para finalmente perceber que a nossa lista de traumas é tão extensa que qualquer acontecimento acaba encontrando eco em algum deles.
De modo que é preciso dar uma pausa na tentação mistificadora. Ou fica parecendo que o Atlético venceu somente porque estava escrito nas estrelas. É preciso entender que Cuca já vinha treinando o time desde 2011, que montou uma equipe estruturada e venceu o Campeonato Mineiro no ano seguinte, que foi mantido o grupo vice-campeão brasileiro de 2012 (fato inédito desde que acompanho o Atlético) e ainda foram contratados bons jogadores, dentre eles Diego Tardelli e reservas importantes como Gilberto Silva, Josué, Luan e Alecsandro. Foi preciso, mais do que tudo, trabalho sério e continuado, coisa que no Atlético não se via há muito tempo.
A torcida não invadiu o campo como eu imaginava, embora o fosso tenha de fato se tornado uma valeta irrelevante. Pela saída do vestiário, torcedores VIPs entravam sobeja e tranquilamente. A torcida atleticana, com ingressos a 200 reais, ficou almofadinha como a do Cruzeiro e esses outros times pó de arroz. Operários aplicados montavam um palco para a premiação, com uma parede para as marcas dos patrocinadores que dava as costas para o setor da arquibancada onde estava meu irmão – já que o destino e a fila dos ingressos nos colocaram, 23 anos depois daquele dia em que iniciamos juntos nossa militância atleticana, e no jogo mais importante de nossas vidas, em setores diferentes. Pensei que ele não se importaria, pois estaria chorando.
Eu não chorei nem ri. Meu corpo doía e comecei a ver pouco sentido naquilo tudo. O espetáculo da premiação era para a televisão, e não para as arquibancadas. Os principais jogadores sumiram no meio da multidão de VIPs no gramado, talvez já armando a balada da vitória em uma boate cheia de periguetes. A torcida mantinha sua obediência em não invadir. Pensei na coragem dos manifestantes de junho, olhei em volta e os 60 mil torcedores no estádio babavam de molhar a camisa, a baba bovina e elástica da resignação. Gritei GALO, mas se a voz não falhou, um vazio se denunciou. Fechei os olhos, as arquibancadas estavam vazias e o campo tomado. Deitei exausto no gramado, senti a grama roçar minha barba e sonhei, como sonhei tantas vezes em minha infância, como seria o momento em que o Galo fosse campeão da Libertadores da América.
[1] “À meia-noite, no Horto”, Douglas Ceconello: www.impedimento.org.