I can’t breathe (não consigo respirar): a fala de Eric Garner e George Floyd é tão poderosa porque se situa num lugar indefinível entre vida e morte, opressão física e opressão social CRÉDITO: ANDRÉ CARRILHO_2020
Racismo e asfixia
A respiração de combate de Frantz Fanon, Eric Garner e George Floyd
João Felipe Gonçalves | Edição 183, Dezembro 2021
A dimensão política da respiração humana raras vezes esteve tão em evidência como hoje. Devido à pandemia, graves problemas respiratórios afligem milhões de pessoas em todo o planeta e matam muitas delas de forma lenta e dolorosa. Em uma ironia macabra, foi numa região da América do Sul, que um clichê global chama de “pulmão do mundo”, que se desenrolaram algumas das cenas mais dramáticas dessa tragédia respiratória. As atitudes (des)governamentais que produziram essa espetacular tortura coletiva na Amazônia brasileira escancararam a decisão política de incentivar a disseminação do mal respiratório e de matar suas vítimas por asfixia.
A mortandade amazônica traz à memória outras tragédias criminosas ligadas à respiração, a começar pelos problemas atmosféricos e de saúde que o aumento das queimadas na floresta equatorial tem gerado até mesmo em lugares distantes. Outro sinistro precedente são as câmaras de gás, tecnologias respiratórias que fascistas europeus utilizaram para matar milhões de forma industrial. Mesmo antes da pandemia, vários estudos acadêmicos enfatizaram a dimensão respiratória de injustiças e violências em todo o mundo. Por exemplo, os trabalhos da antropóloga norte-americana Kerry Ryan Chance, especialmente o livro Living Politics in South Africa’s Urban Shacklands (Políticas do viver nas favelas urbanas da África do Sul), mostram que cidadãos negros na África do Sul e na Louisiana sofrem de problemas respiratórios gerados pela poluição industrial em escala bem maior que os brancos.
Há várias razões pelas quais a respiração chama particular atenção como alvo de violência. Primeiramente, ela é a mais perceptível das funções vitais humanas. Diferentemente da circulação sanguínea, envolve um intercâmbio nítido entre o interior e o exterior do corpo. E, ao contrário da digestão, da excreção, da transpiração e da reprodução, os sinais externos desse intercâmbio são ininterruptos. Além disso, a respiração é entendida como a mais impoluta dessas funções vitais, pois é a única que não envolve a eliminação de sólidos e líquidos que são percebidos quase universalmente como poluídos, sujos, perigosos ou repulsivos – e, por isso mesmo, é vista eventualmente como atraente.
Diante dessas peculiaridades e dos frequentes ataques que sofre a respiração humana, não espanta que ela tenha uma imensa força como imagem política. No caso brasileiro, esse poder simbólico pode ser exemplificado pela famosa crítica ao AI-5 feita pelo Jornal do Brasil, dissimulada na previsão de tempo publicada em 14 de dezembro de 1968, o dia seguinte à promulgação do ato ditatorial: “Temperatura sufocante. O ar está irrespirável.” Muito antes disso, Mahatma Gandhi dissera que a liberdade não tem preço porque ela é “o sopro da vida” (the breath of life). Dois filmes fundamentais sobre as violências colonial e racial – A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo (1966), e Faça a Coisa Certa, de Spike Lee (1989), respectivamente – apresentam o sufocamento deliberado tanto como dura realidade quanto como símbolo de opressão. Aliás, a própria palavra “opressão” se refere, em seu significado original, ao ato físico de oprimir alguma matéria – o peito ou o pescoço de alguém, por exemplo – e denota, mais amplamente, tanto o sufocamento biológico como a submissão social.
Mas talvez nenhuma formulação evidencie tão bem a estreita ligação entre a asfixia como fato corporal e como símbolo político quanto a frase I can’t breathe (Não consigo respirar), proferida por dois negros norte-americanos – Eric Garner, em 2014, e George Floyd, em 2020 –, no momento em que eram sufocados por policiais brancos. Jamais saberemos quantos outros negros disseram as mesmas palavras enquanto agonizavam devido a agressões racistas que sofreram nem quantos sequer as puderam pronunciar – como João Alberto Silveira Freitas, morto por asfixia pelos seguranças brancos de um supermercado brasileiro no ano passado. Graças à repercussão dos casos de Garner e Floyd, essa frase, aparentemente simples mas genialmente complexa, se tornou um dos mais potentes lemas de movimentos antirracistas em todo o mundo.
O grandioso ato de resistência, indissociavelmente corporal e linguístico, que significa a enunciação de I can’t breathe indica que as pessoas mais bem situadas para pensar e falar sobre a relação entre as dimensões material e simbólica da respiração humana são aquelas que têm sido mais brutal e massivamente oprimidas no mundo moderno: os negros africanos e da diáspora, acertadamente descritos pelo escritor martinicano Aimé Césaire (1913-2008), em seu Discurso sobre a Negritude (1987), como os “grupos humanos que sofreram as piores violências da história”. Apesar de eu ser branco, e portanto incapaz de ter uma compreensão plena e pessoal do tema, quero mobilizar aqui uma de minhas áreas de especialização acadêmica, os estudos caribenhos, para interpretar o lema I can’t breathe a partir das relações entre asfixia e racismo apontadas por um aluno de Césaire: Frantz Fanon.
Nascido em 1925 na Martinica, então colônia e hoje departamento ultramarino da França, Fanon começou sua atuação política na resistência ao fascismo no Caribe e na Europa. Após a Segunda Guerra Mundial, estudou psiquiatria e filosofia em Lyon, e em 1953 foi trabalhar como psiquiatra na Argélia, onde logo se tornou um membro destacado da luta contra o colonialismo francês. Sua atuação, porém, foi abreviada por uma leucemia que o levou para tratamento primeiro à União Soviética e depois aos Estados Unidos, onde morreu em 1961, aos 36 anos.
É importante notar que, ao radicar-se na Argélia, Fanon realizou, em âmbito pessoal, a viagem à África que vários intelectuais caribenhos negros haviam imaginado como um projeto coletivo – o jamaicano Marcus Garvey defendera o retorno dos negros da diáspora ao continente africano; o haitiano Jean Price-Mars localizara na África as origens culturais de seu país; e Césaire deliberadamente fizera da idealização das civilizações pré-coloniais africanas um gesto poético-político. Portanto, o pan-africanismo de Fanon se ancorava em uma longa tradição antilhana.
Os textos de Fanon tiveram e ainda têm imenso impacto no pensamento crítico sobre o colonialismo e o racismo. Seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), é uma das mais sofisticadas análises do racismo e de seus mecanismos linguísticos e psicológicos, e tem sido inspiração para vários pensadores recentes, especialmente anglófonos. Seus escritos sobre o colonialismo e a descolonização da África são uma referência fundamental para a esquerda em todo o mundo desde sua publicação. É o caso sobretudo do livro que ditou em seu leito de morte, Os Condenados da Terra (1961), um estudo sobre o poder colonial, a violência revolucionária e as desigualdades pós-coloniais. Em razão das lutas políticas antirracistas travadas atualmente, a obra de Fanon ganhou novo destaque nos meios universitários e ativistas.
Frantz Fanon mencionou a respiração várias vezes em suas discussões sobre a opressão racial e colonial. Os manifestantes afro-americanos que protestaram contra a morte de Eric Garner foram os primeiros a associar essas menções à frase I can’t breathe. A ligação foi logo trabalhada por vários ativistas, intelectuais e artistas, como o músico palestino Dirar Kalash, que compôs, em 2016, uma peça chamada We Can’t Breathe (for Eric Garner and Frantz Fanon). Logo depois da morte de Garner, o arquiteto e escritor francês Léopold Lambert havia chamado a atenção, no jornal online Mediapart, para o conceito fanoniano de “respiração de combate”. Fanon introduziu essa expressão em um texto de 1957 sobre a Argélia, Les Femmes dans la Révolution, no qual afirmou que, em situações coloniais, “a respiração do indivíduo é uma respiração observada, ocupada. É uma respiração de combate”.
Com os protestos desencadeados pelo assassinato de George Floyd em 2020, multiplicaram-se globalmente as referências fanonianas sobre opressão e respiração. Exemplos brasileiros são o inspirador artigo da antropóloga e artista quilombola Maya Quilolo na revista Afirmativa e uma impactante fotografia postada no Portal Geledés que acompanhou outro artigo sobre Fanon. A foto mostra um cartaz em que o rosto do pensador aparece pintado junto à frase (em inglês) “Nós nos revoltamos porque, por muitas razões, não podemos mais respirar”. Esses dizeres são uma adaptação de uma famosa frase de Pele Negra, Máscaras Brancas: “Não foi por ter descoberto uma cultura própria que o indochinês se revoltou. Foi ‘simplesmente’ porque, sob vários aspectos, respirar se havia tornado impossível para ele.”[1]
Nas duas citações, uma sobre a África do Norte, outra sobre o Sudeste Asiático, Fanon se refere não especificamente ao racismo antinegro, mas ao colonialismo francês em geral. Porém, não há dúvidas de que ambas as passagens se adequam perfeitamente aos assassinatos racistas de Garner e Floyd e às suas enunciações de I can’t breathe. Com essa frase, os dois cidadãos denunciaram a opressão de seus corpos no sentido mais literal do termo, como pressão física e sufocamento, e no mais amplo, como sujeição social. E tanto um quanto outro fizeram isso usando o pouco ar que lhes restava – o que faz de suas falas asfixiadas exemplos primazes de respiração de combate.
Não é irrelevante, contudo, que as duas citações de Fanon se refiram a contextos coloniais distantes de sua ilha natal. Um dos pontos mais importantes de Pele Negra, Máscaras Brancas é justamente a profunda conexão entre racismo e colonialismo. Ademais, o livro é um libelo universalista que defende a superação do que chama de “duplo narcisismo”: o enclausuramento do branco “em sua brancura” e o do negro em “sua negrura”. Em outras palavras, Fanon não só analisa e combate o racismo, mas se opõe a toda forma de racialização, a qualquer associação de corpos brancos ou negros a particularidades culturais ou psicológicas, positivas ou negativas: “Minha pele negra não é depositária de valores específicos”, afirma.
Esse universalismo fica evidente também em outra passagem do livro, na qual Fanon se refere à asfixia do corpo negro: “Se é verdade que devo me libertar daquele que me sufoca, porque realmente não consigo respirar, permanece a evidência de que é insalubre enxertar num substrato fisiológico (dificuldade mecânica de respiração) um elemento psicológico (impossibilidade de expansão).”
Assim, entende-se melhor por que Fanon sustenta que a revolta anticolonial nasce da asfixia: ele diz isso para se contrapor à ideia de que ela adviria de alguma especificidade cultural. Similarmente, para ele, a revolta antirracista não deve ser culturalista. A seu ver, o objetivo de uma e outra revolta é alcançar uma humanidade plena e real: “[Eu] queria simplesmente ser um homem entre outros homens. […] Queria ser humano, nada além de humano.” Sua reivindicação é evidente: “Reconheço a mim mesmo um único direito: o de exigir do outro um comportamento humano.”
Essa exigência é a que também faziam Garner e Floyd enquanto eram sufocados. Entre outras coisas, eles gritavam que eram humanos e deviam ser tratados como tal. Além disso, utilizando esse atributo exclusivo da espécie humana que é a linguagem articulada, os dois afirmavam sua humanidade por meio do próprio ato de falar durante sua agonia.
Há ainda um detalhe comum às histórias de Garner e Floyd que sugere que ambos podem ter despertado a ira racista dos policiais por praticarem outra forma de respiração: o consumo do tabaco. O espelhamento entre os dois casos é notável: o pretexto para a agressão policial a Garner foi seu suposto ato ilegal de vender cigarros avulsos; o pretexto para a agressão policial a Floyd foi seu suposto ato ilegal de comprar cigarros com uma nota falsa.
O tabagismo hoje em dia é tão associado à doença e à morte – como advertem os maços que Garner não vendia e que Floyd comprava – que é fácil esquecer outras dimensões simbólicas do uso do tabaco que persistem de forma subterrânea e até subversiva. Quem talvez mais tenha discutido essas dimensões é outro pensador caribenho, o cubano Fernando Ortiz (1881-1969).
No monumental livro Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar (1940), esse antropólogo tece um contraste barroco entre os dois mais importantes produtos de sua ilha, desde a materialidade dos vegetais de que são derivados até sua produção, circulação e consumo. Ortiz observa, por exemplo, que da cana-de-açúcar só se aproveita o caule, e da planta do tabaco, só as folhas; que os resíduos do fumo saem por três orifícios superiores do corpo humano, e os do açúcar por um orifício inferior; que em Cuba o tabaco era cultivado por brancos proprietários de minifúndios, e o açúcar, por negros escravizados ou proletarizados em latifúndios; que o tabaco foi levado da América para a Europa, e o açúcar foi trazido da Europa para a América.
Mas é quanto ao consumo que o argumento de Ortiz mais interessa aqui. Admirador e amante confesso do charuto, o antropólogo via no açúcar um produto massificado, homogêneo, emasculador, que deleita crianças e entorpece a imaginação. Em contraste, ele apresenta o tabaco como algo único, diversificado, viril, que provoca um prazer adulto e estimula a imaginação. Por isso, os colonizadores viam no açúcar um néctar angelical e no tabaco, uma droga demoníaca.
Ortiz nota que no ato de fumar “sempre houve algo de revolucionário, algo de retorção sob a opressão, de ardor destruidor e de elevação libertadora”. Mais que isso, “consumir tabaco, ou seja, fumar, é um ato pessoal de individualização. O consumo de açúcar não tem nome específico, é um ato comum da gula. Por isso, o fumante está no dicionário, mas não existe ‘açucarante’.”
Se Ortiz está certo, como considero que está, não foi à toa que Garner e Floyd foram oprimidos até a morte por serem negros que praticavam uma técnica peculiar de respiração associada à ação pessoal, à individualização, à vida adulta, à particularidade, à subversão e, reveladoramente, à “retorção sob a opressão”. Tudo isso, em seus corpos negros, parece ter alimentado o ódio racial dos agressores brancos. Até a suposta virilidade do fumar deve, no caso, ser lida menos por seu aspecto heterossexista do que como uma ameaça ao poder hipermasculino dos policiais brancos, que emascularam suas vítimas ao impedi-las de respirar.
Inspirado por Ortiz, adiciono outros dois pontos às reflexões formuladas por ele. Em Cuba, o tabaco está associado, desde o século XVI, à mão de obra branca e livre. Nos Estados Unidos, ao contrário, foi cultivado e colhido sobretudo por negros, durante e após a escravidão. Condenar Garner e Floyd à morte pelo suposto comércio ilegal ou pelo consumo de cigarros os castigava de modo atroz e racista por eles se relacionarem com o tabaco não na esfera da produção, mas da circulação e do consumo; não por meio da disciplina e do labor, mas da subversão e do prazer.
Além disso, o ato de fumar é também uma forma de reivindicar humanidade. Assim como o cozimento de alimentos e a proibição do incesto, fumar culturaliza – ou seja, humaniza – uma função natural do corpo, que é a respiração. Tanto quanto as louvadas técnicas de ioga e meditação, fumar transforma a respiração em algo cultural e ativo, em algo humano. Ao fumar, Garner e Floyd exerciam e afirmavam sua humanidade através de uma prática respiratória. Ao asfixiá-los, os policiais os puniam, por meio de outra técnica respiratória, pela afirmação que eles faziam de sua humanidade.
Minha interpretação do ato de fumar como humanização se inspira não apenas em Fernando Ortiz, mas também em Peles Negras, Máscaras Brancas. Quando descreve a maneira ideal pela qual um ser humano deveria se relacionar corporalmente com o mundo a seu redor, Fanon usa a seguinte imagem: “Eu sei que, se quiser fumar, precisarei esticar o braço direito para alcançar o maço de cigarros que está na outra ponta da mesa. Os fósforos, por sua vez, estão na gaveta da esquerda; precisarei recuar um pouco. E todos esses gestos, eu os faço não por hábito, mas por um conhecimento implícito. Lenta construção do meu eu enquanto corpo no interior de um mundo espacial e corporal.” Fanon contrapõe essa relação fluida entre o corpo humano e seu entorno à “maldição corporal” da racialização, que aprisiona o corpo negro porque interpõe entre ele e o vasto mundo um “esquema epidérmico racial”.
Não me parece casual que, quando descreve a relação desalienada que gostaria de ter com o mundo, Fanon se refira precisamente a seu desejo e sua prática de fumar, isto é, a essa forma particular e humana de respirar com um aditivo estimulante. Outros escritores menos interessados em questões corporais prefeririam mencionar objetos menos impuros e mais obviamente “intelectuais” que cigarros e fósforos – um lápis, uma caneta, uma folha de papel, uma máquina de escrever. Nessa escolha aparentemente aleatória surge novamente o tema fanoniano da respiração. Em seu livro, como nos corpos de Garner e Floyd, fumar é uma forma vital e ativa de respiração, radicalmente oposta à forma mortal e passiva da opressão e asfixia. Nos três casos, diante de um racismo desumanizante, fumar é uma respiração de combate.
Não terminam aí as conexões entre as respirações de combate de Frantz Fanon, Eric Garner e George Floyd. Os clamores dos dois últimos enquanto morriam se relacionam à visão fanoniana do racismo também porque revelam a dolorosa situação-limite em que se encontravam: não estavam propriamente mortos nem vivos. Afinal, por um lado, uma pessoa que deixa de respirar já não está viva; por outro, se uma pessoa profere palavras, é porque ainda não está morta.
Não quero dizer com isso que Garner e Floyd fossem contraditórios em seus atos de fala. Ao contrário, ressalto que suas falas de resistência são poderosas e complexas em parte porque vêm de um lugar situado irredutivelmente entre a vida e a morte. Ao dizerem I can’t breathe, Garner e Floyd tanto afirmavam sua humanidade como denunciavam sua situação indefinível e intolerável entre o ser e o não ser.
Ora, para Fanon, essa situação é o efeito mais extremo do racismo, que impõe ao negro “um desvio existencial”. No limite, a internalização do racismo cria no oprimido, além de um “sentimento de inferioridade”, um verdadeiro “sentimento de inexistência”. Fanon argumenta que, ao representar falsamente os brancos não apenas como sujeitos universais, mas como a humanidade em si mesma, a visão de mundo racista e colonial nega a própria existência dos negros.
Para explicar isso, remeto a outra passagem de Pele Negra, Máscaras Brancas:
Qualquer ontologia se torna irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada. […] A ontologia, quando se admite de uma vez por todas que ela deixa de lado a existência, não nos permite compreender o ser do negro. Pois o negro [uma vez colonizado] já não precisa ser negro, mas precisa sê-lo diante do branco. […] O negro não tem resistência ontológica aos olhos do branco.
Com tais palavras, Fanon quer dizer que, em um mundo marcado pelo racismo e pelo legado colonial, o negro se define necessariamente em relação ao branco, mas a recíproca não é verdadeira: o branco não precisa se definir em relação ao negro. Fanon mobiliza “a experiência vivida do negro” em oposição à filosofia hegeliana, segundo a qual cada ser é definido pelo reconhecimento que recebe de outro ser. Ele denuncia que essa reciprocidade do reconhecimento foi destruída e impossibilitada pela longa história do colonialismo e do racismo.
Assim, os clamores de Garner e Floyd são demonstrações da ideia fanoniana de que o racismo cria uma zona liminar entre a existência e a não existência, entre o ser e o não ser. A fala I can’t breathe emitida por uma vítima de sufocamento é tão poderosa porque se situa necessariamente num lugar indefinível entre a vida e a morte, entre a asfixia e a respiração, entre a metonímia e a metáfora, entre a opressão física e a opressão social.
Ademais, essa fala também está em um lugar indefinível entre o corpo e a mente. Qualquer ato de fala se localiza na conjunção entre corporalidade e linguagem, pois utiliza recursos vocais e respiratórios para transmitir significados. Mas utilizar o último fôlego para denunciar a falta de respiração deixa ainda mais evidente que a linguagem que resiste é tão corporal quanto o corpo que sofre.
E aqui, mais uma vez, Fanon nos dá a chave para entender a potência dessa frase. Garner, Floyd e todos os que ecoam e gritam hoje junto a eles respondem àquilo que Fanon chamou de “sua última prece”, a frase com que conclui Pele Negra, Máscaras Brancas: “Ó, meu corpo, faz sempre de mim um homem que questiona!”[2]
[1] Todas as citações desse livro são da tradução de Sebastião Nascimento para a edição lançada em 2020 pela Ubu Editora.
[2] Agradeço aos membros do grupo de pesquisa que dirijo na USP, o Canibal – Grupo de Antropologia do Caribe Global, pela enriquecedora discussão que contribuiu para a forma final deste texto.
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